quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Roubalheira geral

Governar com o antigo sistema foi governar com o compadrio, com a corrupção endêmica dos partidos, não só do PT 
Boaventura de Sousa Santos, sociólogo oráculo de cabeceira da esquerda ibérica e latino-americana

A 'sala vermelha' da tortura

Baseado em documentos da Justiça, o repórter Rafael Soares mostrou que quatro cidadãos presos na madrugada de 20 de agosto durante uma operação militar em favelas da Penha, no Rio de Janeiro, denunciaram torturas sofridas num quartel da 1ª Divisão de Exército (DE). Eles teriam sido levados para uma “sala vermelha”, onde três pessoas com os rostos cobertos e sem fardas deram-lhes “madeiradas” e chicotearam-nos com fios elétricos. Um deles informou que a sessão durou cerca de 20 minutos. Todos eram interrogados para identificar traficantes da região. O grupo permaneceu no quartel por 17 horas, até ser levado para uma delegacia. Continuam presos, acusados de traficar drogas.

Durante a operação nas favelas da Penha, do Alemão e da Maré , traficantes mataram um cabo e dois soldados do Exército. Foram presas 86 pessoas e apreendidos 15 fuzis, 27 pistolas e 11 granadas de mão. A despeito das baixas, essa pode ter sido a ação mais eficaz das forças da ordem desde o início da intervenção militar na segurança do Rio.

Num primeiro momento, a denúncia dos presos levados para o quartel da 1ª DE foi desprezada. Depois que surgiram novas informações, o comando militar decidiu investigar o caso.


Desde fevereiro, quando sete pessoas foram mortas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, paira sobre uma tropa do Exército a suspeita de ter praticado uma chacina. No caso, poderia ter havido um confronto, mas ainda não se sabe o que aconteceu. Na denúncia da tortura da “sala vermelha”, os presos teriam conexão com o tráfico, e um deles é reconhecidamente viciado, mas o episódio teria ocorrido dentro de um quartel do Exército.

Está sobre a mesa dos comandantes militares a questão do esclarecimento das denúncias. A sabedoria convencional mostra que, em certas épocas, uma enorme parcela da opinião pública defende uma política de “mata e esfola”. Quando a maré vira, aqueles que ontem eram festejados como vingadores passam a ser vistos como torturadores. Em 1974, os jornalistas credenciados na Secretaria de Segurança de São Paulo escolheram os melhores policiais do ano, e o delegado Sérgio Fleury ficou em quarto lugar.


O acobertamento de violências corrói a disciplina militar. Só isso explica por que, em 1943, no meio da guerra, o general Dwight Eisenhower ordenou ao seu amigo George Patton que se desculpasse diante da tropa formada por ter esbofeteado um soldado que, a seu ver, se acovardara. Patton comandava os gloriosos blindados americanos que entrariam na Alemanha.

Quando o torturador vê que seus superiores negam ocorrências das quais participou, passa a crer que faz parte de uma elite onipotente e inimputável. Além disso, o acobertamento cria uma trama de cumplicidades que se infiltra no serviço público, no Judiciário e mesmo na imprensa. O espírito de corpo que, a princípio, acoberta defensores de uma ordem específica, acaba se transformando num estímulo à ilegalidade, levando agentes para outras formas de delinquência. As cumplicidades criadas na administração do Rio de Janeiro e de alguns outros estados explicam boa parte da anarquia de seus sistemas de segurança.

A “tigrada” francesa que nos anos 50 baixou o pau na Argélia e varejou comunidades árabes terminou seus dias tentando matar o presidente Charles De Gaulle. A brasileira explodiu no estacionamento do Riocentro.

Num livro intitulado “Torture”, o professor americano Edward Peters tratou essa questão com magistral clareza ao informar: “O futuro da tortura depende do futuro do torturador”. Se ele é aplaudido e promovido, ela se espalha. Se ele é condenado, ela acaba.

Gente fora do mapa

85 mil crianças mortas em cinco anos e outras milhares passando fome no Iêmen com a guerra patrocinada pela Arábia Saudita do príncipe Mohammed bin Salman

Nem bala de prata nem bondades

Nenhuma bala de prata vai derrubar o primeiro e mais temível adversário do novo governo, o enorme desarranjo das contas públicas. O presidente eleito precisa pensar com urgência em algo menos fantasioso e mais eficiente. O primeiro passo para uma avaliação realista é reconhecer o tamanho do problema. Para controlar a dívida pública, uma das mais pesadas do mundo, a nova equipe terá de batalhar durante quatro anos. Se der tudo certo, poderá celebrar um avanço importante no fim do mandato de Jair Bolsonaro. Se a estratégia for mal concebida, ou se as medidas forem mal negociadas, a herança para quem assumir a Presidência em 2023 será assustadora, bem mais do que aquela deixada pelo presidente Michel Temer. Quanto à ilusão do ajuste rápido, foi mais uma vez desfeita, na terça-feira, por um dos mais conhecidos especialistas em contas públicas, o diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto.

Só em 2023, no começo do governo seguinte ao do presidente Jair Bolsonaro, as contas primárias ficarão de novo no azul, disse o especialista à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE). Contas primárias são calculadas sem os encargos financeiros.



Portanto, só em 2023, de acordo com a projeção, o governo terá algum dinheiro para pagar pelo menos uma parte dos juros vencidos. Até lá, nem isso. Enquanto a mera operação do governo consumir mais que o valor arrecadado, será preciso rolar os juros, além do principal, e assim a dívida bruta continuará em crescimento.

A dívida bruta do setor público já superou 77% do Produto Interno Bruto (PIB) e é maior, proporcionalmente, que a da maior parte dos países, desenvolvidos e em desenvolvimento. Em alguns poucos países desenvolvidos o endividamento é superior ao brasileiro, mas suas condições de financiamento são melhores que as do Brasil.


Não se resolverá o problema do déficit primário da noite para o dia com uma bala de prata, resumiu Felipe Salto, afastando claramente a hipótese apresentada durante a campanha eleitoral pelo técnico indicado para o Ministério da Economia, Paulo Guedes. Até agora, lembrou, o controle das contas tem sido realizado basicamente com o corte dos chamados gastos discricionários, como os investimentos.

Para avançar, o novo governo terá de atacar também as despesas obrigatórias. Destas, as mais pesadas são as da Previdência. O sistema é amplamente deficitário e sua situação deverá rapidamente piorar nos próximos anos.


É urgente, portanto, mobilizar forças políticas para aprovar a reforma necessária e corrigir a trajetória desastrosa do sistema de aposentadorias e pensões, observou Felipe Salto. Mas a mudança da Previdência é só uma parte da tarefa. Será preciso rever a política de pessoal e as desonerações tributárias, insistiu o diretor do IFI. Esse órgão técnico assessora o Senado e é constituído segundo um modelo existente em vários países.

Emperrado pelo jogo político, o atual programa de ajustes e reformas pelo menos teve alguns avanços e está voltado para o lado certo. Qualquer desvio poderá ser perigoso. O presidente eleito e sua equipe deveriam dar atenção a advertências formuladas há alguns dias pelo ministro da Fazenda, Eduardo Guardia.

Será um erro, segundo o ministro, repartir com Estados e municípios o valor arrecadado com o leilão de áreas do pré-sal no próximo ano. A iniciativa foi defendida pelo presidente do Senado, Eunício Oliveira, e o futuro ministro Paulo Guedes disse estar aberto à ideia. Mas o dinheiro será necessário ao governo central, lembrou o ministro da Fazenda. Em 2019, disse Guardia, será preciso um grande esforço para cumprir a regra de ouro, a proibição de endividamento para gastos de custeio.

O ministro também apontou o perigo de distribuir dinheiro a Estados sem o compromisso de ajuste das contas estaduais. As facilidades concedidas a Estados nos últimos anos, lembrou, facilitaram maiores gastos com pessoal. Os comentários de Eduardo Guardia, como os de Felipe Salto, são um saudável apelo ao realismo. Bolsonaro e equipe deveriam ouvir essas vozes.

Letra P

Polícia e política costumam estar próximas - e não só no dicionário 
Raul Drewnick

Gestão Bolsonaro tem déficit estético pré-posse

Não foi preciso nem esperar pela posse. Ainda na fase de transição, virou fumaça aquela ideia de que Jair Bolsonaro é intransigente com os malfeitos. Ao contrário do que havia prometido aos seus eleitores, o novo presidente jogou no balcão das barganhas políticas um pedaço do primeiro escalão do governo. Bolsonaro entregou, por ora, três ministérios a deputados federais do DEM. Fez isso à sua maneira.

Em vez de negociar diretamente com o partido, Bolsonaro tirou um ministro do bolso do seu colete e negociou outros dois com as bancadas temáticas da Agricultura e da Saúde. O efeito é o mesmo: os deputados são alçados à Esplanada no pressuposto de que as bancadas supraprartidárias que os apoiam votarão com o governo no Congresso. O capitão diz estar fazendo nomeações técnicas. Pode dar o nome que quiser. Mas será sempre uma nova maneira de batizar o velho costume do toma-lá-dá-cá.

O deputado-ortopedista Luiz Henrique Mandeta, novo ministro da Saúde, é investigado por fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois. Coisas relacionadas à sua passagem pela Secretaria de Saúde de Campo Grande. A deputada-ruralista Tereza Cristina, ministra da Agricultura, deu incentivos fiscais para a JBS como secretária do governo de Mato Grosso do Sul numa época em que fazia negócios com o grupo empresarial. Seu nome consta de documentos entregues à Procuradoria por delatores da JBS. E o deputado Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil de Bolsonaro, é mencionado em dois enredos de caixa dois —um deles confessado.

Como se fosse pouco, também o Posto Ipiranga Paulo Guedes é investigado pela Procuradoria por suspeita de ilegalidades cometidas em transações financeiras com fundos de pensão de estatais.

Bolsonaro costuma dizer que nenhum dos seus escolhidos é réu. Michel Temer dizia a mesma coisa. Mas certas decisões têm um custo político. Bolsonaro poderia ter optado pelo custo zero. Preferiu adotar uma coreografia que impôs um déficit estético a um governo que ainda nem começou.

Feitiços no Espírito Santo

Três bilhões e meio de dólares já não são o que costumavam ser. Pelo menos no Espírito Santo, um estado de quatro milhões de habitantes, industrializado, mas ainda resiliente na pobreza, capaz de encantar Brasília com a magia do equilíbrio fiscal numa federação à beira da falência.

A burocracia capixaba é pródiga. Exemplo: se nada mudar, a partir do próximo ano será possível assistir ao nascimento de um grupo de milionários no serviço público estadual.

Há 23 mil servidores na fila de credores dos cofres estaduais para receber um total de três bilhões e meio de dólares, ou R$ 14 bilhões. Equivale a um ano de arrecadação tributária.

Entre esses, se destaca um grupo de quatro dezenas de burocratas da elite estadual. Cada um deles convive com a expectativa judicial de embolsar mais de 50 milhões de dólares, ou R$ 200 milhões, a título de “gratificação” por apenas uma dúzia de semanas de serviços prestados ao estado, há mais de trinta anos.

Em 1987, a burocracia local resolveu se dar um prêmio com o dinheiro dos contribuintes.

Por lei, criou uma novidade na floresta de penduricalhos salariais do setor público — a gratificação de “trimestralidade” no trabalho. Durou somente três meses, foi revogada, mas os beneficiários ainda estão na fila dos credores estaduais.

A base de cálculo foi inflada. Um integrante da elite burocrática passou a ter direito a gratificação 1.500 vezes superior à sua remuneração — isto é, a um prêmio equivalente a 810 meses (67 anos) por 90 dias de serviço.

Quando o caso chegou ao Tribunal de Justiça, em 2008, o juiz Pedro Valls Feu Rosa escreveu: “Os valores claramente inchados, cristalinamente incorretos, irreais, tornaram a dívida impagável.” Acrescentou: “Se isto não é um escândalo, então já não sei mais o que é um escândalo!”

A Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça marcou para janeiro uma visita ao estado. Se o cálculo dessas gratificações não for resolvido, o feitiço do equilíbrio fiscal do Espírito Santo pode se transformar em desastre financeiro para quatro milhões de capixabas.