quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A morte de um museu

Como um museu pode morrer? Afinal museus têm muito de cemitérios: eles guardam relíquias, e espécimes embalsamados de fauna, flora e artefatos de sociedades tribais desaparecidas e obras de arte; além de livros – muitos livros que, fechados, jazem ao lado dos diários daqueles que passam a vida dentro deles para aprender o que existe do lado de fora. Ficam fora do mundo para vê-lo com suas doenças, traições, erros e sofrimento. Nesse sentido, um museu é um palácio de tesouros e de objetos sagrados. De artefatos deslocados no tempo e no espaço ininteligíveis aos olhos comuns.

Tal perspectiva me ajuda a elaborar a morte do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no qual trabalhei como antropólogo social por cerca de três décadas.

Ao vê-lo ser impiedosamente lambido pelas chamas, pensei nos meus mentores – Luis de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis – responsáveis pela transformação do Setor de Antropologia num dinâmico Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, que é hoje uma referência mundial.


O descaso é o resultado da mais absoluta ausência em nosso horizonte cultural do lugar do professor. O descaso é irmão da nossa aliança com a ignorância, o oportunismo e a esperteza
O que sentiriam esses fundadores ao ver a catástrofe anunciada pelo total descaso de múltiplos governos, partidos, posicionamentos e hipocrisias tão nacionais e tão isentas ao perigo de incêndio? O que diriam eles que, seja como pesquisadores, professores e administradores como, aliás, foi o meu caso, jamais perderam o rumo da honestidade intelectual para privilegiar suas preferências ideológicas e partidárias? Essa malvada dialética do ser isso ou aquilo vai suicidando o Brasil.

*

Em todas as minhas pesquisas entre os jê-timbira gaviões e apinajés, encontrei quem me tomasse por um disfarçado espertalhão que se apresentava como etnólogo, mas que, de fato, buscava pedras preciosas, ouro ou urânio naquele mato tomado dos índios e destruído para dar lucro. Para muitos, estudar índios era não apenas uma utilidade dos imbecis, mas uma malandragem inteligente para enricar. Até hoje ouço que pesquisar para compreender e não para tomar partido, é uma mitificação. É triste constatar que não temos neste Brasil, cada vez mais castrado por si mesmo, lugar para o professor, para o estudioso, para o investigador que sabe que não sabe e trabalha na esperança de acrescentar mais um pouco ao saber humano, mesmo seguro de que será inevitavelmente superado e esquecido.

O Museu Nacional não foi uma vítima somente do descaso. O descaso é o resultado da mais absoluta ausência em nosso horizonte cultural do lugar do professor. O descaso é irmão da nossa aliança com a ignorância, o oportunismo e a esperteza. Ele é filho dileto do abandono dos governos e de governantes orgulhosos de nunca terem lido um livro, mas que se concedem o direito de falar de tudo, sobretudo do que não entendem. Ele é fruto de uma cultura aristocrática, autoritária e beletrista que se compraz nos folguedos de poesia e pensa que contar casos é sabedoria. Um museu que morre por falta de apoio oficial é o que se colhe quando se elegem governantes ignorantes e burros, doutores narcisistas que pensam que entendem de tudo, quando não são meros ladrões patológicos dos bens coletivos. Dessa ópera trágica nacional na qual o papel de professor é nulo, nasce a indiferença muda que testemunha o assassinato dos museus. Fizemos estádios e reformamos o Maracanã ali ao lado do Museu Nacional, que nem sequer foi visitado por alguma autoridade. O Brasil é recordista em incêndios de museus ao lado de ser um fenômeno no que tange ao roubo do povo em seu próprio nome!

Um país no qual a luta pelo poder não tem limites acaba destruindo ideais, valores e a mais chã moralidade. Estudar, investigar e compreender para sondar o escuro e o terror que se esconde em cada um dos nossos corações é algo sem valor. Aí está, sem dúvida, o fósforo que toca fogo nos museus.


P.S.: Onde estão os milionários brasileiros – formados gratuitamente nas nossas universidades federais – para ajudar na reconstrução do museu? 

Moleque e molecagem

Está tudo pronto para o PT ficar de fora da eleição presidencial deste ano. Tudo pronto. Basta que Lula queira. Foram meses a fio de repetição por toda parte que Lula acabara preso porque se desejava impedir sua candidatura. Quem? Os golpistas, ora.

Não importa que ele tenha sido condenado a 12 anos de cadeia por corrupção e lavagem de dinheiro. E que lei assinada por Lula determine sem a menor margem de dúvida que um condenado por órgão colegiado não possa concorrer a cargo público.

Minta até cansar que sempre haverá gente para acreditar no que você diga. Funciona! Costuma funcionar. Não é também o que faz Jair Bolsonaro, deputado há quase 30 anos, ao se apresentar como não político? Ao dizer que tudo se revolve à bala?


Lula perdeu todos os recursos que impetrou para ser absolvido e solto. Simplesmente todos. E daí? É inocente. Mais inocente que nunca! E foi assim que, de dentro da cela, o encarcerado em Curitiba só fez crescer nas pesquisas de intenção de voto.

Ao desafiar a recente decisão da Justiça Eleitoral de negar registro à sua candidatura, que fez o PT às ordens de Lula? Continuou a fazer de conta no rádio e na tv que decisão final a respeito não havia. Então Lula para fazer o Brasil feliz de novo!

O tribunal reagiu punindo o partido com a retirada do ar de sua propaganda – que bom, mais uma prova da perseguição! Fernando Haddad, o falso candidato a vice de um partido sem candidato, foi denunciado por corrupção e lavagem de dinheiro.

Melhor ainda! A perseguição a Lula se estende agora ao seu substituto confirmando o discurso do PT. Uma vez que renuncie a lançar candidato à presidência, o PT escapará ao risco de não conseguir por Haddad no segundo turno.

Estará na oposição ao próximo governo seja quem for o presidente. E apostará no pior do pior para um dia voltar ao poder. Será assim se Lula preferir. Para que a romaria a Curitiba não cesse. Para que ele permaneça no comando.

Há saída que não seja o buraco?

A gente precisa achar outra maneira para a gente viver, um outro caminho para a civilização, porque o nosso é para o buraco
Fernando Meirelles

O trono de Adandozan, ou para que serve um museu

Agonglo, o oitavo rei do Daomé, governou o antigo reino africano por oito anos, de 1789 a 1797. Suas esposas lhe deram vários filhos, entre os quais Adanzan, ou Adandozan, que era seu herdeiro natural. Desde pequeno, porém, Adandozan se tornara conhecido pelo temperamento cruel e violento. Sentindo que sua vida chegava ao fim, o rei Agonglo perguntou ao oráculo de Fa se outro de seus filhos não seria melhor para governar o Daomé. O oráculo indicou Guezo, que era muito jovem para assumir o trono.

Pouco antes de falecer, Agonglo apareceu a seus súditos no mercado de Adjahito e anunciou sua vontade: enquanto o pequeno Guezo não chegasse à maioridade, Adandozan governaria como regente. Mal sabia o rei que, logo após sua morte, Adandozan daria início a um reinado sanguinário. Dentre as atrocidades que cometeu, destaca-se algo até então inédito na história do Daomé: a venda de seus compatriotas como escravos. Os daomeanos costumavam vender aos mercadores de escravos seus inimigos e prisioneiros de guerra, mas não seu próprio povo. Pois Adandozan, que era filho de outra mulher de Agonglo, vendeu como escravos a mãe de Guezo, Na Agontimé, e parte de sua família.

O reinado de Adandozan durou 22 anos, até ele ser destronado por Guezo com apoio da população insatisfeita. Uma das primeiras providências de Guezo foi enviar emissários ao Novo Mundo, em busca de sua mãe e de sua família. Um desses emissários, Dossuyévo, que falava português, foi até a Bahia e lá permaneceu três anos, sem conseguir encontrar Na Agontimé.

O Museu Histórico de Abomé guardou todos os tronos dos soberanos daomeanos. Todos, menos um: o de Adandozan. É provável que Guezo tenha feito represálias contra as atrocidades de seu meio-irmão, e uma delas talvez tenha sido se livrar de seu trono. Como um trono real tinha caráter sagrado, não era possível destruí-lo; mas era possível mandá-lo para bem longe. Para o outro lado do oceano, por exemplo.


Entre os 20 milhões de itens que integravam o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, um deles, classificado no inventário de 1844 com o número 6.000, era um “trono de régulo africano, de madeira esculpida”. Comparando as imagens desse trono com as peças do acervo do Museu Histórico de Abomé, não é difícil perceber que são praticamente idênticos. Será que Dossuyévo, embaixador do rei Guezo, trouxe o trono para o Brasil como um dos presentes destinados ao soberano brasileiro, como era praxe nas missões diplomáticas nessa época? É difícil ter certeza. É possível também que o trono tenha sido enviado pelo próprio Adandozan, já que uma carta dele a D. João VI, datada de 1811, faz menção ao envio de "uma das cadeiras da minha terra" como presente ao soberano português. Mas por que Adandozan enviaria seu próprio trono como presente? E, se não foi seu próprio trono mas apenas uma réplica, por que o trono de Adandozan é o único que está faltando no Museu Histórico de Abomé?

E qual teria sido o destino de Na Agontimé? Não se sabe ao certo, mas há pelo menos uma hipótese muito plausível. Na Casa das Minas, o terreiro mais antigo de São Luís, no Maranhão e um dos mais antigos do Brasil, venera-se a memória de sua fundadora, conhecida como Maria Jesuína. Ela foi a responsável pela introdução do culto às divindades da casa real do Daomé, divindades não encontradas em nenhum outro local no Novo Mundo. É muito provável que Na Agontimé e Maria Jesuína tenham sido a mesma pessoa.

Essas histórias, reconstruídas por Pierre Verger ao longo de muitos anos de pesquisa na África e no Brasil, nos levam a algumas perguntas inevitáveis no momento em que as cinzas do Museu Nacional mal terminaram de esfriar: quanto vale, para um país, conhecer sua própria história? Quanto vale, para um povo, saber de onde vieram seus antepassados, seus costumes, seu modo de vida? Quanto vale um objeto que condensa, em sua materialidade efêmera, todo esse conhecimento?

"Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos", dizia Nelson Rodrigues. Diante da tragédia do Museu Nacional, mais uma vez o Brasil é forçado a se perguntar que país ele quer ser. Um país não se faz apenas com coisas que podem ser medidas e precificadas. Um país não se faz apenas com coisas cuja “utilidade” imediata pode ser objetivamente demonstrada. Um país não se faz apenas com o presente.

É comum entre os brasileiros, inclusive entre os integrantes da elite política e econômica, a ideia de que um país com problemas tão drásticos de saúde, educação e segurança não pode se dar ao luxo de gastar recursos com cultura e patrimônio cultural, com ciência e tecnologia, com meio ambiente. Vamos resolver os problemas realmente sérios e urgentes, diz essa visão, e depois, quando tivermos tempo e se sobrar dinheiro, cuidamos do resto. É uma visão equivocada porque não percebe, ou não quer perceber, que a solução para os problemas de saúde, educação e segurança passa necessariamente pela cultura, pelo patrimônio cultural, pela ciência e tecnologia e pelo meio ambiente. Tudo está interligado. Não haverá saúde sem pesquisa científica e sem a preservação do meio ambiente, não haverá educação sem museus e outros equipamentos culturais, não haverá segurança sem um entendimento mínimo de como chegamos até aqui como nação e o que fazer para não afundarmos ainda mais no atoleiro em que estamos.

Durante seis anos trabalhei no Museu Nacional e lá vivi alguns dos momentos mais importantes e felizes da minha vida. O incêndio que consumiu o trono do rei Adandozan e outros milhões de peças destruiu também um pedaço da minha vida e da vida de milhões de outros brasileiros. É muito difícil encontrar palavras para dar conta da dor, da tristeza e da sensação de fracasso. Que essas histórias sirvam para mostrar um pouco do que perdemos, do que continuaremos perdendo enquanto não tivermos coragem de ser outro país.
Gustavo Pacheco

Os donos do incêndio

A notícia continua a causar espanto: um incêndio destruiu no domingo passado a mais antiga instituição científica do País, o Museu Nacional, que, no semestre passado, comemorou seu bicentenário. Diante da tragédia absolutamente inadmissível, é preciso tentar entender as causas e as devidas responsabilidades. Tal descalabro com o patrimônio histórico e cultural não pode passar em branco, também para que não se repita com outras instituições.


O Museu Nacional está vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que por sua vez recebe recursos da União e tem autonomia para administrá-los como bem entender. A responsabilidade pela manutenção e conservação do Museu Nacional cabe, portanto, à UFRJ. Autonomia universitária implica responsabilidade e transparência – a população tem direito de saber como os recursos públicos são geridos e como o patrimônio público sob sua administração é preservado.

Houve quem tenha se apressado em culpar o ajuste fiscal do governo Temer pelas más condições do Museu Nacional. No entanto, não existe tal relação de causa e efeito. Por exemplo, entre 2014 e 2017, houve um aumento dos recursos da União destinados à UFRJ. Em 2014, a universidade recebeu R$ 2,6 bilhões. Em 2017, foram R$ 3,1 bilhões. O problema é que, nesse período, o valor gasto pela UFRJ com pagamento de pessoal saltou de R$ 2,1 bilhões para R$ 2,6 bilhões. O aumento de R$ 500 milhões foi para o funcionalismo.

Além da gestão no mínimo temerária do patrimônio público, chama a atenção na atual reitoria da UFRJ o seu aparelhamento político. O reitor da UFRJ, Roberto Leher, é filiado ao PSOL. A vice-reitora, Denise Fernandes Lopez Nascimento, também é filiada ao PSOL, assim como a pró-reitora de Extensão, Maria Mello de Malta, e o pró-reitor de Pessoal, Agnaldo Fernandes. Há também outros dois pró-reitores filiados ao PCdoB: o pró-reitor de Graduação, Eduardo Gonçalves, e o pró-reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças, Roberto Antonio Gambine Moreira.

É um acinte que a administração da maior universidade federal do País seja controlada por dois partidos políticos que, como se sabe, difundem uma ideologia excludente, avessa ao diálogo e tantas vezes inimiga das liberdades e garantias fundamentais. Só num ambiente de pluralismo e de respeito à liberdade de pensamento e de expressão é que a universidade pode cumprir sua relevante função social. Ao mesmo tempo, não é mera casualidade que a tragédia do Museu Nacional tenha ocorrido na gestão dessas duas legendas, tão críticas da responsabilidade fiscal e de uma gestão profissional dos recursos públicos.

O incêndio do Museu Nacional deve ser um chamado à responsabilidade fiscal e administrativa. Certamente, há modos desastrosos de realizar um corte de gastos públicos, como, por exemplo, diminuir igualmente todos os valores do orçamento, sem distinguir entre o que é prioritário e o que é acessório. Isso não revoga urgente necessidade de um profundo ajuste fiscal. Basta ver que houve um aumento nas receitas gerais da UFRJ e, ao mesmo tempo, nos últimos anos, houve uma diminuição das verbas que a universidade, em sua autonomia administrativa, destinou para o Museu Nacional.

É preciso aprender a lição do Museu Nacional. Não é a austeridade na gestão dos gastos públicos que põe em risco a preservação do patrimônio histórico e cultural do País. O que produz graves perigos é antes a ideia de que os cofres públicos são copiosos a ponto de dispensar uma eficiente gestão dos recursos.

É politicamente fácil culpar o governo federal pelo incêndio ocorrido na Quinta da Boa Vista. Mas, além de não encontrar respaldo na realidade, essa atitude abre caminho para novas tragédias, já que não enfrenta as verdadeiras causas da lamentável situação do Museu Nacional e de tantos outros equipamentos públicos. O incêndio de domingo passado deixou uma mensagem clara: a irresponsabilidade com o dinheiro público sempre causa graves danos ao País.

A realidade não está na TV

Há na história da humanidade um certo número de acontecimentos que, graças aos jornais, ao rádio, à televisão, imediatamente dão a conhecer suas pretensões de pertencer à história. E, no entanto, tudo o que diz respeito a cada um de nós, condenados que somos, na maioria dos casos, ao anonimato histórico, tudo isso é também história. 



Os milhões de tele-espectadores que, confortavelmente afundados em suas poltronas, assistem a bombardeios, a sequestros de aviões, a congressos políticos, a concursos de beleza ou a jogos de futebol imaginam ingenuamente que estão vendo os acontecimentos mais importantes da vida da humanidade. 

Ora, basta que um desses telespectadores, sentido uma dor imprevista no coração, escorregue de sua poltrona, e compreenda que está morrendo, para que tal fato lhe pareça o mais importante, e não mais o que continua a desfilar na tela.
Ievguêni Ievtuchenko, "Os frutos selvagens da Sibéria"

No Brasil, ganha mais quem pressiona ou chantageia?

O presidente Michel Temer apoiou a proposta de aumento dos subsídios dos ministros do STF, que depende de aprovação do Congresso Nacional.

Com isso, além de os juízes passarem a ganhar mais, haverá elevação dos gastos dos outros Poderes, pois subirá automaticamente a régua que limita as remunerações mais altas do serviço público brasileiro.


Segundo a Constituição, o valor pago a cada ministro do STF é o teto dos vencimentos dos servidores.

Há dois pontos incômodos.

O primeiro é a total falta de clareza da política salarial que orienta o governo.

O país não está passando por grave crise fiscal que exige reformas como a da Previdência? E mesmo assim continua havendo espaço para gastar mais com pessoal?

Bem, talvez existam defasagens e desequilíbrios nas remunerações, mas será justamente o topo da pirâmide do serviço público que tem de ser atendido agora?

Como a política salarial pública é difícil de compreender, e não soa coerente, seu único critério parece ser o fato bruto do poder. No funcionalismo brasileiro, ganha mais quem pressiona ou chantageia?

Como o Judiciário convenceu o presidente para conseguir seu aumento?

O noticiário fala em barganha. Os juízes deixariam de receber o auxílio-moradia que obtiveram de modo precário com uma liminar do STF.

Isso evitaria o aumento de despesas, ao menos no orçamento do Judiciário. E a classe dos juízes trocaria a tese jurídica incerta, usada no pedido de liminar, por um aumento permanente.
O modo como as notícias correram provocou um segundo incômodo.

Sugeriu-se que alguém teria feito promessas quanto à futura decisão jurisdicional do STF sobre o auxílio-moradia. Não é crível, porém.

Ministros do STF têm tomado decisões polêmicas, algumas difíceis de entender ou aceitar, mas o colegiado jamais deu motivos para o país suspeitar da honestidade de seus membros.

Certo ou errado, o ministro Luiz Fux deu a liminar por haver se convencido da tese jurídica que lhe foi apresentada.

Nem ele nem os demais ministros, que ainda não se manifestaram, mudariam de ideia sobre a interpretação do direito em troca de vantagens para sua categoria. O STF pode ter seus problemas, mas é um tribunal sério.

Há uma forma honesta de implementar a troca.

O STF, usando sua prerrogativa de apresentar projetos de lei ao Congresso, pode propor a revogação da norma legal que previu o auxílio-moradia.

Com a aprovação dessa mudança na Lei Orgânica da Magistratura, a ação judicial perderia seu objeto.

Não por causa de interpretações de conveniência, mas porque o Legislativo, com seu poder democrático, terá encerrado o assunto.
Carlos Ari Sundfeld

Pensamento do Dia


Seu telefone nasceu sobre uma montanha de resíduos tóxicos

Daqui até 2020 haverá cerca de cinco bilhões de pessoas no mundo que usarão um smartphone (ou telefone inteligente). Cada dispositivo é fabricado com numerosos metais preciosos e muitas de suas principais funcionalidades não seriam possíveis sem eles. Alguns destes metais, como o ouro, são bem conhecidos, mas outros, como o térbio, parecem algo estranho.

A extração destes metais é uma atividade fundamental sobre a qual se baseia a economia mundial moderna. Mas o custo ambiental pode ser enorme, provavelmente muito maior do que imaginamos. Vamos examinar os principais metais empregados na fabricação de smartphones, o uso que eles têm e o custo ambiental de extraí-los do solo.

O ferro (20%), o alumínio (14%) e o cobre (7%) são os três metais mais comuns em um smartphone médio. O ferro é usado nos alto-falantes, nos microfones e nas carcaças de aço inoxidável. O alumínio é uma alternativa leve ao aço inoxidável e também aparece na fabricação do vidro resistente usado nas telas desses dispositivos. O cobre é empregado em circuitos elétricos.

No entanto, a extração destes metais da terra no processo de mineração produz enormes quantidades de resíduos sólidos e líquidos, que normalmente são armazenados em imensos reservatórios que podem abarcar superfícies de vários quilômetros quadrados. Os vazamentos desastrosos de resíduos de mineração ocorridos nos últimos anos evidenciam o perigo de se aplicar métodos de construção inadequados e métodos de supervisão frouxos.

O maior derramamento registrado ocorreu em novembro de 2015, quando, após o rompimento de uma barragem em uma mina de ferro no Estado de Minas Gerais, cerca de 33 milhões de metros cúbicos de resíduos de alto teor de ferro foram parar no rio Doce (o suficiente para encher 23.000 piscinas olímpicas). Os resíduos inundaram cidades vizinhas, provocaram a morte 19 pessoas e percorreram 650 quilômetros até chegar ao Oceano Atlântico 17 dias depois.

Esse foi um dos 40 vazamentos de resíduos da mineração nos últimos dez anos, e as consequências ecológicas e humanas a longo prazo ainda são amplamente desconhecidas. Em suma, o que é certo é que, à medida que aumenta nossa avidez por tecnologia, os reservatórios de resíduos de mineração crescem em número e tamanho e, portanto, o risco de rompimento também aumenta.

É frequente também o uso de ouro e estanho em smartphones. A extração desses metais é a causa de graves desastres ecológicos que se estendem desde a Amazônia peruana até as ilhas tropicais da Indonésia.

Nos telefones celulares, o ouro é usado principalmente para fabricar conectores e cabos. A mineração de ouro é uma das principais causas do desmatamento na Amazônia. Além disso, a extração de ouro gera resíduos de alto teor de cianeto e mercúrio, duas substâncias altamente tóxicas que podem contaminar a água potável e a pesca, o que tem sérias repercussões na saúde humana.

Na área eletrônica o estanho é usado na soldagem. O óxido de índio e estanho é usado para aplicar um revestimento fino, transparente e condutor às telas dos smartphones, responsável pela função de tela sensível ao toque. Os mares ao redor das ilhas Bangka e Belitung, na Indonésia, fornecem cerca de um terço da oferta mundial deste metal. No entanto, a dragagem em larga escala do fundo do mar para extrair terras de alto teor de estanho destruiu seu valioso ecossistema de recifes de coral, e o declínio do setor pesqueiro causou problemas econômicos e sociais.

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O Brasil não é uma facção criminosa para ser comandado de dentro da cadeia
Jair Bolsonaro

Incêndio do Museu Nacional foi um crime

Os 20 milhões de itens expostos ao público, objetos de pesquisa e testemunhas à mão da memória e da História do Brasil ainda ardiam no incêndio que devastou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, por não haver água nos hidrantes do prédio, e vários oportunistas já vinham à tona para se aproveitarem da tragédia.

O esqueleto de Luzia, a mulher mais antiga do continente, resistente a 12 mil anos de intempéries, era apenas uma imagem virtual quando os repórteres dos telejornais, enfrentando a desinformação absoluta com a necessidade de falar alguma coisa, noticiaram que a polícia terá de descobrir e revelar se o incêndio foi acidental ou criminoso. Truísmo é pouco para definir essa platitude. Minhas senhoras, meus senhores, o que se assistiu na noite de domingo passado foi ao assassinato sem piedade de milhares de anos da História do País e da humanidade pelas castas que dilapidam há séculos o patrimônio público. A documentação do registro da passagem do mamífero bípede, impropriamente definido como racional, e da identidade nacional de uma pretensa civilização, instalada nestes tristes trópicos em substituição à barbárie dos silvícolas, anterior a ela, virou cinzas molhadas pelos jatos impotentes de uma (!) escada de bombeiros jorrando água suficiente para apagar uma fogueira junina, se muito.

A primeira instituição científica nacional, fundada há 200 anos por dom João VI, o rei fujão de Portugal, sucumbiu a descaso, insensibilidade, estupidez, incompetência, desídia e rapina de sórdidas castas elitistas de políticos ambiciosos, gestores públicos irresponsáveis e intelectuais militantes.


Os acadêmicos José Sarney e Fernando Henrique, o breve Itamar Franco, os populistas Lula da Silva e Dilma Rousseff e os oportunistas Fernando Collor e Michel Temer não deram a museu algum um segundo de atenção, só usada para ludibriar eleitores e comprar congressistas para se reeleger ou escapar de impeachment, fugir de inquéritos ou prorrogar prerrogativa de foro.

Ora, direis, museu não dá voto. Aliás, é difícil encontrar algo de interesse público que dê votos a quem os disputa na arena cada vez menos ética da política brasileira. Votos se vendem e se compram com vil metal, empregos privilegiados na estroina e corrompida máquina pública nacional e também ideologias generosas somente na aparência. A gestão do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, por exemplo, cabe à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cuja administração é compartilhada por partidos da extrema esquerda sem representatividade popular, PSOL e PCdoB, em aliança com representantes da elite partidária que dá as cartas na República, embora se denomine como “dos Trabalhadores”.

A cúpula dos três Poderes, a intelligentsia acadêmica e, pasme, os responsáveis diretos pela indigência da instituição que ardeu choram e se lamuriam pelo destino dela, como gângsteres que levam flores ao velório das vítimas de sua brutalidade. O presidente Temer divulgou nota oficial quando ainda faltava água para apagar o fogo: “Incalculável para o Brasil a perda do acervo do Museu Nacional. Hoje é um dia trágico para a museologia de nosso país. Foram perdidos duzentos anos de trabalho, pesquisa e conhecimento. O valor para nossa história não se pode mensurar, pelos danos ao prédio que abrigou a família real durante o Império. É um dia triste para todos brasileiros”.

O ministro da Cultura, Sérgio de Sá Leitão, disse que “certamente a tragédia poderia ter sido evitada”, numa tentativa absurda de transferir apenas para os governos anteriores as causas do desastre, que, segundo Walter Neves, antropólogo que pesquisava o esqueleto de Luzia, foi “anunciado”. A culpa não é apenas do governo atual, é claro, mas é principalmente deste. Leitão age como um sujeito que cai do décimo andar, sai caminhando e pergunta aos transeuntes o que aconteceu. E ninguém foi demitido!

É inútil querer que os incendiários da Quinta da Boa Vista respondam pela omissão do Estado, que se negou a gastar caraminguás para dotar o mais antigo museu nacional de chuveirinhos automáticos e extintores de incêndio que a lei exige de qualquer boteco da periferia. Mas, já que não se dispuseram a abrir mão dos bilhões do Fundo Partidário para salvar o museu extinto, que nos poupem de sua hipocrisia. E sendo inútil exigir que façam algo para a tragédia não se repetir no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, podiam fazer o que sempre fizeram: esquecer o tema. E nada de reconstruir o prédio para as gerações futuras se esquecerem de sua participação no crime.

Os candidatos ao posto mais elevado, cujos currículos frustram os cidadãos carentes de um presidente que evite que a economia arda, sabotada pela corrupção do PT, de seus aliados, entre os quais o MDB, e dos falsos oponentes do PSDB, reduziriam o teor de cinismo de suas campanhas se não chorassem sobre a aguinha que não evitou que o incêndio se alastrasse.

A Universidade de São Paulo (USP) e o ex-governador do Estado Geraldo Alckmin devem explicações sobre o cupim que ameaça a integridade das paredes do Museu do Ipiranga, fechado à visitação desde 2015 e com obras a serem iniciadas no ano que vem. Ou quando, enfim, não chegarem as calendas gregas. Fernando Haddad, o estepe de Lula, não terá como explicar seu silêncio no governo do patrono, quando foi ministro de Educação, sobre a ominosa situação em que a memória nacional embolora, apodrece e arde, enquanto os chefões partidários enriquecem ilicitamente. Nenhum dos dois projetos assinados por Jair Bolsonaro e aprovados em seus 27 anos na Câmara diz respeito a esse assunto. A militância ecológica de Marina Silva não inclui uma denúncia da penúria dos museus, tema também excluído da enxúndia demagógica de Ciro Gomes.

Só restará como testemunho da inépcia deles Bendegó, meteorito que caiu perto de Canudos e resistiu ao fogo feroz.

Lula bate o pé e insiste com a farsa

Estelionato é “obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”, segundo o Código Penal brasileiro. Pena: de um a cinco anos de reclusão.

Estelionato eleitoral é “um conceito da ciência política utilizada para descrever os casos de candidatos eleitos com uma plataforma ideológica que, após a eleição, adotam um programa de signo ideológico contrário”, segundo a Wikipédia. Pena: nenhuma.

Misture as duas definições, bata bem e não tenha dúvida: Lula é um estelionatário. Sua falsa candidatura a presidente da República foi o meio fraudulento encontrado por ele para se beneficiar e conferir vantagem ilícita a quem venha a substitui-lo.

Estelionato eleitoral só se configura depois que as urnas cantam seu resultado, que o eleito começa a governar e a fazer o contrário do que prometeu. A criatividade assaz louvada do brasileiro acaba de patentear o estelionato eleitoral que dispensa tudo isso.

A candidatura de Lula não existe, jamais existiu. Ele não poderia ser candidato, impedido por lei que carrega sua assinatura. Mas foi preciso que a mais alta corte da Justiça Eleitoral esfregasse tudo isso na cara dele e na nossa cara para que… Para quê o quê?

Para nada. Para que parte de nós continue acreditando, por devoção ou ignorância, que Lula será, sim, candidato – quem sabe, não é? Fernando Haddad voou ontem a Curitiba com a esperança de voltar de lá ungido pelo encarcerado ilustre.

Voltou dizendo que o candidato será Lula para sempre, ou até quando ele quiser, ou até que se esgote o prazo de 10 dias dado pela Justiça para que o PT indique outro candidato. Pobre do Haddad, que imagina estar cumprindo bem o seu papel de capacho.

E se Lula decidir no último minuto que o melhor para o PT (leia-se: o melhor para ele) seria não indicar ninguém, ficando de fora da eleição presidencial? Hipótese remota? Quem disse? Há gente no partido, não sei se muita ou pouca, que deseja isso.

As alianças nos Estados já foram feitas. Faltam apenas 34 dias para o primeiro turno. O cadáver de Lula seguiria sendo explorado por quem já o faz. O choro, o ranger de dentes, a denúncia de mais um golpe não perderiam seus efeitos dramáticos e eleitorais.

De resto, convenhamos, seria muito mais coerente. Por que disputar se o candidato líder de todas as pesquisas de intenção de votos foi vetado por uma justiça infame, a serviço dos golpistas, reles capitães do mato de poderosos interesses internacionais?

Lula nunca foi de dividir o palco com ninguém (não é verdade, José Dirceu? Não é verdade, Antônio Palocci ou Tarso Genro?). Deu um chega para lá em Ciro Gomes só para que ele não ganhasse os poucos segundos de televisão que o PSB tinha para lhe dar.

PT é o nome de fantasia do lulismo. Os que se reuniram em torno de Lula para fundar o partido ou já morreram de morte morrida ou perderam relevância. Alguns ainda vagam arrastando correntes que já não fazem mais barulho nem arrancam fagulhas do chão.

Não se duvide da ousadia de um sobrevivente, que é o que Lula é. Conta a história oficial que ele sobreviveu à seca do Nordeste, à miséria da periferia de São Paulo, à amputação de um dedo quando usava macacão e à perseguição militar como líder sindical.

Sobreviveu à desconfiança ao seu nome de tendências mais radicais da esquerda, a três derrotas como candidato a presidente, aos desafios de governar um país complicado, de eleger e reeleger sua sucessora e de enriquecer como jamais pensara. (Ufa! Basta!)

Só sucumbiu ao rigor do juiz Sérgio Moro. Desde então estrebucha na maca para fingir que ainda tem futuro como líder político. Futuro não tem. Diz a Lei da Ficha Limpa que o ficha suja fica inelegível por oito anos, além do tempo a que foi condenado.

No caso de Lula, ele pegou 12 anos de cadeia. Não importa que saia de lá antes do tempo previsto. Importa que estará com 93 anos de idade quando puder se candidatar de novo. Mesmo que viva tanto, é improvável que o Brasil de 2038 lhe dê ouvido.

Ricardo Noblat

Brasil vai pela porta de serviço


Puberdade democrática

Quanto vale a democracia para você? E para o seu candidato a presidente da República? Para mim ela é um valor absoluto, não passível de negociação, flexibilização, tergiversação ou relativização. O compromisso com ela tem de ser total. Questão de princípio. Um limite rígido, que separa o aceitável do inaceitável.

No Brasil, a democracia entra na puberdade. Como todo adolescente, se acha plena, invencível. Testa seus próprios limites correndo riscos tolos, bestas. Olha para o passado dos pais com desdém, como aquele passado embolorado que aconteceu com eles, porque são velhos, mas jamais se repetirá com ele, o jovem malandrão.


Nas democracias mais velhas, portanto menos fanfarronas, a institucionalidade é um bem, não a tia chata que você tem de driblar a toda hora para pegar o carro escondido.

É algo com que não se brinca, porque se sabe que qualquer quebra institucional, por aparentemente menor que seja, abre uma brecha para outras maiores e pode levar o barco a afundar.

No Brasil adolescente, um presidente da mais alta Corte da Justiça combina com o presidente do Senado de mudar nas coxas a lei que trata do impeachment e fica tudo por isso mesmo. Um partido força os limites das instituições até esgarçar seu tecido, insistindo na candidatura à Presidência da República de um preso, condenado em duas instâncias por crimes comuns (corrupção e lavagem de dinheiro), e tudo bem.

No Brasil adolescente, um candidato a presidente e seu filho, deputado federal, dizem que vão resolver os problemas do País “nem que seja a bala” e são aplaudidos por uma turba cada vez mais fanática e mais disposta ao tudo ou nada.

Este mesmo candidato diz que se tiverem de morrer “10, 20” para que se resolva um problema de segurança, “paciência”, numa confissão prévia de falência do Estado, e quem questiona isso – uma vez que as leis do País não preveem essa permissão – é perseguido como defensor do “politicamente correto” ou “de bandido”.

Nada disso. O que existe é lei. Estado. Constituição. Não se resolve a violência transigindo com a barbárie, sob pena de a democracia sucumbir. Simples assim. Sabem disso todos aqueles que têm na defesa das instituições um valor, e não um discurso de conveniência. Não há meio termo, pois se houver, foi cruzada a barreira que permite relativizar tudo o mais. E não se pode fazer isso.
Numa democracia que já tivesse superado a fase das espinhas purulentas, nunca uma Corte eleitoral – por si só uma excentricidade juvenil – se reuniria a portas fechadas depois de decidir que o preso de que se falou antes não pode, mesmo, ser candidato e seu partido não pode usar o horário eleitoral até que indique um candidato apto para, logo em seguida, fechar as portas e decidir que tudo bem, vai. É só por hoje. Amanhã a gente cumpre a decisão. Afinal, já ficou tarde.

Isso é coisa de moleque que pega o carro do pai escondido, não de gente que veste toga. Isso dá margem não para que o partido em questão se sinta contemplado, mas que teste ainda mais os limites das instituições, como vem fazendo sem reserva, não se furtando nem a falsear a História numa narrativa farsesca.
Toda essa abundância de molecagens, à esquerda, à direita, vindo dos próprios Poderes constituídos, numa confluência de irresponsabilidade com o aperfeiçoamento da democracia, tem consequências graves. Elas são diárias.

Aparecem na rápida corrosão do tecido social, que se pode notar na falta de educação geral nas redes sociais, na propensão de uma parcela grande do eleitorado a votar numa ideia fantasiosa de passado e de outra enorme a votar com o fígado.

Já passou da hora de o Brasil superar a adolescência. Sob pena de ficar senil sem nunca ter sido adulto.

O Brasil queimou - e não tinha água para apagar o fogo

O Brasil queimou – e não tinha água para apagar o fogo

Eu vim ao Rio para um evento no Museu do Amanhã. Então descobri que não tinha mais passado

Então descobri que não tinha mais passado.

Diante de mim, o Museu Nacional do Rio queimava.


O crânio de Luzia, a “primeira brasileira”, entre 12.500 e 13 mil anos, queimava. Uma das mais completas coleções de pterossauros do mundo queimava. Objetos que sobreviveram à destruição de Pompeia queimavam. A múmia do antigo Egito queimava. Milhares de artefatos dos povos indígenas do Brasil queimavam.

Vinte milhões de memória de alguma coisa tentando ser um país queimavam.

O Brasil perdeu a possibilidade da metáfora. Isso já sabíamos. O excesso de realidade nos joga no não tempo. No sem tempo. No fora do tempo.

O Museu Nacional em chamas. Um bombeiro esguichando água com uma mangueira um pouco maior do que a que eu tenho na minha casa. O Museu Nacional queimando. Sem água em parte dos hidrantes, depois de quatro horas de incêndio ainda chegavam caminhões-pipa com água potável. O Museu Nacional queimando. Uma equipe tentava tirar água do lago da Quinta da Boa Vista. O Museu Nacional queimando. A PM impedia as pessoas de avançar para tentar salvar alguma coisa. O Museu Nacional queimando. Outras pessoas tentavam furtar o celular e a carteira de quem tentava entrar para ajudar ou só estava imóvel diante dos portões tentando compreender como viver sem metáforas.

Brasil, é você. Não posso ser aquele que não é.

O Museu Nacional queimando.

O que há mais para dizer agora que as palavras já não dizem e a realidade se colocou além da interpretação?

Diante do Museu Nacional em chamas, de costas para o palácio, de frente para onde deveria estar o povo, Dom Pedro II em estátua. Sua família tinha tentado inventar um país e o fundaram sobre corpos humanos. Seu avô, Dom João VI, criou aquele museu no Palácio de São Cristóvão. Dom Pedro II está no centro, circunspecto, um homem feito de pedra, um imperador. Diante da parte esquerda do museu, indígenas de diferentes etnias observam as chamas como se mais uma vez fossem eles que estivessem queimando. Estão. É o maior acervo de línguas indígenas da América Latina, diz Urutau Guajajara. É a nossa memória que estão apagando. É o golpe, é o golpe. Poderiam ter salvo, e não salvaram, ele grita.

Nunca salvaram. Há 500 anos não salvam.

As costas de Pedro ferviam.

Quando soube que o museu queimava, eu dividi um táxi com um jornalista britânico e uma atriz brasileira com uma câmera na mão. “Não é só como se o British Museum estivesse queimando, é como se junto com ele estivesse também o Palácio de Buckingham”, disse Jonathan Watts. “Não há mais possibilidade de fazer documentário”, afirmou Gabriela Carneiro da Cunha. “A realidade é Science Fiction.”

Eu, que vivo com as palavras e das palavras, não consigo dizer. Sem passado, indo para o Museu do Amanhã, sou convertida em muda. Esvazio de memória como o Museu Nacional. Chamas dentro de todo ele, uma casca do lado de fora. Sou também eu. Uma casca que anda por um país sem país. Eu, sem Luzia, uma não mulher em lugar nenhum.

A frase ecoa em mim. E ecoa. Fere minhas paredes em carne viva.

“O Brasil é um construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais.”

A frase reverbera nos corredores vazios do meu corpo. Se a primeira brasileira incendiou-se, que brasileira posso ser eu?

O que poderia expressar melhor este momento? A história do Brasil queima. A matriz europeia que inventou um palácio e fez dele um museu. Os indígenas que choram do lado de fora porque suas línguas se incineram lá dentro. E eu preciso alcançar o Museu do Amanhã. Mas o Brasil já não é o país do futuro. O Brasil perdeu a possibilidade de imaginar um futuro. O Brasil está em chamas.

O Museu Nacional sem recursos do Governo federal. Os funcionários do Museu Nacional fazendo vaquinha na Internet para reabrir a sala principal. O Museu Nacional morrendo de abandono. O Museu Nacional sem manutenção. O Rio de Janeiro. Flagelado e roubado e arrancado Rio de Janeiro. Entre todos os Brasis, tinha que ser o Rio.

Ouço então um chefe de bombeiros dar uma coletiva diante do Museu Nacional, as labaredas lambem o cenário atrás dele. O bombeiro explica para as câmeras de TV que não tinha água, ele conta dos caminhões-pipa. E ele declara: “Está tudo sob controle”.

Eu quero gargalhar, me botar louca, queimar junto, ser aquela que ensandece para poder gritar para sempre a única frase lúcida que agora conheço: “O Museu Nacional está queimando! O Museu Nacional está queimando!”.

O Brasil está queimando.

E o meteoro estava dentro do museu.

Dano maior do que o incêndio

A destruição do Palácio de São Cristóvão não tem solução.

O preço que o Brasil pagou pela negligência de seu patrimônio cultural é enorme, uma triste metáfora de que a falta de atenção às instituições que formam a coluna vertebral de um país, e a cultura é uma delas, acaba provocando danos irreparáveis 
Editorial - El País

A cultura da reação

Falta dinheiro para tudo no serviço público, especialmente para ações preventivas, mas basta acontecer uma tragédia para as autoridades “constituídas” se desmancharem em prantos e se desdobrarem em público, achando recursos onde não havia, como se a emergência, após a casa arrombada pelo ladrão, obrasse milagres.

Foi assim com a Lei dos Crimes Hediondos, após o assassinato de uma atriz por um colega de trabalho e sua mulher enciumada. Está sendo assim agora, com o incêndio que consumiu o Museu Nacional e todo o seu acervo.


Não havia recursos para manutenção do museu. Até a Universidade Federal do Rio de Janeiro, dirigida por forças que se dizem amantes da cultura, reduziu de R$ 600 mil para R$ 300 mil os repasses ao bicentenário centro de cultura.

O Ministério da Cultura andou a passos de tartaruga para concluir processo de destinação de verbas para o museu, em junho deste ano, e continuou em câmera lenta para liberar o que foi aprovado, até que vieram as chamas e engoliram tudo. 

De repente, o presidente Michel Temer enfiou a mão na botija e arranjou R$ 15 milhões para recuperar o que foi destruído. Para impedir a destruição, não havia um centavo.

Predomina, no Estado brasileiro, a cultura da reação. Não há policiamento na rua, mas basta ocorrer um crime grave para o governo mobilizar um aparato policial para cuidar da cena do delito, como se aquele efetivo estivesse ali para impedir o descanso do morto.

Miguel Lucena