quinta-feira, 11 de maio de 2017

Pobre Marisa Letícia

Para livrar-se do escândalo do mensalão em 2005, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva entregou a cabeça do ex-ministro José Dirceu, o coordenador de sua campanha vitoriosa à Presidência da República.

Para livrar-se do escândalo dos aloprados, quando assessores seus forjaram, em 2006, documentos contra o PSDB, ele entregou as cabeças que pôde, inclusive a do coordenador de sua campanha à reeleição, Ricardo Berzoini.

Pouco antes, havia entregado a cabeça do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci quando restou provado que a máquina do seu governo fora usada para quebrar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa.


Nada demais, pois, que Lula tenha se valido de sua mulher, Marisa Letícia, para livrar-se da acusação de que ganhara o tríplex do Guarujá como uma espécie de propina paga pela construtora OAS. Maria Letícia está morta.

Foi tudo obra dela, segundo Lula. Foi ela que quis comprar o tríplex — ele, não. Quando visitou o apartamento, enxergou nele mais de 500 defeitos. Mesmo assim, ela insistiu em comprar para fazer investimento, ele não.

Marisa visitou o apartamento pelo menos duas vezes, lembrou o juiz Sérgio Moro. Lula retrucou que nunca soube da segunda visita. Admitiu tê-la acompanhado na primeira, da qual há registro fotográfico.

Moro perguntou sobre a reforma do apartamento, que ganhou cozinha moderna, um elevador e outras melhorias feitas pela OAS. Lula afirmou que não encomendou nenhuma reforma. Foi coisa de Marisa, portanto.

Diante da insistência do juiz em arrancar-lhe respostas mais precisas e detalhadas, Lula novamente invocou Marisa: “Perguntar coisa para mim de uma pessoa que já morreu é muito difícil, sabe? É muito difícil”.

O Lula eloquente, imbatível quando desafiado, dono de um estoque inesgotável de frases prontas, deu lugar a um Lula reticente, quase monossilábico em certos momentos, que tentava disfarçar o nervosismo.

Cobrou provas da acusação que pesa contra ele no processo. Mas, quando uma delas foi apresentada, desconversou. Moro perguntou sobre um documento rasurado de compra do tríplex encontrado no seu apartamento.

Lula respondeu: “Não sei, quem rasurou? Eu também gostaria de saber”. E sobre o documento em si? Lula respondeu: “Não sei, nunca soube”. Consultou rapidamente o documento e o devolveu ao juiz.

A OAS pagou o armazenamento dos pertences de Lula depois que ele deixou o poder. Foi coisa de Paulo Okamoto, presidente do Instituto Lula, garantiu o ex-presidente. Ele só soube disso muito mais tarde.

Moro não perguntou por que Lula aceitou que a construtora pagasse uma despesa que somente a ele, Lula, caberia pagar. Foi um favor? Foi propina? Foi uma maneira de agradecer pelos contratos que firmou com o governo?

Um interrogatório como o de ontem serve como peça de defesa do réu. Mas serve também ao juiz para ajudá-lo a formar sua própria convicção a respeito da inocência ou da culpa do réu. Como peça de defesa, foi pífio.

Gente fora do mapa

Pierre Verger

A impunidade amedrontada

Quando as coisas sempre dão certo para uma pessoa logo se diz que ela tem muita sorte. Ou que é um líder nato. Sabe fazer amizades. E hipnotizar multidões. Muitas vezes nem sempre é assim.

Mas como as coisas que dão certo, e quase sempre ninguém sabe como, acabam obtendo uma repercussão descomunal, as coisas que não dão certo praticamente somem afogadas pelas ondas dos falatórios a favor.

Pratica-se muito aquela máxima de que em política, por exemplo, o que vale não é o fato, mas a repercussão que se lhe dê. Não é descomunal a repercussão que as mídias impressas e eletrônicas tem dado a depoimento de um acusado perante um juiz criminal?

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Ah, diriam, mas esse réu não é um réu qualquer. Mas o principio maior na República não é o da igualdade de todos perante a lei? Sim, mas o que vai interessar mesmo será a versão final pré-fabricada a ser disseminada. O que quer dizer que essa versão final para ser apresentada de forma atraente pode ser fantasiosa, recheada com mentiras, as mais descaradas.

E assim vão se forjando os mitos, os carismáticos, que se não conseguirem ficar bem na foto da história, pelo menos já tem espaços cativos no cotidiano das coisas indecorosas, posando de invencíveis. Não estou certo que a palavra certa para um começo de compreensão dessa coisa seja cinismo. Digo que não estou certo porque a palavra cinismo não diz tudo.

O cinismo, originariamente, era uma doutrina filosófica na Grécia antiga. Os cínicos buscavam a felicidade na vida simples em sintonia com a natureza, desprezando riquezas, confortos, tendo como parâmetro dessas virtudes o jeito de ser dos cachorros. E das cachorras.

Então quando se diz hoje que alguém é cínico está se dizendo que ele não tem compromissos com as regras sociais nem com a moral vigente, ou seja, é um descarado.

Daí que para algumas pessoas esse negocio de agir com cinismo chega a ser uma constante, quase sempre uma característica, algo já inoculado ao caráter.

A vida em sociedade impõe regras morais e éticas e regras legais, o que significa que todos nós estamos sujeitos a limites.

Cada um na sua função, uns como políticos, outros como juízes, todos como cidadãos, cada um está adstrito aos seus próprios limites.

Mas quando nessa sociedade de regras morais e éticas e de regras legais vem um e transgride e nada lhe acontece, nenhuma sanção lhe é imposta, ele se julga imunizado pela impunidade para poder continuar transgredindo.

Não demora e passa a ser uma pessoa temida, poderosa. Outros transgressores, de menor potencialidade, vão se juntando a ele, na crença de que vão ter sua proteção.

Mostrando união, exibem força e o chefão poderoso passa a ser mais temido. Os medrosos por natureza ou por ocasionais interesses, pelo sim, pelo não, aderem ou se calam.

Vai se formando o mito da invencibilidade. A impunidade deixa de ser a omissão da polícia ou a fraqueza conivente dos julgadores para se transformar em graça divina, - a sorte, justificativa única de tudo.

Tudo na vida um dia acaba. Estrela brilhante se apaga, a lua tem suas fases e numa dessas uma nuvem pode tirar da reta lunar o sortudo. E se tudo é parte de um pacto com diabo, é bom lembrar que nessas parcerias nunca ninguém ganhou.

A impunidade cansada de carregar tudo sozinha nesses tempos todos já começa a sair fora. E se acham que é sorte, é bom não abusar.

Edson Vidigal

O país da rejeição é a favor de quê?

O primeiro grande evento da campanha de 2018, o comício de Lula em Curitiba, dá o que pensar sobre o país da rejeição.

O candidato líder da esquerda e das pesquisas é repudiado por metade dos eleitores. O presidente e seu programa são detestados por pelo menos dois terços.

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No entanto, qualquer que seja o presidente, Lula, um Cacareco midiático qualquer ou o "Novo" inominado, o país será mais governável caso o detestado Michel Temer seja bem-sucedido.

Não importa o que se pense das "reformas", o país tende a ficar mais governável com elas, ressalte-se.

Além do mais, o sucesso temeriano deve liberar os candidatos, da direita à esquerda, do dever de propor um programa desagradável demais ou da tentação de mentir demais na campanha.

Isto é, de mentir a respeito da necessidade de mais suor e lágrimas, inevitável (o problema é saber quem vai pagar a conta).

Com a estabilização precária da economia, será possível evitar mudanças muito impopulares ou tumultuárias no início do novo governo.

Até aqui estamos no âmbito das negações, porém.

O eleitor ora se diz disposto a votar em um anti-Lula qualquer que não seja político reconhecido como tal, "tradicional" ou zumbi da Lava Jato. Diz também que não quer o programa Temer, pelo menos na sua versão sem adoçante ou compensações.

A esquerda oficial, o PT, propõe coisas do arco da velha. Sugere uma volta ao passado pré-Carta aos Brasileiros, canoa na qual Lula embarca enquanto sua campanha está ainda na fase de evitar a cadeia. Tal programa levaria o país ao tumulto antes de 2019.

A direita que está com Temer não parece capaz de ressuscitar até a eleição, mesmo com um "milagre do crescimento" em 2018. Isso inclui o vampiresco PMDB e os zumbis tucanos. Sobram Geraldo Alckmin, que se finge de morto para não morrer de vez, e João Doria, que, diga-se de passagem, pode se estrepar por ser "vivo" demais na marquetagem.

Mas o que propõem? Se dizem liberais, "ges-to-res". Vão dizer que pretendem concluir a Ponte para o Futuro, completar o programa da coalizão de Temer? Doria ainda pode tentar desconversar, porque é "o Novo", linguajar adotado agora também por FHC, talvez apenas por conveniência analítica (ou não?).

As várias ONGs políticas, micromovimentos partidários nascentes mas desligados de políticos tradicionais, na maioria, ainda não parecem capazes de ganhar musculatura a tempo, embora não seja possível descartar um equivalente de Emmanuel Macron.

De todo modo, "o Novo", uma embalagem desencarnada, se torna alternativa cada vez mais atraente, é óbvio para qualquer leitor de jornal, tal como o truque Luciano Huck (convém não desdenhar da maluquice).

Mas, além de vazias, negacionistas ou malucas, essas opções realmente existentes por ora embutem desconversas estelionatárias –mentira eleitoral seguida de choque.

O próximo presidente estará amarrado por escassez aguda de dinheiro no governo, com ou sem "teto" de gastos. Reformas liberalizantes ainda serão necessárias, mas socialmente insuficientes e, de qualquer modo, pós-Temer, devem soar como palavrão, anátema, na campanha de 2018.

Não há palavra positiva e honesta sobre como desfazer esses nós.

Não há lugar para Pinzóns no novo mundo

Traem a nossa confiança desde antes da chegada de Cabral. Hoje se sabe que em janeiro de 1500 o aventureiro espanhol Vicente Pinzón deu por cá e, sem pestanejar, atacou os Potiguar no Ceará, para vendê-los como escravos. Não satisfeito, ainda legou à posteridade a sua versão dos fatos, posando de herói. Portanto, estamos acostumados com a deslealdade. Só resistimos porque nossa força é grande, e ela vem de nossas tradições. Mas, e o Brasil, quanto tempo ainda resistirá? Pinzón nos viu somente como mercadoria, e agora são os nossos direitos originários que estão à venda. Mas o rolo compressor de PECs, PLs, MPs e Portarias que ora nos ameaça pode deixar para trás somente terra arrasada. Como aconteceu no século XVI, quando o invasor europeu raspou até o último talo de pau-brasil e logo exauriu economicamente a terra que acreditou ter descoberto.

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É a economia, homem-branco: a importância de preservação do verde para o clima do planeta é conhecida, mas pouco se fala dos prejuízos econômicos que a sua destruição pode causar. Um negócio só vai adiante quando há confiança entre as partes envolvidas. Segundo a ONG internacional Iniciativa de Direitos e Recursos (Rights and Resources Initiative), em estudo divulgado no início deste ano, a insegurança jurídica implicando a posse da terra e os povos tradicionais pode afastar os investidores. O país atravessa um momento de grande instabilidade política, e o governo age como um aventureiro, impondo mudanças à força. Executivo e Legislativo querem desfigurar a Constituição para dificultar a demarcação de novas terras indígenas e, o pior, rever demarcações já feitas. Avançam vorazmente sobre o Código Florestal com a intenção de enfraquecer as regras de licenciamento ambiental – como se fossem exemplarmente cumpridas. Tratam o próprio país como se fosse colônia. Mas ao agirem de forma tão imprudente e incivilizada, perdem credibilidade e deixam cascas de banana no caminho para eles mesmos escorregarem.

Recentemente, duas vitórias da Justiça e dos povos do Xingu representaram grandes reveses contra essa política predatória. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF 1) suspendeu a licença de operação da usina de Belo Monte, a pedido do Ministério Público do Pará (MPF-PA). O motivo: a Norte Energia, empresa à frente do empreendimento, não executou as obras de saneamento básico na cidade de Altamira, previstas no contrato. E no dia 11, os mesmos TRF 1 e MPF-PA suspenderam a licença de instalação do projeto de mineração da empresa canadense Belo Sun na Volta Grande do Xingu. O estudo de impactos apresentado à Funai pela companhia foi considerado insuficiente, por não conter nenhum dado coletado dentro das áreas indígenas e por não ter sido realizada consulta prévia aos Arara e Juruna, que vivem na região. O projeto também foi paralisado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, por causa de irregularidades fundiárias cometidas na aquisição de terras para sua instalação. Ou seja, o empreendimento está suspenso em duas instâncias: nas Justiças Estadual e Federal. A meta da Belo Sun é instalar a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. A companhia canadense casou rios de dinheiro nessa aventura. Imaginem o tamanho do prejuízo.

Os tempos são outros e não há mais lugar para Pinzóns neste novo mundo.

Sonia Bone Guajajara, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)

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Itália

A Corte dos amigos e parentes

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Capitalismo de amigos em um ambiente de capitalismo de Estado, com o governo distribuindo verbas, créditos e obras para as empresas da casa — isso destruiu a economia brasileira. Mas a coisa vai além. Temos uma República inteira de parentes e amigos. Três casos exemplares chamaram a atenção nesta semana. Começou com o procurador-geral, Rodrigo Janot, pedindo o cancelamento do habeas corpus concedido pelo ministro Gilmar Mendes que tirou da cadeia o empresário Eike Batista. Segundo Janot, o ministro estaria impedido porque a mulher dele, Guiomar Mendes, é sócia do escritório de advocacia Sergio Bermudes, do qual Eike é cliente.

Logo a bola voltou para Janot, cuja filha, Letícia Ladeira Monteiro de Barros, advoga para a OAS e para a Braskem, do grupo Odebrecht, empresas que estão no dia a dia da Lava-Jato e suas ramificações. O procurador deveria ser impedido nos casos daquelas empresas, disse o advogado Sérgio Mendes, que saiu em defesa do casal Mendes.

O terceiro caso está no Congresso. Parece diferente, mas, pensando bem, é um caso da Corte política. O deputado Newton Cardoso Jr. foi designado relator de uma medida provisória que permitia o parcelamento de dívidas com a Receita em até cinco anos. Pois o deputado incluiu no seu relatório perdão de juros e multas, dobrou o parcelamento e mais tantas bondades com devedores, todas medidas que beneficiam diretamente as empresas de seu pai — que acumulam mais de 30 processos fiscais.

Todos os envolvidos responderam com a mesma lógica. Algo mais ou menos assim: qual o problema? Sou imparcial e republicano, sei separar o público do privado (familiar, nos casos).

Na área jurídica, a argumentação em defesa de Janot e Mendes, feita por eles e por outros, foi quase idêntica. A filha de um e a esposa do outro advogam no cível e os casos da Lava-Jato e ramificações estão obviamente no âmbito criminal. Logo, não tem problema.

Curioso que, se esse argumento está correto, Janot não poderia pedir o impedimento de Mendes. Do mesmo modo, o advogado Sergio Bermudes não poderia dizer que o procurador-geral deveria ser impedido.

E se os dois lados estiverem certos, um contra o outro? Ok, o escritório Sergio Bermudes só advoga para Eike nos processos civis. Mas Bermudes, conforme admitiu, aparece como advogado do empresário no processo criminal e chegou a acompanhá-lo pessoalmente numa audiência.

Prestigiou o cliente num momento difícil, claro, mas olhem pelo outro lado, o do juiz do caso. Ele olha e vê ali um cliente do doutor Bermudes, o que não é pouca coisa. Trata-se de um dos mais brilhantes advogados brasileiros, titular de um superescritório, com sócios do primeiro time.

Faz diferença, não é mesmo?

Janot se defendeu em nota oficial com uma tese que pode ser assim resumida: ele, procurador-geral, não atuou pessoalmente, não assinou nenhum ato em partes do processo envolvendo a empresa OAS; e o que envolve executivos da OAS está a cargo dos promotores do Grupo de Trabalho da Lava-Jato.

Mas a empresa e seus executivos estão na Lava-Jato e quem manda na operação, em última instância, é Janot.

De maneira que a história vai mais longe. Janot, Mendes e Bermudes parecem convencidos de suas posições e seus argumentos. Nota-se mesmo uma indignação de todos os três quando dúvidas ou suspeitas são levantadas de um lado para outro.

É que, no ambiente da Corte, essas relações familiares e de amizade têm sido consideradas normais há tanto tempo que o pessoal estranha quando alguém estranha.

Ok, é normal que filhos sigam a carreira dos pais. Há famílias de médicos, jornalistas, advogados. Nenhum problema quando a família atua no setor privado. Mas a coisa muda quando se chega ao setor público.

Claro que a filha de Janot e a mulher de Gilmar Mendes podem ser advogadas. Mas pai e marido deveriam admitir, quando assumem altos cargos no Judiciário, que de duas, uma: ou eles passam longe de qualquer caso no qual atuam filha e cônjuge ou estas não atuam em casos que podem chegar a seu pai e marido.

Simples assim. Qualquer outra situação gera as dúvidas que este caso está suscitando — e enfraquece o Judiciário e, pois, o governo e a República.

Qualquer pessoa de bom senso percebe isso. Esqueçam as tais argumentações técnicas, de alto teor jurídico. Não pode o juiz decidir sobre um caso que envolve ainda que remotamente um parente ou mesmo um amigo.

É a mesma situação de Palocci e Dirceu, que ganhavam dinheiro fazendo consultoria para empresas clientes do governo do PT. Como se pode imaginar que saía daí uma consultoria independente?

E tem mais: o pessoal da alta Corte acha normal que advogados que atuam nos tribunais superiores sejam amigos do peito de juízes que decidem seus casos. Dividem jantares, festas, viagens.

Não pode, é claro.

Eis outro efeito indireto da Lava Jato. Está exibindo as perigosas relações da Corte.

Carlos Alberto Sardenberg

Sobre a construção de obras duradouras

Quanto tempo
Duram as obras? Tanto
Quanto o preciso pra ficarem prontas.
Pois enquanto dão que fazer
Não ruem.

Convidando ao esforço
Compensando a participação
A sua essência é duradoura enquanto
Convidam e compensam.

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As úteis
Pedem homens
As artísticas
Têm lugar pra a arte
As sábias
Pedem sabedoria
As destinadas à perfeição
Mostram lacunas
As que duram muito
Estão sempre pra cair
As planeadas verdadeiramente em grande
Estão por acabar.

Incompletas ainda
Como o muro à espera da hera
(Esse esteve um dia inacabado
Há muito tempo, antes de vir a hera, nu!)
Insustentável ainda
Como a máquina que se usa
Embora já não chegue
Mas promete outra melhor.
Assim terá de construir-se
A obra pra durar como
A máquina cheia de defeitos.
Bertold Brecht

Aba-pe-endé? Mamõ-pe-reikobé?

Com exceção das ditaduras ou similares, dos países africanos mais institucionalmente esculhambados, onde, senão num país que não trata as más formações de nascença ou adquiridas, não encara os traumas de infância e repete os erros da vida adulta, um integrante da corte máxima e o Procurador-Geral da República (uma elite!) rebaixam, em público e nos bastidores, as instituições que integram a disputas pequenas de tal forma que fragilizam o país já vulnerabilizado no pós-Janete? A bandidagem deve estar agradecida.

Conta-se que era 22 de abril de 1500, na Bahia, claro; já fazia uns dias que os índios espreitavam as estranhíssimas formações no horizonte que cresciam e já ganhavam a praia e a aparição de uns bichos sem banho, brancos, doentes, esdrúxulos, com cabelo na cara e o corpo coberto com panos assombrou os nativos limpos, pelados, morenos, saudáveis: Aba-pe-endé? Mamõ-pe-reikobé? Cito de cabeça, das longíguas aulas de tupi antigo (pré-colonial) na universidade. “Aba” (som de oxítona) é homem/ser humano; “pe” (“e” fechado) é partícula interrogativa; “endé” equivale a “quem”; “mamõ” (o “a” bem aberto e o “õ” muito nasalado) é “onde/lugar”; reikobé (pronuncia-se o “r” como em “neurônio solitário”; em tupi o “r” nunca é pronunciado como em “corrupção”) denota origem com verbos como surgir, aparecer e vir. Então, “Aba-pe-endé? Mamõ-pe-reikobé?” pode ser traduzido como “Quem são vocês e de onde vêm?”. O choque, o espanto, a perplexidade foram mútuos. Dois universos se encarando nas praias de… Ó pá, não vá nos dizer que passamos de Porto Seguro e viemos dar no Ceará!

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Não. Exaustos, abatidos e estupefatos, depois de meses no mar, Cabral e sua turma sabiam onde estavam desembarcando. Em abril de 2013, numa solenidade para inaugurar uma obra de combate à seca em Fortaleza, Janete afirmou que fora nas areias cearenses que os portugueses aportaram há 513 anos então, mas era Janete quem não fazia ideia de onde se metera ao embarcar na presidência do Brasil, viagem que o morubixaba jeca lhe arranjou para garantir a dele só de ida em retorno ao poder.

Ridícula e absurda, mesmo para uma nação que naturalizou espantos, Dilma está em Curitiba figurando na farsa espantosa que os petistas produziram em torno do interrogatório do idolatrado chefe da organização criminosa, afinal um circo não ficaria completo sem uma mulher sapiens. De dentro de natural confusão que a ansiedade provoca quando é grande e não é outra coisa senão de grande ansiedade para o ansiado depoimento que a alma de Lula transborda segundo o próprio, o réu orientou os advogados a insistirem até o último minuto na chicana que o livre do juiz Sérgio Moro.

Janot concorda com Janot contra Mendes; Janot discorda de Janot contra Janot; Janot e Mendes acham que mulher advogada é diferente de filha advogada. Nem sei nem me interessa quem está mais errado, os dois estão fora da casinha faz tempo, representam o nepotismo judicial-processual brasileiro e um deveria se abster nos casos Guiomar-Bermudes e o outro renunciar. É pedir muito? No país dos espantos, sim: logo mais, o corporativismo patológico – outra das más formações brasileiras – vai agir para deixar tudo como está e o público pagante dos gordos salários segue na expectativa frustrada de algum decoro por parte das excelências que desonram os respectivos cargos. A toda essa gente estranha a uma nação menos primitiva e que insiste em farsas íntimas e coletivas, cabe perguntar: Aba-pe-endé? Mamõ-pe-reikobé?

Paisagem brasileira

Parque Nacional do Catimbau, Buíque (PE)

Vocabulário paradoxal (para tempos paradoxais)

Por favor, não saque a arma no saloon. Eu sou apenas o cantor
Belchior (1946-2017)

Não se trata de inventar palavras novas à toa. Acontece apenas que, de vez em quando, para compreender o incompreensível e dizer o indizível é preciso ver o invisível e, nesses casos (extremos), uma palavra é tudo o que nos resta. Palavras, para quem ainda não percebeu, são máquinas de ver. Só vemos com nitidez aquilo que somos capazes de nomear. O sociólogo francês Pierre Bourdieu, no livro Sobre a Televisão, já tinha avisado: “Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência”. Um pouco antes dele, o jornalista americano Walter Lip-pmann, em Opinião Pública, escreveu mais ou menos a mesma coisa: “Na maior parte das vezes, não vemos primeiro para depois definir, mas primeiro definimos e depois vemos”.

Em tempos de muito falatório, é paradoxal: não precisamos de menos, e sim de maispalavras. Palavras que nos tirem da cegueira. Palavras que nomeiem o inominável.

Sendo assim, aqui vai uma contribuição imodesta. Seguem-se quatro vocábulos heterodoxos – uns inexistentes, ainda, outros bem pouco frequentes – não para produzir a luz (disso a fala não dá conta), mas bulir com a escuridão. As quatro palavras que serão expostas agora talvez nos ajudem o pensamento a sobreviver num Brasil indecifrável. Ou não. Em todo caso, bom proveito.

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Pop-lulismo – Substantivo masculino, até onde se sabe. Designa uma afecção do espírito das massas que se manifesta na compactação de opiniões sob a forma de certeza coletiva sólida, que repele frontalmente disposições, informações, fatos e evidências em contrário. Do carisma do líder pop (aquele de quem Barack Obama disse “é o cara”) o pop-lulismo carrega a idolatria, ainda que seu objeto de culto se tenha esvaziado de charme. Seria um fenômeno típico da indústria do entretenimento, mais ou menos como a seita “Elvis não morreu”, não tivesse migrado para o universo conturbado da demagogia sob as vestes de populismo rancoroso. Perdeu sua sustentação no mundo dos fatos, mas o pop-lulismo não vê o óbvio ululante – nem o admite.

Novelho – Substantivo masculino e adjetivo idem. O termo resulta da fusão (de resto, evidente) de dois adjetivos antônimos: novo e velho. Vem a propósito de recentes declarações de luminares da sociologia pós-moderna apontando no atual prefeito de São Paulo “o novo” na política brasileira. Interessante. Novo? De personagens que xingavam grevistas de vagabundos a história política do Brasil está cheia. Nunca nos faltaram autoridades que afirmavam que protestos de rua eram caso de polícia. De outsiders que estrearam na política vituperando contra a política e contra a alegada putrefação dos hábitos políticos abundam exemplos no mundo inteiro. No Brasil, tivemos em 1964 aquela pregação um tanto histérica de que era preciso livrar a política dos políticos. A coisa desaguou no golpe militar e, em 1968, recrudesceu com o golpe dentro do golpe. Fardas e patentes na administração pública fariam bem ao povo brasileiro. Logo, vale a pergunta: o que há de novo num político que vive de dizer que não é político? O prefeito de turno pode, sim, ser uma novidade, mas isso não faz dele “o novo”. A partir do pouco que dá para vislumbrar das ideias que ele representa, já se tem a certeza de que ele é bem mais velho que, digamos, Fernando Henrique Cardoso, que não é tão novo assim. Não custa lembrar que um antigo compositor, não baiano, nos dizia ter visto “um museu de grandes novidades”. É um pouco assim que descamba o cenário nacional, salpicado de novelhos.

Antipolítica – Substantivo feminino. Como adjetivo, o vocábulo é mais usual. Aparece, com muita luz, no ensaio Verdade e Política, de Hannah Arendt. Empregado como substantivo é menos frequente. Há anos este dedicado articulista vem alertando, neste espaço, para os riscos representados pela antipolítica (como substantivo). O uso vem se difundindo. A antipolítica se define por ser uma atividade política articulada por um discurso que nega a política e desqualifica seus agentes. A antipolítica tende a desconstituir a política, mais ou menos como um cavalo de Troia. A antipolítica é um vírus que invade o organismo e consegue disfarçar-se de célula de defesa. A antipolítica rechaça o diálogo e a negociação. A antipolítica sugere que a força bruta é mais eficaz e mais rápida que as tentativas de entendimento. Há traços rasgados de antipolítica em Donald Trump, em Vladimir Putin, em Recep Tayyp Erdogan e em Nicolás Maduro. Há empuxos bem preocupantes de antipolítica no Brasil, à esquerda e à direita, como se pode deduzir dos dois verbetes anteriores, mas não vamos fulanizar ainda mais as moléstias do nosso quadro clínico.

Pós-imprensa – Substantivo feminino. Falou-se muito da “pós-verdade”, o vocábulo do ano do Dicionário Oxford em 2016. Outros preferem falar em “pós-fato”. As duas palavras querem iluminar mais ou menos a mesma cena: na nossa era, a verdade factual deixa de ser o lastro em torno do qual se constroem os consensos para a gestão da coisa pública, para a administração do Estado, para a ação política dos grupos de interesse e dos partidos. Em lugar da verdade factual, o que aflora são as convicções polarizadas, o fanatismo, o irracionalismo elevado à segunda potência. Pois bem, se o fato perde valor na política, ele também perde valor na imprensa e se a imprensa não existe mais para checar os fatos, uma vez que ninguém mais liga para os fatos, essa mesma imprensa pode ser reduzida à triste condição de caixa de ressonância de preconceitos e mensagens de ódio (difusos ou concentrados). Se o espírito original da imprensa morrer, o que lhe sucederá serão flechas envenenadas contra a democracia e, no fim, contra a civilização.

Ah, sim, os verbetes não foram arrolados em ordem alfabética. No meio da desordem conceitual, a ordem alfabética foi revogada.

Engana que eu gosto

 
Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo ou todas as pessoas durante algum tempo, mas você não pode enganar todas as pessoas o tempo todo
Abraham Lincoln

Manifestação em Curitiba foi um fracasso e reduz as chances eleitorais de Lula

Era um dia muito especial, mas as expectativas se frustraram e acabou sendo uma quarta-feira como tantas outras. A Bolsa de Valores subiu 1,67%, nada mal, e o dólar recuou para 3,168, prejudicando os exportadores. Enquanto isso, em Curitiba, o número de manifestantes pró-Lula era muito inferior ao esperado, mostrando que o PT, as centrais, os sindicatos e os movimentos sociais já não têm tanta força como se pensava.

A expectativa era enorme, o interrogatório de Lula havia se transformado no grande assunto do dia, não se falava em outra coisa, muita gente pensava que o ex-presidente seria preso e havia até torcida organizada para que isso ocorresse. Mas não aconteceu nada disso, os resultados foram surpreendentes e não estavam previstos.
A concretização da derrocada da manifestação organizada em Curitiba já era do conhecimento dos dirigentes petistas desde a semana passada e no fim de semana houve a confirmação sobre o pequeno número de ônibus fretados. Em decorrência, aconteceu então aquela correria dos advogados de Lula para adiar o depoimento, recorrendo ao mesmo tempo a três instâncias – ao juiz federal Sérgio Moro, ao Tribunal Regional Federal de Porto Alegre e ao Superior Tribunal de Justiça. Só esqueceram de ir ao Supremo, onde o recurso poderia cair com Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski ou Dias Toffoli, não necessariamente nesta ordem. Mas também no STF o clima está tempestuoso.
Os dirigentes e líderes do PT já sabiam do fracasso anunciado da manifestação, o que explica o ar de desânimo de Lula e da senadora Gleisi Hoffmann ao se encontrarem com os militantes na rua, a caminho do fórum federal de Curitiba. O astral estava mesmo baixo, não dava para esconder, embora os manifestantes continuassem demonstrando entusiasmo, gritando palavras de ordem. E diz o velho ditado que uma imagem vale mais do que mil palavras, como se constata na foto de Nacho Doce, da Agência Reuters, publicada no G1 e aqui reproduzida nesta análise.

A essa altura, já nem importa o que Lula disse ou o que lhe foi perguntado pelo juiz Sérgio Moro. O destino do ex-presidente já está traçado e ele tem um encontro com a Justiça. O fracasso da manifestação em Curitiba fala mais alto. É o oitavo município no ranking nacional e a região administrativa tem 3,5 milhões de habitantes. Mas só aparecem 5 mil pessoas para ouvir Lula discursar, num momento crucial. A grande maioria dos participantes da manifestação veio de fora, nos ônibus fretados, para passear de graça, com tudo pago. Esta realidade desmonta as pesquisas de opinião que têm sido divulgadas dando Lula como grande favorito, a farsa ficou evidente.

A conclusão é óbvia. Se neste momento decisivo, com apoio de quase todas as centrais, da maioria dos sindicatos, dos sem-terra, dos sem-teto, de outros movimentos sociais e da UNE e entidades estudantis, mesmo assim Lula não conseguiu encher a Praça de Curitiba, como será que pretende se encher de votos?

Circo armado por Lula tem um culpado no picadeiro

É compreensível que Lula e sua trupe de bacharéis tenham feito o diabo para adiar até o fim dos tempos o primeiro encontro com Sérgio Moro. E foi tão previsível quanto a mudança das estações do ano a tentativa do bando, tão logo se consumou o fiasco da tentativa de fuga, de transformar Curitiba em picadeiro, tribunal em palanque e depoimento de réu culpado em discurseira de perseguido político de botequim.


O ex-presidente que, ao contrário de Getúlio Vargas, saiu da história para cair na vida, não tem álibis nem atenuantes para os muitos crimes que cometeu. Sobretudo por isso, o que está em curso nesta quarta-feira não pode ser reduzido a um duelo entre um defensor da Justiça e um fora da lei. O que se vê é o confronto entre dois brasis. De um lado, está escancarado o Brasil do passado, uma velharia agonizante que até agora só condenava os lulas à perpétua impunidade. Do outro lado se vislumbra o Brasil do futuro, que está nascendo graças à Lava Jato. Neste país em trabalhos de parto, todos são iguais perante a lei.

O circo armado por Lula para escapar de punições judiciais merecidíssimas transformou em certeza a suspeita que vinha crescendo entre jornalistas do mundo inteiro: o ex-presidente que se fantasia de pai dos pobres é o chefe do maior esquema corrupto da história. O depoimento de hoje vai aguçar, entre os que conhecem as duas ofensivas contra a impunidade institucionalizada, a sensação de que a Lava Jato tem tudo para ir muito além das fronteiras expandidas pela Operação Mãos Limpas.

A imprensa italiana, por exemplo, tem tratado como reprise de quinta categoria as reações desesperadas, patéticas ou apenas ridículas dos políticos envolvidos até o pescoço nas bandalheiras. É coisa de cobra mal matada. É medo de cadeia, hoje epidêmico entre a turma do foro privilegiado.

O que nenhum jornalista de qualquer país entende é a proteção oferecida por ministros do Supremo Tribunal Federal a bandidos de carteirinha. Por que, em vez de estender-lhes a mão, o STF não ajuda a manter algemados os pulsos dos ladrões irrecuperáveis? Essa é a pergunta que mais tenho ouvido na Itália. Essa é certamente a pergunta que se fazem neste momento milhões de brasileiros decentes.