quinta-feira, 1 de julho de 2021

Pensamento do Dia

 


Pedido de impeachment de Bolsonaro contra Dilma cai como luva para si mesmo

Enfeitiçado pelo próprio feitiço, Bolsonaro descobre da pior maneira que a Terra é plana, mas dá voltas. Em pedido de impeachment que protocolou na Câmara em março de 2015 contra Dilma, o capitão disparou balas perdidas que acertam a sua própria Presidência. Falou de despreparo, desvios éticos, más companhias e abandono da sociedade.

Decorridos seis anos, há na peça que Bolsonaro esgrimiu contra Dilma parágrafos que poderiam ser reproduzidos num pedido de impeachment contra ele próprio sem mexer numa vírgula. Bastaria fazer um ajuste de gênero, trocando "denunciada" por denunciado. Num dos parágrafos, a transposição é tão perfeita que Bolsonaro poderia dedicar a si mesmo numa leitura em frente ao espelho.

Diz o seguinte: "Mais do que despreparo, mostra-se evidente a omissão da denunciada [Dilma] ao deixar de adotar medidas preventivas e repressivas para combater o câncer da corrupção em seu governo, mantendo, perto de si e em funções de alta relevância da administração federal, pessoas com fortes indícios de comprometimento ético e desvios de conduta. Deixou de agir em defesa da sociedade da qual é responsável máxima na administração pública."


Em julho de 2015, o deputado Eduardo Cunha, então mandachuva da Câmara, desengavetou 11 pedidos de impeachment protocolados contra Dilma. Um deles era o de Bolsonaro. Cunha deu dez dias ao capitão para promover ajustes no seu documento, "adequando-o aos requisitos da Lei número 1.079/1950 e do regimento interno da Câmara dos Deputados." A lei mencionada por Cunha define os crimes de responsabilidade.

Suprema ironia: quando pegava em lanças contra Dilma, Bolsonaro era um deputado do baixo clero filiado ao PP, partido do centrão que ajudou Eduardo Cunha a puxar o tapete da então inquilina do Planalto. Agora, Bolsonaro é um presidente sem partido que se casou com o centrão e acorrentou o seu futuro aos humores de Arthur Lira, um cacique do PP que o Planalto ajudou a transformar numa caricatura de Cunha.

Escorada no centrão, a base partidária que dá suporte a Bolsonaro no Congresso é muito parecida com a de Dilma. Para ficar idêntica, faltam apenas a traição e o impeachment.

Bolsonaro espera um milagre

Encurralado por todos os lados, o presidente Jair Bolsonaro vive aquele momento de além de queda, coice. Sua aprovação vai ladeira abaixo, a imagem de conduzir um governo incorruptível foi trincada pelo escândalo da Covaxin, e a expectativa de poder escorrega entre os dedos. Para reverter este quadro e continuar a ser competitivo na eleição presidencial, aposta em uma combinação de alguns fatores: crescimento da economia, fim da pandemia e aumento expressivo da arrecadação para financiar um programa social com sua marca.

Teoricamente é possível tudo isso acontecer ao mesmo tempo e há elementos da realidade nestas expectativas. As projeções de crescimento da economia batem na casa de 5% neste ano, embora apontem uma expansão raquítica em 2022, quando disputará seu segundo mandato. Conta ainda a seu favor o cenário do mercado mundial, no qual as commodities vivem um novo “boom”.

Haverá, portanto, folga de caixa para ter um programa social para chamar de seu. Provavelmente não será como o aumento emergencial de 600 reais de 2020, mas algo mais substantivo do que o atual Bolsa Família. A Roda da Fortuna giraria ainda para o seu lado em virtude da vacinação em massa, que faria da pandemia coisa de passado.

De fato, há sinais animadores de que a vacina começa a fazer diferença. A chamada terceira onda está sendo bem menos agressiva do que a segunda, embora o patamar de mortos ainda seja alto. Provavelmente isso vem acontecendo porque já temos 34% dos brasileiros vacinados com a primeira dose.

Tudo isso geraria uma sensação de bem-estar capaz de levar Bolsonaro a repetir o milagre de Lula que, atingido pelo “mensalão”, conseguiu dar a volta por cima se reelegendo em 2006 graças ao “boom” das commodities responsável pelo bom desempenho da economia.


As realidades distintas desautorizam qualquer comparação entre as duas situações. No pior momento do governo Lula – julho de 2005 –, a aprovação do seu governo ainda era de 35% e a reprovação de 23%, bem distinto de Bolsonaro, com desaprovação beirando os 50%.

A questão é saber se a recuperação da economia reverterá o dantesco quadro social, com seus 15 milhões de desempregados, mais os subocupados e desalentados. A pandemia aumentou ainda mais a concentração de renda no Brasil. Antes dela o 1% do topo da pirâmide social detinha 44,2% da renda nacional. Em apenas um ano saltou para 49,6% da riqueza nacional em suas mãos.

As consequências estão expostas nos faróis dos aglomerados urbanos, no aumento da população de rua e nos novos contingentes de favelados. Quem era classe B virou classe C e quem era classe C desceu um degrau a mais. A fome, nas suas diversas gradações, passou a ser uma presença para mais de 60% das famílias brasileiras.

Os pobres foram duramente atingidos pela crise econômica e pela pandemia. Isso explica o sentimento detectado em pesquisas qualitativas de repulsa e ódio a Bolsonaro, por considerá-lo desumano. Reverter tal percepção será quase um milagre. Aqui, mais uma diferença substantiva entre o Lula de 2005 e o Bolsonaro de 2021. O aumento da desaprovação do primeiro se deu principalmente nas camadas mais ricas, já a de Bolsonaro ocorre nas camadas mais pobres, inclusive entre evangélicos.

Imaginar que, com o sucesso da vacinação, a pandemia não terá impacto eleitoral equivale a acreditar que um país entra em guerra, perde 500 mil vidas e mesmo assim um dos maiores responsáveis por tamanha tragédia não será punido nas urnas. Quando a campanha começar para valer Bolsonaro será bombardeado diuturnamente por fartos materiais, muitos fornecidos por ele mesmo.

O presidente enfrenta ainda o coro das ruas, cujas manifestações começam a extravasar as fronteiras da esquerda. O caldo está engrossando e tende a piorar mais com a atuação da CPI da Covid.

Não que a eleição esteja decidida, longe disso. Até mesmo em política, milagres acontecem.

Com a expectativa de poder fugindo de suas mãos, surge uma vasta avenida para uma terceira via. Movimentações como a de Gilberto Kassab em torno de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, ou do MDB para lançar a candidatura de Simone Tebet, reforçam a ideia de que Bolsonaro pode ser um cavalo perdedor. Políticos do centro e empresários tomam consciência de que sua candidatura se tornou a via mais rápida para Lula voltar ao poder. Buscam caminhos para evitar tal situação e se livrar de um presidente que se elegeu beneficiado pela Fortuna, mas que não teve a “Virtú” na hora de governar.

O governo que sequestrou o país

Acabou. É uma questão de tempo e de processo. O governo Bolsonaro terminará pela soma imensa dos seus erros. Não foram erros de gestão, apenas. Foram crimes. E eles foram tantos, tantos que atravessam os códigos legais, a Lei 1079 do impeachment, a Constituição. Ele feriu o primeiro direito. O da vida. Quanto tempo Arthur Lira pode ignorar o superpedido de impeachment protocolado ontem? Ele tem o poder de fazer um pedido, mesmo substantivo e plural, ficar parado na gaveta, mas há forças demais se movendo na mesma direção. Um governo que quer US$ 1,00 de propina por dose de vacina está, na verdade, sequestrando o país e pedindo resgate.


Publiquei neste espaço, em 3 de maio de 2020, uma coluna com o título “Sem medo do impedimento”. Eram 7.051 mortes. Bolsonaro persistiu na mesma atitude e isso nos trouxe aos atuais 518 mil mortos. É completamente equivocada a ideia de que o Brasil “naturalizou” o impeachment e por isso ele deveria ser evitado. Esse argumento é de corar um estudante de Direito. Equivale a propor que um instrumento jurídico não seja usado porque já o foi no passado. É o mesmo que dizer que a lei não pode ser aplicada para não gastar.

Nunca foi tão justo quanto agora, diante do mar de mortos que está diante de nós, pedir o impeachment do presidente. Jair Bolsonaro tomou decisões que provocaram a morte de brasileiros. E ele também ameaça diariamente as instituições democráticas. A lista dos 23 tipos penais arrolados no superpedido de impeachment ontem apresentado por instituições da esquerda e da direita não deixa dúvidas. Há razões superlativas para que ele seja tirado do cargo que desonra diariamente.

A CPI está mostrando de forma exuberante os crimes do presidente nesta pandemia. São tantos que há pelo menos quatro trilhas de investigação. Ação deliberada para espalhar o vírus, que está tipificado como crime de epidemia; omissão e atrasos nas compras de vacinas; disseminação de remédio com ineficácia comprovada; formação de estrutura paralela ao governo. E, agora, prevaricação. Foi informado de irregularidades com dinheiro público, sabia quem era o suspeito, não mandou investigar. Em reação retardada, o governo vai mudando versões para dizer que investigou. As versões não param em pé. São tão ilógicas que os governistas na CPI leem o que vão falar. Não guardariam de memória essas mudanças constantes de enredo. E novas acusações surgem, como a que a repórter Constança Rezende, da “Folha de S.Paulo”, revelou sobre o pedido explícito de propina ouvido pelo empresário Luiz Paulo Dominguetti Pereira no Ministério da Saúde.

Na sessão de ontem da CPI, o empresário bolsonarista Carlos Wizard fez uma triste figura. “Eu me reservo o direito de ficar em silêncio.” Mas os vídeos apresentados eram arrasadores. Neles, Wizard, rindo, sustentava a tese de que os “cinco mortos” no município de Porto Feliz, no interior de São Paulo, tiveram culpa na própria morte. “Ficaram em casa, não foram em busca do tratamento precoce.” Em outro vídeo, já eram 50 os mortos. O que será que ele diria agora se não tivesse emudecido?

Wizard, a exemplo de Bolsonaro, usa a palavra de Deus como se a Bíblia fosse dele. Chegou carregando um cartaz que citava um versículo de Isaías. A senadora Eliziane Gama do Cidadania o respondeu mostrando intimidade com a Bíblia. Em uma das citações que ela fez, também do profeta Isaías, há o alerta contra líderes que são “amigos dos ladrões e amam o suborno” e “não defendem os direitos dos órfãos e das viúvas”. O Brasil é um país laico, mas tem sido abusivo ver o presidente e seus seguidores usarem a Bíblia de forma proprietária. Por isso, a resposta da senadora fazia todo o sentido.

O superpedido de impeachment produziu uma cena rara, de união no mesmo palanque de políticos da esquerda e da direita ex-bolsonarista, que discordam sobre todo o resto, mas concordam que Bolsonaro é o pior presidente da História, que ele ampliou o número de mortes com as escolhas que fez e reitera a cada dia.

Entre o pedido de impeachment e seu andamento há o presidente da Câmara. Mas os processos políticos têm dinâmica própria. Lira diz que não há votos necessários, da mesma forma que tantos diziam que não era a melhor hora da CPI. Um governo não termina quando acaba. Bolsonaro vai atacar, mentir, manipular, ameaçar, cooptar e usar os poderes da Presidência. As instituições terão de persistir em defesa da vida dos brasileiros.

A lenda do Jair honesto

É claro que Jair Bolsonaro tem razão quando diz não poder saber tudo o que acontece nos 22 ministérios de Brasília. Consequentemente, não se pode responsabilizá-lo por cada ocorrência neles. No entanto, ele é responsável pela nomeação dos ministros, pelos aliados que procura e pelo espírito reinante em seu governo.

Além disso, Bolsonaro provavelmente não está dizendo a verdade, quando afirma nada ter sabido das irregularidades na encomenda da Covaxin. Segundo testemunhas, ele foi informado, mas não agiu. Ao que parece, tolerou e acobertou a suposta corrupção.

Seja como for, chama a atenção o governo brasileiro ter imposto altos obstáculos a todos os fabricantes de vacinas com representações diretas no país. Eles foram ignorados, suas ofertas, consideradas caras demais, ou se rejeitaram suas condições contratuais. Para os fornecedores com intermediários – no caso da Covaxin, registrados sob um endereço duvidoso em Cingapura – de repente essas ressalvas deixarem de ser relevantes. É o caso de se perguntar por quê.


Após a recente acusação de que o chefe de logística do Ministério da Saúde teria coletado subornos em nome de "um grupo dentro do ministério", alguns meios de comunicação escrevem que o governo Bolsonaro está passando por seu primeiro escândalo de corrupção. Isso é uma piada de mau gosto, e quem afirma tal coisa está caindo na armadilha da lenda bolsonarista sobre o "Jair honesto", um outsider meio grosso, porém sincero e defensor da lei e da ordem.

A versão que agora vem sendo repetida nas redes bolsonaristas é a de que esse governo não é corrupto. Isso é tão equivocado quanto a afirmação de que Bolsonaro seja um patriota, zele pela família ou respeite a Deus. Assim como conseguiu monopolizar os conceitos de patriotismo, família e Deus, ele conseguiu, diante de uma oposição fraca e desarticulada, reivindicar para si a luta contra a corrupção.

Basta enumerar alguns fatos para refutar esses mitos. As últimas férias de Natal do presidente Bolsonaro custaram ao contribuinte brasileiro nada menos que R$ 2,4 milhões. Ainda não estão explicados os 27 depósitos no valor de R$ 89 mil do suspeito de corrupção Fabrício Queiroz para a esposa do presidente, Michelle Bolsonaro. Também restam dúvidas sobre a compra de Flávio Bolsonaro de uma mansão em Brasília por R$ 6 milhões – o 20º imóvel adquirido pelo filho do presidente em 16 anos.

O fato é, antes, que este governo minou sistematicamente a luta contra a corrupção iniciada durante a presidência de Dilma Rousseff. Já em fevereiro de 2020, a ONG Transparência Internacional criticava as constantes "interferências políticas nas nomeações e destituições em postos fundamentais" para a luta contra a corrupção.

Bolsonaro, por exemplo, rompeu a tradição de nomear o procurador-geral da República entre a trinca eleita pelos integrantes do Ministério Público Federal. Assim como o chefe do antigo Coaf, que persegue a lavagem de dinheiro, ele substituiu o chefe da Polícia Federal do Rio de Janeiro (justamente a cidade em que seu filho Flávio é investigado por peculato, lavagem de dinheiro e supostamente liderar uma organização criminosa).

Por diversas vezes, ainda, o presidente entregou cargos de ministro a suspeitos de corrupção, como o ex-chefe da pasta do Meio Ambiente Ricardo Salles (que no cargo aparentemente continuou a violar as leis), ou o do Turismo Marcelo Álvaro Antônio, ou o ex-secretário de Comunicação da Presidência da República Fabio Wajngarten.

Mais recentemente, Bolsonaro nomeou como ministra da Secretaria de Governo a deputada Flávia Arruda, do Partido Liberal (PL), presidido pelo ex-deputado Valdemar Costa Neto, condenado no mensalão. A lista poderia seguir adiante, aqui apenas os exemplos mais destacados: o atual líder do governo Bolsonaro na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP), foi alvo de operação do Gaeco do Paraná, suspeito de receber propina da Galvão Engenharia. E o atual líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB), é suspeito de ter recebido R$ 10 milhões em suborno de empreiteiras, quando era ministro da Integração Nacional. Esses são dois dos mais importantes apoios desse "governo honesto".

A tudo isso, somem-se os delitos e infrações pequenos e maiores do presidente para mostrar que não se pode admitir por um segundo sequer a afirmação desse governo de que estaria do lado da lei e da ordem: não respeitar a obrigatoriedade de máscara, encorajar garimpeiros e madeireiros ilegais, ofender e ameaçar jornalistas, recomendar medicamentos ineficazes à população, constantes mentiras e distorções da verdade, etc.

O bolsonarismo pode até ter algo contra a corrupção e a criminalidade – mas só a dos outros. Quem crê em outra coisa, caiu na esparrela da máquina de propaganda bolsonarista. É preciso sempre desconfiar dos moralistas.
Philipp Lichterbeck