quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O trono de Adandozan, ou para que serve um museu

Agonglo, o oitavo rei do Daomé, governou o antigo reino africano por oito anos, de 1789 a 1797. Suas esposas lhe deram vários filhos, entre os quais Adanzan, ou Adandozan, que era seu herdeiro natural. Desde pequeno, porém, Adandozan se tornara conhecido pelo temperamento cruel e violento. Sentindo que sua vida chegava ao fim, o rei Agonglo perguntou ao oráculo de Fa se outro de seus filhos não seria melhor para governar o Daomé. O oráculo indicou Guezo, que era muito jovem para assumir o trono.

Pouco antes de falecer, Agonglo apareceu a seus súditos no mercado de Adjahito e anunciou sua vontade: enquanto o pequeno Guezo não chegasse à maioridade, Adandozan governaria como regente. Mal sabia o rei que, logo após sua morte, Adandozan daria início a um reinado sanguinário. Dentre as atrocidades que cometeu, destaca-se algo até então inédito na história do Daomé: a venda de seus compatriotas como escravos. Os daomeanos costumavam vender aos mercadores de escravos seus inimigos e prisioneiros de guerra, mas não seu próprio povo. Pois Adandozan, que era filho de outra mulher de Agonglo, vendeu como escravos a mãe de Guezo, Na Agontimé, e parte de sua família.

O reinado de Adandozan durou 22 anos, até ele ser destronado por Guezo com apoio da população insatisfeita. Uma das primeiras providências de Guezo foi enviar emissários ao Novo Mundo, em busca de sua mãe e de sua família. Um desses emissários, Dossuyévo, que falava português, foi até a Bahia e lá permaneceu três anos, sem conseguir encontrar Na Agontimé.

O Museu Histórico de Abomé guardou todos os tronos dos soberanos daomeanos. Todos, menos um: o de Adandozan. É provável que Guezo tenha feito represálias contra as atrocidades de seu meio-irmão, e uma delas talvez tenha sido se livrar de seu trono. Como um trono real tinha caráter sagrado, não era possível destruí-lo; mas era possível mandá-lo para bem longe. Para o outro lado do oceano, por exemplo.


Entre os 20 milhões de itens que integravam o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, um deles, classificado no inventário de 1844 com o número 6.000, era um “trono de régulo africano, de madeira esculpida”. Comparando as imagens desse trono com as peças do acervo do Museu Histórico de Abomé, não é difícil perceber que são praticamente idênticos. Será que Dossuyévo, embaixador do rei Guezo, trouxe o trono para o Brasil como um dos presentes destinados ao soberano brasileiro, como era praxe nas missões diplomáticas nessa época? É difícil ter certeza. É possível também que o trono tenha sido enviado pelo próprio Adandozan, já que uma carta dele a D. João VI, datada de 1811, faz menção ao envio de "uma das cadeiras da minha terra" como presente ao soberano português. Mas por que Adandozan enviaria seu próprio trono como presente? E, se não foi seu próprio trono mas apenas uma réplica, por que o trono de Adandozan é o único que está faltando no Museu Histórico de Abomé?

E qual teria sido o destino de Na Agontimé? Não se sabe ao certo, mas há pelo menos uma hipótese muito plausível. Na Casa das Minas, o terreiro mais antigo de São Luís, no Maranhão e um dos mais antigos do Brasil, venera-se a memória de sua fundadora, conhecida como Maria Jesuína. Ela foi a responsável pela introdução do culto às divindades da casa real do Daomé, divindades não encontradas em nenhum outro local no Novo Mundo. É muito provável que Na Agontimé e Maria Jesuína tenham sido a mesma pessoa.

Essas histórias, reconstruídas por Pierre Verger ao longo de muitos anos de pesquisa na África e no Brasil, nos levam a algumas perguntas inevitáveis no momento em que as cinzas do Museu Nacional mal terminaram de esfriar: quanto vale, para um país, conhecer sua própria história? Quanto vale, para um povo, saber de onde vieram seus antepassados, seus costumes, seu modo de vida? Quanto vale um objeto que condensa, em sua materialidade efêmera, todo esse conhecimento?

"Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos", dizia Nelson Rodrigues. Diante da tragédia do Museu Nacional, mais uma vez o Brasil é forçado a se perguntar que país ele quer ser. Um país não se faz apenas com coisas que podem ser medidas e precificadas. Um país não se faz apenas com coisas cuja “utilidade” imediata pode ser objetivamente demonstrada. Um país não se faz apenas com o presente.

É comum entre os brasileiros, inclusive entre os integrantes da elite política e econômica, a ideia de que um país com problemas tão drásticos de saúde, educação e segurança não pode se dar ao luxo de gastar recursos com cultura e patrimônio cultural, com ciência e tecnologia, com meio ambiente. Vamos resolver os problemas realmente sérios e urgentes, diz essa visão, e depois, quando tivermos tempo e se sobrar dinheiro, cuidamos do resto. É uma visão equivocada porque não percebe, ou não quer perceber, que a solução para os problemas de saúde, educação e segurança passa necessariamente pela cultura, pelo patrimônio cultural, pela ciência e tecnologia e pelo meio ambiente. Tudo está interligado. Não haverá saúde sem pesquisa científica e sem a preservação do meio ambiente, não haverá educação sem museus e outros equipamentos culturais, não haverá segurança sem um entendimento mínimo de como chegamos até aqui como nação e o que fazer para não afundarmos ainda mais no atoleiro em que estamos.

Durante seis anos trabalhei no Museu Nacional e lá vivi alguns dos momentos mais importantes e felizes da minha vida. O incêndio que consumiu o trono do rei Adandozan e outros milhões de peças destruiu também um pedaço da minha vida e da vida de milhões de outros brasileiros. É muito difícil encontrar palavras para dar conta da dor, da tristeza e da sensação de fracasso. Que essas histórias sirvam para mostrar um pouco do que perdemos, do que continuaremos perdendo enquanto não tivermos coragem de ser outro país.
Gustavo Pacheco

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