quinta-feira, 12 de março de 2020

Pensamento do Dia


Coronavírus pode destruir a saúde e a economia do Brasil

Como uma epidemia global de síndrome respiratória aguda severa (sars em inglês) se assemelha a uma crise econômica? Qual a relevância do câncer para compreendera economia? Por que um especialista em crise precisa saber um pouco de medicina?

Eu não pretendia ser economista. Circunstâncias da vida me levaram a estudar e a seguir carreira na área, embora minha ideia fosse fazer medicina. O interesse na ciência médica, entretanto, permaneceu vivo e me levou a uma longa trajetória de estudos e leituras científicas nas suas duas áreas que mais me fascinavam: virologia e oncologia. A virologia e a oncologia me aproximaram das crises econômicas.

Escrevi minha tese de doutorado, desenvolvida na London School of Economics, sobre crises financeiras. Considerem o sistema imunológico. Ele consiste em uma rede formada por todo tipo de célula, sendo as células distribuídas pelo corpo inteiro – estão no sangue, na medula óssea, nos linfonodos.

Essa coleção de células trabalha em conjunto, como uma sinfonia sem maestro, de forma organizada, porém, sem controle central. É como o sistema econômico, em que as células são as empresas, os consumidores, os bancos, o governo, que se auto-organizam e interagem de forma complexa, em rede.

Quando um agente nocivo – um vírus ou uma célula alterada – entra ou aparece em algum lugar do corpo, o sistema imunológico é acionado. Mas, muitas vezes, ele não tem a capacidade imediata de eliminar o agente, que pode ser externo, o vírus, ou interno, a célula maligna, e acaba deflagrando uma crise – a doença.


No caso da COVID-19, o vírus é capaz de fazer o sistema imunológico atacar o próprio corpo, os pulmões, levando à falência múltipla de órgãos por falta de oxigênio nos casos mais severos. Assim também é com as crises financeiras. Nem sempre o sistema econômico é capaz de superar choques ou desequilíbrios internos – vírus e células malignas –, e sua incapacidade leva aos surtos de extrema volatilidade nos mercados e à paralisia das empresas, dos consumidores, das atividades econômicas em geral, dos países.

Olhem ao redor. Reparem como está tudo parando, como estamos diante de uma falência múltipla de órgãos, com consequências gravíssimas para o mundo. O que fazer? No caso de tipos específicos de câncer, a ciência tem avançado nos tratamentos imunoterápicos, cujo objetivo é fazer com que o sistema imunológico reconheça as células malignas e neutralize sua replicação. Nos medicamentos antivirais, o objetivo é o mesmo, apenas alcançado por mecanismos diferentes.

Nem sempre esses tratamentos haverão de salvar o paciente, mas eles funcionam numa interação complexa com a rede imunológica. Com as crises econômicas, dá-se o mesmo. Buscam-se tratamentos capazes de sustentar o funcionamento da economia enquanto ela se reorganiza para sair da paralisia. As injeções de liquidez dos bancos centrais e os pacotes de estímulo fiscal são os impulsos de que a economia precisa para voltar a respirar sem auxílio. Como os imunoterápicos e os antivirais, às vezes esses impulsos são eficazes. Às vezes não o são. Porém, vale para os governos o princípio que vale para os médicos trabalhando na linha de frente da epidemia: tentar o que for possível para controlar a crise.

O Brasil enfrentará muito em breve uma crise que mistura medicina e economia como nenhuma outra o fez. Ela não tem precedentes, nem manual, tampouco protocolos. Para controlar o estrago da doença – falo da que levará ao sofrimento físico e financeiro – é preciso reconhecer que o cenário mudou e as medidas de estímulo são necessárias.

Não fazer nada é garantir a inevitável recessão, que, junto com a COVID-19, atacará a população mais vulnerável. Chamar de fantasia aquilo que já é concreto é mais do que irresponsável: é desumano. A COVID-19 pode ser devastadora para os pulmões mesmo daqueles que dela se recuperam. A recessão será devastadora para todos os subempregados, a população mais pobre, os idosos desamparados e qualquer pessoa que precise de atenção hospitalar. Serão muitas, inclusive os jovens.

COVID-19 não é uma gripe. COVID-19 é uma doença que pode destruir os pulmões das pessoas, da economia global, do Brasil. Ouçam os especialistas e cobrem os economistas.

Nada como contar com um presidente antenado e de pulso firme

Se você votou em Jair Bolsonaro por acreditar nele, e não só para derrotar o PT, e se ainda não se decepcionou, relaxe. Não tem porque entrar em pânico com a disseminação do coronavírus pelo mundo e o crescimento do número de casos confirmados por aqui.

Se está disposto a comparecer às manifestações convocadas para o próximo domingo de apoio ao governo e de críticas ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, compareça, ora. Junte-se às multidões. Celebre. Democracia serve para essas coisas.

Não ligue para notícias sobre a suspensão de eventos coletivos em quase todos os países já atingidos pela pandemia. Nem para a proibição da entrada de europeus nos Estados Unidos, anunciada ontem à noite pelo presidente Donald Trump.

Trump e Bolsonaro estão juntos. Ou melhor: estiveram, e não só para jantar. Trump subestimou o coronavírus. Bolsonaro imitou-o como de costume. Mas como Trump é candidato à reeleição em novembro, foi aconselhado a mostrar serviço. Começou a mostrar.


Bolsonaro, não, segue firme, resoluto. Não se deixa impressionar com pouca coisa. Em Miami, foi taxativo: 
“Temos no momento uma crise, uma pequena crise. Há muito mais fantasia na questão do coronavírus. Não é isso tudo que a grande mídia propaga ou propala pelo mundo todo”.

Sentiu a diferença entre um líder de pulso forte e outro que se deixa levar por conjunturas e ambições? Um pensa no longo prazo, tenta enxergar o futuro – e o dele só será definido daqui a três anos. O outro pensa no imediato, é uma Maria vai com as outras.

De volta ao Brasil, no dia em que a Organização Mundial da Saúde decretou pandemia mundial da doença, Bolsonaro explicou sem perder a calma nem dar banana desta vez: “Eu acho, eu não sou médico, não sou infectologista. Do que eu vi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa”.

Razoável. Não é médico, nem economista, sequer político, e nunca leu um livro, nem mesmo as memórias do coronel torturador Brilhante Ulstra. A letalidade do coronavírus até aqui é baixa se comparada, por exemplo, com a da gripe espanhola.

Mesmo assim, Henrique Mandetta, ministro da Saúde, está preocupado. Em reunião com líderes do Congresso, admitiu que a contaminação pelo coronavírus se dará em progressão geométrica a partir da próxima semana e que a situação é alarmante.

Mandetta quer R$ 5 bilhões para enfrentar o que está por vir. Precisa ampliar a rede de postos de saúde e contratar 20 mil médicos. Como não ousa contrariar Bolsonaro, evita dizer que grandes aglomerações facilitam a progressão do coronavírus.

Por excesso de uma sabedoria que todos lhe reconhecem, Bolsonaro não quer que nada atrapalhe as manifestações dos seus devotos. Será um ato democrático, uma vez que a Constituição garante a todos o direito de pensar e de se expressar livremente.

É sua devoção ao Estado de Direito que faz Bolsonaro agir assim. Você tem alguma dúvida disso? Então todos às praças e ruas no domingo, sem medo, juntinhos, de mãos dadas. Máscaras só para os infectados. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!

Confiança na queda

Nós estávamos em pleno voo, começando a decolar, quando fomos atingidos por essa onda.
Mas temos capacidade e velocidade de escape para mantermos nossa decolagem. Nós não estamos sincronizados com a economia mundial
Paulo Guedes, ministro da Economia

Bolsonaro está com medo

Um presidente eleito há um ano e meio apontar fraude no pleito porque acredita que foi eleito no primeiro turno – e não no segundo – é mais ou menos como o campeão Flamengo, depois de levar a taça, pedir a anulação de todo o campeonato por achar que foi lesado porque deveria ter ganhado um jogo da primeira rodada por 5 x 0, e não por 2 x 0, conforme o resultado oficial. Ou seja, um tremendo contra-senso, absurdo total. Jair Bolsonaro não pretende anular as eleições de 2018 – até porque, certamente, muita gente poderia querer aproveitar a ocasião para se livrar dele.

O que quer o presidente da República quando lança uma acusação de fraude contra as eleições e a própria Justiça Eleitoral? Mais do que criar confusão, como é de seu hábito, e lançar mão de manobras diversionistas para desviar as atenções da crise da economia e do coronavírus, Bolsonaro tenta fazer um movimento de autodefesa. Quer, claramente, intimidar o Tribunal Superior Eleitoral e outras instituições da Justiça e do Legislativo diante de um cerco que se aperta em torno dele.

Segundo relatos, é grande o nervosismo da família Bolsonaro com os avanços nas investigações da morte do ex-PM Adriano da Nóbrega e com os documentos que a CPI das FakeNews vem recebendo do Facebook, do Google e de outras fontes. No primeiro caso, a apreensão maior é em relação à perícia dos 13 celulares (alguns dizem que são 11) que estavam com o miliciano na casa em que ele foi encontrado na Bahia. Mas a investigação anda também em outras direções. A Folha de S.Paulo, por exemplo, trouxe dados do inquérito mostrando que Adriano – defendido pelo presidente como herói – tinha contas pessoais pagas pela milícia. O que mais virá nessa investigação?

O cerco vai se fechando também na CPI, que terá seu período de trabalho prorrogado sob as bênçãos dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Depois de receber elementos mostrando que um computador usado pelo assessor de Eduardo Bolsonaro na Câmara disparou fake news e mensagens de conteúdo ofensivo, a comissão agora recebeu documentos mostrando que computadores do Senado também foram usados. Ninguém vai se surpreender na hora em que aparecerem os computadores do Planalto nessa investigação.

Juntando-se a isso descobertas do inquérito do STF que investiga fake news e agressões contra seus ministros, o caldo pode engrossar. Segundo o jornal O Estado de S.Paulo, foram identificados empresários bolsonaristas que estariam financiando ataques contra ministros da Corte nas redes sociais. Evasão de divisas, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal praticados por esses personagens também estão no alvo.

O conjunto da obra, portanto, permite suposições de que, em algum momento, o cerco vá se fechar em torno do próprio Jair Bolsonaro, seja por elementos que o relacionem às milícias, seja por irregularidades como o recurso às fakenews e às agressões nas redes nos períodos pré e pós-eleitoral. Num sistema que já destituiu uma presidente da República usando um pretexto como as “pedaladas fiscais”, motivos para amparar uma acusação por crime de responsabilidade – aquela que dá em impeachment - podem não faltar. Jair Bolsonaro já terá percebido isso e está trabalhando para melar o jogo por antecipação.

O vírus da linguagem

O latim clássico “virus”, empregado por Cícero e Virgílio, é a origem óbvia da palavra sob a qual se abriga a apavorante covid-19. Ao mesmo tempo, é uma pista falsa.

Cícero e Virgílio não faziam ideia da existência de um troço chamado vírus. Este só seria descoberto no século 19, quando o avanço das ciências e da tecnologia já tinha tornado moda recorrer a elementos gregos e latinos para cunhar novas expressões para novos fatos.

No caso, nem foi preciso cunhar, bastou buscar no latim uma palavra pronta, sonora. Seus sentidos originais, todos vizinhos da sujeira, ajudavam: sumo, sêmen, veneno, poção, beberagem, linguagem vil.


Contudo, a não ser pelo código genético rastreável em palavras como visgo, viscoso e virulento, fazia séculos que o “virus” latino hibernava. Foi como metáfora venenosa que, já às portas do século 20, saiu do frigorífico clássico para voltar ao quentinho das línguas.

Em 1898, o microbiologista holandês Martinus Beijerink decidiu batizar assim certo grupo de agentes infecciosos invisíveis aos microscópios de então, com o qual o francês Louis Pasteur tinha esbarrado primeiro ao estudar a raiva.

O vírus nasceu na linguagem científica, mas era altamente contagioso. Acabou se tornando epidêmico no vocabulário comum de diversas línguas.

Quando a gripe espanhola varreu o mundo, em 1918, a humanidade já sabia nomear a coisa. “A linguagem é um vírus”, cantou Laurie Anderson.

É claro que saber de tudo isso não nos protege da epidemia que bate às portas do país quando ele está mais frágil, menos funcional, menos inteligente. Borges tem razão em parte.

Ainda não foi descoberto, no entanto, um tema em que a ignorância seja preferível ao conhecimento. Já se disse que nomear bem um problema é o primeiro passo para resolvê-lo.

O vírus da palavra penetrou no vocabulário da computação em 1972, como nome de programas maliciosos que se infiltram num sistema para, reproduzindo-se, colonizá-lo e infectar outros.

No século 21, com o mundo integrado em rede, deu até num verbo novo, viralizar. Foi a primeira vez que um membro da família ganhou sentido positivo, invejável: fazer sucesso na internet, ser replicado em larga escala nas redes sociais.


Mesmo essa acepção, como vimos, tinha seu lado escuro, parente de um uso metafórico bastante popular que a palavra carrega há décadas. No século passado, tornou-se possível falar em “vírus do fascismo”, por exemplo. Ou “vírus da burrice”.

Antigamente, quando se ignorava tudo sobre os vírus, uma receita comum que as pessoas usavam para se proteger do risco de contrair as doenças provocadas por eles era rezar. Está valendo.
Sérgio Rodrigues

Relaxe


Dissintonia

A ameaça do coronavírus bate à porta. O que se vê, no entanto, não é apenas um país despreparado para a crise, mas também sem rumo.

O presidente negligencia o problema, enquanto o País espera informações e um plano de ação do governo.

Fernando Reinach faz o alerta. Um quadro epidêmico no Brasil não pode ser descartado. Será necessário implementar nas próximas semanas um conjunto de ações sanitárias para minimizar o risco de colapso do sistema de saúde, como as conduzidas na Inglaterra, França e Alemanha. Para início de conversa, é preciso disponibilizar testes para coronavírus em larga escala e com rápida resposta.

Tudo muito distante de nossa realidade.


Alguns economistas sugerem expansão fiscal e aumento das concessões de crédito do BNDES para proteger a economia. Uma recomendação equivocada.

A prioridade no momento é proteger as pessoas e o sistema de saúde, para que se possa reduzir o risco de um quadro grave no País.

A defesa da economia dependerá do tamanho e da natureza do impacto do coronavírus, o que ainda não está claro. Por exemplo, se o mercado de crédito for afetado de forma aguda, como em 2008/09, medidas administrativas do Banco Central serão necessárias para evitar uma crise de liquidez e, no limite, linhas emergenciais de bancos públicos poderão ser acionadas.

Não é o caso de aumentar os empréstimos do BNDES. A demanda de investimento será afetada pelas muitas incertezas.

Além disso, ainda que muitas empresas enfrentem dificuldades para ter acesso ao crédito, não é por falta de recursos que o investimento não deslancha. É por falta de bons projetos em um país difícil, com regras do jogo complexas, mal definidas e que podem mudar sem critério.

Não faltam pesquisas apontando o fracasso da política de campeões nacionais do BNDES em elevar o investimento das empresas contempladas, como aponta Sergio Lazzarini.

A proposta de aumentar o investimento público chega a ser irresponsável. Não se trata apenas de ameaça à regra do teto de gastos – a principal âncora dos juros baixos – e de prejudicar a confiança de investidores. Trata-se da baixa capacidade do Estado brasileiro de fazer projetos de qualidade.

De acordo com a auditoria do Tribunal de Contas da União, 37,5% das obras financiadas com recursos federais estão paralisadas ou inacabadas. A razão principal não é a falta de recursos, mas sim problemas técnicos ou com órgãos de controle. Apenas 10% decorrem de dificuldade financeira.

Convém também lembrar de obras que foram finalizadas, mas que têm retorno social discutível, como estádios de futebol e estaleiros.

Além disso, apesar de os gastos com investimento serem considerados um uso mais nobre dos recursos públicos (até com exageros, como se gastos com saúde e educação não fossem essenciais), eles não são a melhor forma de reagir a choques transitórios que demandam medidas emergenciais.

O tempo necessário para execução é longo, ainda mais no Brasil, onde nem sequer há na prateleira bons projetos para serem rapidamente implementados. Além disso, muitos investimentos implicam gastos de custeio no futuro – como a construção de hospitais e escolas, que precisam de recursos para funcionar –, nem sempre viáveis do ponto de vista orçamentário.

Ações emergenciais devem ser, tipicamente, gastos com custeio de curto prazo. E, no quadro atual, teriam de ser focalizados na área sanitária e de saúde.

A dissintonia com o momento do País não para por aí. O Congresso avança em decisões que aumentam o rombo fiscal – com voto de parlamentares da base governista –, como a de derrubar o veto do presidente da República ao aumento do limite de renda familiar para se ter acesso ao Benefício de Prestação Continuada. O impacto fiscal será na casa de R$ 20 bilhões ao ano. Caberá manifestação do TCU, posto que não há fonte de recursos definida.

Há risco de outras pautas-bomba. As falhas do governo não justificam a irresponsabilidade do Congresso.

Se seguirmos nessa trajetória, aí sim a crise será muito grave.

Em permanente inferno


Os ricos podem não ir para o céu. Mas os pobres já estão no inferno
Alexander Chase

Reformas já

O coronavírus e a nova crise do petróleo pegaram de surpresa o governo e sua equipe econômica. Diante do tsunami em armação, o ministro Paulo Guedes deu uma de Pollyanna: “o mundo está desacelerando e o Brasil reacelerando”.

O ufanismo não parou aí: “O Brasil tem uma dinâmica própria de crescimento e vai reacelerar se as coisas certas forem feitas”. Ou seja, se referia às reformas tributária e administrativa, que o governo ainda não enviou ao Congresso, além da PEC Emergencial.

As reformas estruturantes são indispensáveis para o Brasil se livrar da semi-estagnação e avançar para um crescimento robusto e sustentado. Sem elas estaremos perdidos.

Mas também é certo que não bastam as reformas de longo prazo para enfrentar as consequências da recessão mundial que se avizinha.

É preciso combiná-las com medidas emergenciais, de curto prazo e que serão apenas paleativas para minimizar os estragos. Elas se darão num movimento meramente defensivo e nada indica que poderão acelerar o crescimento. Isto porque estão limitadas pela condições desastrosas das finanças públicas. Talvez possa ser implementado algo na área de crédito, sem que se repita o que Dilma Rousseff fez com o BNDES. Na área de cambio o BC parece estar trabalhando na direção correta. No mais, não se vê milagres à frente.

Mesmo personalidades historicamente comprometidas com o rigor fiscal e os bons fundamentos da economia, como os economistas Monica de Bolle e Marcos Lisboa passando pelo presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, sabem que o governo tem limites.

No restante do planeta a Itália adiou a cobrança de tributos de setores da economia afetados pelo coronavírus e ampliou o orçamento do seguro-desemprego. A Alemanha de Angela Merkel adotou um programa de investimentos públicos. A Coreia do Sul e a China também adotaram medidas para mitigar o impacto do coronavírus em suas economias. Todas essas ações têm sido defendidas pela diretora de pesquisa do FMI, Gita Goopinah.

Mesmo no templo sagrado do liberalismo econômico, os Estados Unidos, o presidente Donald Trump anunciou medidas para proteger a economia, como o corte de imposto sobre a folha salarial. Isso não é uma novidade por lá. Foi assim com o New Deal de Roosevelt e na crise de 2008. O neokeynianismo tem suas virtudes ainda que se saiba que o governo aumentar gastos sem lastro ou abrir mão de receitas é um caminho inviável.

Se quisermos seguir alguns exemplos do que esta sendo feito em outros países ou se o coronavirus sair do controle e houver a necessidade de ampliar o orçamento do SUS, ficaremos engessados pelo Teto dos Gastos e pela PEC Emergencial? O governo vai manter o receituário de Paulo Guedes, contra qualquer tipo de estímulo à economia?

Não sem razão, Guedes cobrou do Congresso -que nos últimos tempos atingiu um papel de protagonismo poucas vezes visto na nossa história- um posicionamento sobre uma lista de projetos que já estão em tramitação no Legislativo e que são considerados prioritários neste momento como o Plano de Equilíbrio Fiscal, a Autonomia do Banco Central, a Privatização da Eletrobrás, a Simplificação de Legislação de Câmbio, a Nova Lei de Finanças Públicas, Lei de Concessões, o Marco Legal do Setor Elétrico, o Novo Marco Legal de Ferrovias ou o Marco Legal do Saneamento Básico.

Mas medidas emergenciais ou de longo prazo também não bastam se não houver previsibilidade, confiança, estabilidade política e harmonia entre os poderes.

Exatamente o inverso de como age e sinaliza todos os dias o presidente Jair Bolsonaro. Ele não consegue se comportar como um velho marinheiro que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar. Ora apela para o diversionismo, questionando a lisura de sua própria eleição, ora dobra a aposta em sua estratégia de emparedar a democracia, convocando a população para participar manifestações contra o Congresso Nacional e a Suprema Corte.

Não adianta o presidente dizer que os atos do dia 15 não serão contra os outros poderes e sim a favor do Brasil. O comício da Central, de 13 de março de 1964, convocado pelo então presidente João Goulart, também se dizia a favor das reformas de base mas, concretamente, foi um emparedamento do Congresso que o presidente e seus aliados julgavam reacionário. Isso nos levou ao golpe militar.

Não sabemos, ainda, onde Bolsonaro nos levará com a sua estratégia de mobilizar as massas contra as instituições, tal qual fazia Hugo Cháves na Venezuela ou Juan Péron na Argentina. Só dá para especular. Até porque é difícil confiar em quem não respeita acordos. Pior: que os faz e depois tira o corpo fora.

O caos de cada um

Aconteceu recentemente no Brasil de Bolsonaro & Filhos. Na cerimônia de formatura de um curso de Jornalismo, o paraninfo da turma, escolhido por votação pelos formandos, discursava sobre o que esperava os futuros jornalistas num mercado de trabalho minguante e condicionado por repetidos ataques do governo à imprensa, além da ameaça latente de uma volta da censura explícita e de novos limites à liberdade de expressão — como houve em outros tempos, quando outros generais ocupavam o Planalto.

O discurso começou a ser interrompido por vaias e insultos ao paraninfo vindos da plateia, e só pôde ser concluído porque alunos e professores se postaram solidariamente ao lado do púlpito do palestrante, enfrentando os protestos. Que continuaram, tanto que o paraninfo saiu do palco escoltado por seguranças da universidade, a imagem inédita e triste de um caos nutrido pela irracionalidade, num ambiente que deveria ser, no mínimo, de orgulho familial, apesar das diferenças.



Supõe-se que a maioria da plateia era formada por pais dos alunos, e que o paraninfo representava o pensamento da maioria dos alunos. O que se viu foi um autêntico conflito de gerações a céu aberto, a ser resolvido, ou agravado, em casa. Em tempos menos conflagrados, a insatisfação da plateia não chegaria a vaias e insultos. Hoje, críticas ao governo são recebidas com uma intolerância que, cada vez mais, se concentra numa imprensa livre e investigativa, quando não em filhos e filhas independentes que não pensam como os pais. Este caos parece irreversível.

Com tantos generais convivendo no Planalto, pode-se imaginar que o melhor lugar para saber os rumos da nação seja a máquina do cafezinho, onde todos se encontram. Mas é difícil saber o que pensam os generais sobre a vida, o amor, a economia e o capitão que os comanda. Às vezes nem eles sabem o que pensam. O general Augusto Heleno, por exemplo, disse que o Congresso chantageia o Executivo e logo em seguida disse que ninguém na roda do cafezinho pensa em acabar com a democracia, nem que seja só pelo prazer de prender o Maia, e que os militares só interviriam, como sempre, em caso de caos. Mas, general, o caos já não está aí?

Porque não vimos o vírus chegar?

Bill Gates é poderoso, o segundo homem mais rico do mundo e, naturalmente, tido por pessoa muito influente. Tão influente que, por exemplo, sempre que divulga a sua lista anual dos livros que leu e de que mais gostou, consegue, só com essa recomendação, tirar uma série de autores do esquecimento e catapultar qualquer título para as listas dos mais vendidos. É também reconhecido como um ser com uma inteligência acima da média, que costuma emitir opiniões bem fundamentadas que lhe advêm de um vasto conhecimento da realidade mundial. Apesar de todos esses atributos, a verdade é que, no caso da saúde pública, a voz de Bill Gates não é, de facto, tão escutada quanto podem sugerir os sorrisos ou os acenos de cabeça afirmativos dos líderes que com ele se reúnem por esse mundo fora – como esta epidemia do novo coronavírus tem demonstrado.

Há um vídeo de Bill Gates, disponível no YouTube, que merece ser visto, pelo seu carácter premonitório. Nele, numa palestra Ted, em Vancouver, o fundador da Microsoft recorda como cresceu a temer, acima de tudo, a possibilidade de uma guerra nuclear, mas como acabou, recentemente, por mudar de opinião.


“É mais provável morrerem dez milhões de pessoas nas próximas décadas devido a um vírus altamente contagioso do que devido a uma guerra nuclear. A maior ameaça atual já não são os mísseis, mas sim os micróbios”, diz, perante uma plateia em silêncio, a quem enumera, depois, os vários passos que deveriam ser dados para nos protegermos de uma epidemia dessa dimensão, com base na experiência tida no combate ao ébola, em África. “Não é preciso entrar em pânico, mas precisamos de começar a trabalhar, porque o tempo não está do nosso lado”, declara Bill Gates.

“Se começarmos agora, podemos estar preparados para a próxima epidemia”, remata no final da conferência, realizada em março de 2015. Ou seja: há cinco anos – cinco anos que, percebemos agora, foram perdidos na procura dos planos globais para combater uma epidemia.

O que não deixa de ser preocupante, em especial se pensarmos que, se o apelo daquele homem rico, respeitado e influente caiu depressa no esquecimento, o mesmo poderá suceder com os pedidos semelhantes, repetidos nos últimos tempos, por uma adolescente que alguns dizem ser irritante, para se tentar evitar as piores consequências do aquecimento global. Pelas mesmas razões: a de persistirmos em olhar para este tipo de ameaças como só sendo concretizáveis num futuro que achamos demasiado longínquo. Por, no fundo, nos recusarmos a olhar de frente para os perigos que aí vêm e que os cientistas já previram. Bill Gates e Greta Thunberg avisaram. Quem é que não os ouviu?

Corona do Brasil


Fora da realidade

Enquanto os dirigentes de mais de cem países do mundo orientam seus cidadãos para que evitem aglomerações, e mesmo proíbem reuniões públicas, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, diz que o surto do novo coronavirus no mundo não é tão grave assim, e convoca manifestações populares para apoiar seu governo contra os demais poderes da República.

Diz-se que um estadista é aquele que se preocupa com as futuras gerações, enquanto um populista só pensa na próxima eleição. Essa talvez seja a melhor definição do tipo de líder que ele é, populista mais preocupado com seus interesses eleitoreiros imediatos.

O mundo está de pernas para o ar diante de uma pandemia mortal de que não se sabe o alcance, pois a contaminação é muito mais rápida do que vírus anteriores, e o presidente Bolsonaro diz que outras gripes mataram muito mais. Uma análise superficial e apressada, pois ainda não se tem confirmação sobre o grau de letalidade do Covid-19, nem se sabe se as notificações de países como o Irã ou Rússia, entre outros, são verdadeiras.


Além do mais, temos particularidades que nos ajudam, como o calor agora no verão, mas outras que atrapalham, como a falta de capacidade do sistema único de saúde (SUS) de atender a uma demanda que pode crescer exponencialmente a partir de determinado número de contagiados.

Mas, ao mesmo tempo, o próprio presidente diz que a crise não é tão grave, e convoca manifestação nas ruas, quando o mundo inteiro proíbe aglomerações e cancela eventos. Seria importante um gesto de sobriedade, de inteligência, do presidente do país pedindo a seus seguidores para não irem para a rua, pois isso pode acelerar a epidemia.

Perguntado se faria isso, Bolsonaro, como sempre, esquivou-se de responsabilidade. Disse que não havia convocado ninguém, e que os organizadores das manifestações é que deveriam se manifestar. Além de ser uma mentira pública, pois há vídeos de sua fala em Boa Vista no fim de semana passada convocando seus seguidores a participarem das manifestações, Bolsonaro demonstra que ainda não entendeu o que está acontecendo no mundo.

Ele deveria estar à frente da mobilização que seu próprio governo está fazendo contra a disseminação do vírus, que hoje é mais importante do que qualquer outra coisa. Ainda bem que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, está se revelando competente para, ao mesmo tempo em que não quer alarmar, monta esquema de emergência para que o sistema de saúde pública esteja o mais bem organizado possível se chegarmos a uma situação mais dramática.

Há ainda uma atuação junto a hospitais particulares que também atendem ao SUS para que ampliem sua atuação se for necessário. Houve uma evolução também na parte econômica, com o ministro Paulo Guedes saindo de uma paralisia oficial, quando disse que estava tranquilo diante da crise, para enviar uma carta ao Congresso pedindo a mobilização dos políticos para a aprovação das várias reformas.

A aceitação de que a situação é grave, e que é preciso aprovar as reformas imediatamente, já é representa um avanço, mas cheio de contradições internas. O governo ainda não enviou para o Congresso as reformas tributária e administrativa, o que impede que se comece a discuti-las.

A Câmara havia dado início à tributaria, disposta a tomar as rédeas da discussão com base em um projeto do economista Bernardo Appy, mas agora, diante da gravidade da situação, quer que o Palácio do Planalto tome a frente das ações.

O presidente Bolsonaro, no entanto, já disse a assessores que não está com pressa para liberar a reforma administrativa. Na verdade, ele teme que as corporações, especialmente os funcionários públicos, reajam a certas mudanças propostas pela equipe econômica.

Mesmo que elas só valham para os que entrarem no serviço público depois da aprovação da reforma, o presidente não quer confrontar corporações que lhe são fiéis. Prefere confrontar a realidade.

Bastardas abastadas

Filhas bastardas do egoísmo e da avidez, as chamadas “elites” brasileiras não estão preparadas para a ética, o bom senso e a moralidade. É inútil tentar consertá-las. Mas como livrar-se delas?
Joel Silveira, “Guerrilha noturna”

Amazônia pode entrar em colapso em 50 anos

É possível que a Amazônia e outros grandes ecossistemas do mundo entrem em colapso mais rápido do que os cientistas previram anteriormente. A Floresta Amazônica está se aproximando de um ponto sem retorno, que, se ultrapassado, pode transformá-la numa savana dentro de 50 anos, aponta um estudo divulgado na terça-feira.

Outro grande ecossistema, os recifes de corais do Caribe, pode vir a desaparecer em apenas 15 anos se passar de seu próprio ponto sem retorno, ou seja, se sofrer mudanças irreversíveis, alertaram cientistas na revista científica Nature Communications.

O colapso desses ecossistemas teria graves consequências para a humanidade e outras espécies. Tanto para a Amazônia quanto para os corais, a projeção para o ponto sem retorno foi feita com base no aquecimento global e em danos ao meio ambiente – desmatamento, no caso da floresta, e poluição e acidificação, no caso dos corais.

"As mensagens aqui são duras. Precisamos nos preparar para mudanças dos ecossistemas do nosso planeta que são mais rápidas do que previmos anteriormente", afirmou um dos autores do estudo, John Dearing, professor da Universidade de Southampton, no Reino Unido.


Para outro dos autores, Simon Willcock, professor da Escola de Ciências Naturais da Universidade Bangor, também no Reino Unido, incêndios de grandes proporções recentes na Amazônia e na Austrália – que seriam mais prováveis de ocorrer devido às mudanças climáticas – sugerem que muitos ecossistemas estão "à beira do precipício".

Segundo os cientistas, o ecossistema amazônico poderia ultrapassar o ponto sem volta já a partir de 2021. A equipe de pesquisadores conclui que, enquanto grandes ecossistemas levam mais tempo para chegar ao chamado ponto sem retorno, uma vez que ele é alcançado, o ritmo em que a degradação ocorre é significativamente mais rápido do que o verificado em ecossistemas menores.

Os pesquisadores atribuem isso ao fato de ecossistemas maiores serem compostos por mais subsistemas de espécies e habitats. Esse conjunto inicialmente fornece resiliência, mas uma vez passado certo limite, faz se acelere o ritmo em que os ecossistemas se degradam. Isso significaria que ecossistemas que existem há milhares de anos podem entrar em colapso em menos de 50.

Um total de 42 ecossistemas de vários tamanhos foi analisado no estudo – quatro terrestres, 25 marinhos e 13 de água doce. Apesar de uma série de cientistas não envolvidos na pesquisa endossar sua metodologia e reforçar a urgência de proteger ecossistemas mundo afora, alguns questionaram se as conclusões podem ser aplicadas à Amazônia.

Erika Berenguer, pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, disse que o estudo foi prejudicado pelo fato de os autores incluírem apenas quatro ecossistemas terrestres, nenhum deles uma floresta tropical.

"É muito improvável, se não até distópico, esperar que uma área com metade do tamanho da Europa passe por uma mudança completa de vegetação em apenas 50 anos", disse Berenguer. "Não há dúvida de que a Amazônia está muito ameaçada e que um ponto sem retorno é provável, mas alegações infladas como esta não ajudam nem a ciência nem a política."

Alexandre Antonelli, diretor científico do Royal Botanic Gardens (Kew Gardens) de Londres, classificou como assustadoras as conclusões do estudo: "A menos que se adotem ações urgentes, podemos estar prestes a perder a maior e mais biodiversa floresta tropical do mundo, que evoluiu ao longo de pelo menos 58 milhões de anos e sustenta a vida de dezenas de milhares de seres humanos."

"Estas descobertas são mais um alerta para conter os danos impostos aos nossos ambientes naturais, e que empurram os ecossistemas a os seus limites", conclui Dearing.

O ministro que manipula a Bíblia para criar ódio político

Não se trata de um ministro qualquer, mas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que carrega sobre seus ombros a enorme responsabilidade de formar milhões de crianças e jovens para o futuro da nação. O ministro, por ocasião de um encontro em Brasília promovido pela ONG Todos pela Educação, além de fazer ironias sobre o coronavírus, que pode ter infectado a organizadora do evento, Priscila Cruz, uma das figuras mais destacadas do mundo do ensino, ainda se serviu da Bíblia para recordar a ira de Deus.

Tirando do contexto o salmo bíblico “O Senhor fará recair sobre eles sua própria iniquidade, e os destruirá em sua própria malícia; o Senhor nosso Deus os destruirá” (Salmos, 94,23), ele manipulou os livros sagrados para semear ódio político.

O ministro, que parece conhecer a Bíblia, deveria saber que sua citação se refere a um versículo do Antigo Testamento, o do Deus ainda vingativo, que proclamava a destruição do inimigo, e que não é possível lê-lo hoje sem levar em conta o Novo Testamento, que é o ponto culminante do Velho, no qual a Humanidade dá o salto quântico do "olho por olho, dente por dente" para o da misericórdia, do perdão aos inimigos e do amor universal. Qualquer outro uso político das Sagradas Escrituras, e mais ainda em um Estado laico, é ferir a democracia e buscar semear a cizânia para manter os brasileiros divididos.

Se a religião, seja ela qual for, não servir para defender os princípios da liberdade e defesa dos marginalizados e não contribuir para manter vivos os valores da civilização, conquistados com tanta dor ao longo dos séculos, servirá apenas como instrumento de dominação e divisão. A essência de qualquer contato com a divindade ou é libertadora ou conduz à alienação que profana a Humanidade.

Enquanto em Brasília o ministro da Educação caía na pequenez de querer ofender uma militante que talvez não comungue de seus princípios políticos, chegando a invocar contra ela a ira e o castigo de Deus, no Rio, um programa da TV Globo sobre a vida dura dos transexuais na prisão despertou a ira dos intransigentes ao lembrar o “olho por olho” à la Weintraub. Foi por ocasião da participação do médico Drauzio Varella, que levou ao programa sua grande experiência profissional de aliviar a dor nas prisões e denunciar os possíveis abusos cometidos com os presos.

Se em um primeiro momento o relato do médico sobre uma trans, que ele acabara de visitar na prisão, despertou a solidariedade de milhares de brasileiros que ficaram sabendo que a detenta estava ali havia anos sem nunca ter recebido uma visita, e a quem Varella chegou a abraçar para confortá-la na sua solidão, uma tempestade imediatamente caiu sobre ele quando se descobriu algo que ele na ocasião ignorava. A detenta tinha cometido um crime terrível, estuprado e matado uma criança, um pecado pelo qual foi condenada e está pagando na prisão.

O médico quis lembrar que vai às prisões não como juiz ou advogado, mas como médico, para ajudar os presos. E um profissional não pode parar de curar um doente quaisquer que sejam os crimes que possa ter cometido.

E é aqui onde se cruzam as maldições do ministro da Educação contra aqueles que não pensam como ele, para os quais evoca o castigo de Deus, com a indignação contra o doutor Drauzio Varella.

Já que convivemos com um Governo cujo lema é “Deus acima de tudo”, e no qual os ministros evocam o Antigo Testamento para justificar sua semeadura de ódio político contra aqueles que não pensam como eles, também devemos lembrar aqui que os Evangelhos, que também fazem parte da Bíblia cristã, propõem um Deus diametralmente oposto à fúria escatológica dos seguidores do presidente Bolsonaro.

Basta lembrar que as maldições do profeta Jesus, que anunciava um mundo oposto ao antigo, da ira e da vingança, eram só contra a hipocrisia dos fariseus e a opressão dos poderosos, nunca contra os pecadores. Quando abraçava e curava os leprosos não lhes perguntava se antes tinham matado alguém. Sua compaixão diante da dor já revelava o nascimento de uma sociedade baseada na compaixão e no perdão em vez do ódio ou da vingança.

Para os homens que pediram a pena de morte contra a mulher apanhada em adultério, Jesus os provocou dizendo "quem de vocês estiver livre de pecado atire a primeira pedra contra ela". Todos se foram, “a começar pelos mais velhos”, narra o evangelista.

Se Jesus tivesse visitado hoje a trans presa por seu crime, certamente o teria feito não para lembrá-la de seu pecado, pelo qual já está pagando, mas para lembrá-la de que não estava sozinha na vida e que a misericórdia de Deus era maior que a justiça dos homens.

Na parábola do fariseu e o publicano, Jesus tomou a defesa do publicano, que, no último banco do templo, pedia perdão a Deus por seus pecados, e condenou a soberba do fariseu que se vangloriava, proclamando: "Eu não sou um pecador como esse publicano".

Uma das obras de misericórdia do cristianismo é “visitar os prisioneiros”. E esse trabalho de misericórdia não discrimina a culpa maior ou menor dos detidos, pois olha apenas para solidão que eles têm que suportar para expiar seu pecado.

Fui testemunha, como jornalista, da famosa visita do papa João XXIII à prisão de Regina Coeli, em Roma, destinada então a presos condenados à prisão perpétua. Portanto, seus crimes deviam ser gravíssimos. O Papa, misturando-se com os prisioneiros, abraçou-os, abençoou-os e até lhes recordou que alguns deles poderiam estar ali injustamente por algum erro da Justiça. Ele não foi lá para absolvê-los nem voltar a condená-los, já que isso era função da justiça dos homens. Foi confortá-los. Lembro-me de ter visto mais de um dos prisioneiros chorando.

E o papa João Paulo II foi a uma prisão para encontrar Ali Agca, o jovem turco que atirou nele e o colocou à beira da morte. Acabou pedindo às autoridades civis que ele fosse perdoado.

A justiça de Deus nem sempre coincide com a dos homens e ninguém tem o direito, e menos ainda na política, de invocar o nome de Deus para castigar ou pedir os castigos do céu contra ninguém. O resto é profanar os textos sagrados.
Juan Arias