quarta-feira, 18 de março de 2020

Brasil sem governo


O barulho das panelas volta a ser ouvido

Sentado no banco dos réus da opinião pública, o presidente Jair Bolsonaro, conhecido como O Mito, começou a ser julgado. No mesmo dia em que passou com boa nota no teste do coronavírus, o segundo que fez em menos de uma semana, virou alvo do seu primeiro panelaço antes de completar 14 meses de governo.

Bolsonaro parece ter vindo ao mundo para destacar-se em todos os rankings. Como soldado raso, batia os colegas em exercícios físicos – daí o apelido de Cavalão. Foi o primeiro sindicalista militar a planejar atentados terroristas contra quartéis. E, por isso, acabou afastado do Exército, acusado de conduta antiética.

Em quase três décadas na Câmara, Bolsonaro apresentou 171 projetos de lei, de lei complementar, de decreto de legislativo e propostas de emenda à Constituição. Só conseguiu aprovar dois. No Congresso, foi um dos precursores da rachadinha – a apropriação indébita de parte dos salários dos seus servidores.

Apesar de sua irrelevância, chegou onde está sem fazer escala em nenhum outro lugar para, poucos meses depois, tornar-se o presidente com o menor grau de aprovação no seu primeiro ano de mandato. Nunca antes um presidente ouviu tão precocemente o barulho das panelas e o grito de “fora”. Ele ouviu.

Há outro panelaço marcado para esta noite. Uma coisa dessas sabe-se como começa, mas nunca se sabe como termina. Da redemocratização do país para cá, só Dilma Rousseff ouviu, e deu no que deu. Fernando Collor viu multidões vestidas de preto quando ele recomendara que se vestissem de verde e amarelo.

Bolsonaro já garantiu seu lugar na História. Enquanto Garrastazu Médici, o terceiro general-presidente da ditadura militar de 64, reconhecia que a economia ia bem, mas o povo ia mal, o ex-capitão indisciplinado está mais preocupado com a economia do que com o povo em meio a uma pandemia que mete medo.

Não só por isso será lembrado. Qual presidente seria capaz de sabotar o ministro mais festejado do seu governo pelo menos no momento – o da Saúde? O que inspira maior confiança? Qual presidente, numa hora dessas, seria capaz de instruir um ministro para que negue ajuda a governadores que lhe pedem ajuda?

Por seus méritos, não por seus defeitos, Luiz Henrique Mandetta entrou na alça de mira de Bolsonaro, dos seus filhos e da extrema-direita mais ensandecida que os apoia. Demiti-lo já, seria impensável – embora de Bolsonaro se possa esperar qualquer coisa. Vencida a pandemia, serão outros quinhentos réis.

Bolsonaro conta com mais um militar, da sua confiança enquanto ela dure, para suceder Mandetta – o atual presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o contra-almirante Antônio Barra Torres. Foi a única autoridade que apareceu ao lado de Bolsonaro no encontro com manifestantes do último domingo.

Barros Torres é da estirpe ideológica de um Abraham Weintraub, ministro da Educação, embora mais discreto. E se não o é por origem, está pronto para sê-lo, alinhando-se incondicionalmente a quem lhe deu emprego e pronto para satisfazer todas as suas vontades – inclusive a de ser filmado em êxtase.

Mandetta é deputado e à Câmara voltaria – como voltou Osmar Terra, desalojado do Ministério da Cidadania para dar lugar a Onyx Lorenzoni, por sua vez removido da Casa Civil e substituído por mais um general, Braga Neto, justo quando o general Luiz Eduardo Ramos balança, balança, mas não cai.

Um presidente movido a ódio e barulhento como Bolsonaro faz por merecer o barulho das panelas anônimas que voltou a ser ouvido.

Bolsa de ouro, vida de ....

Não vale garantir a economia com perda de vidas
Rodrigo Maia, presidente da Câmara

No grupo de risco

Nunca pensei que um velhinho saudável e inofensivo pudesse ser considerado um risco à saúde pública só porque tem mais de 80 anos. E, pior, que devesse ser mantido afastado de todos, inclusive dos netos. Sei que vocês vão dizer que isso não é nada diante do que ocorre, por exemplo, na Itália, onde idosos estão sendo abandonados à própria sorte, isto é, à morte, pois não há como tratar de todos. A taxa de letalidade do novo coronavírus é a mais alta entre os “vulneráveis”, 14,8%, enquanto é de 8% entre os de 70/79 anos. Na China, 15% dos mais de 80 anos morreram.

Nem por isso subestimem a situação de um avô impedido de abraçar, beijar ou simplesmente de tocar seus netos, como é o meu caso. Quando a mãe e o pai tiveram a generosidade de vir morar aqui ao lado, no mesmo andar, porta com porta, era para que Alice e Eric permanecessem perto dos avós mais velhos (eles têm outros, mas novos). Além disso, sabiam que seríamos uma proteção a mais. Podiam sair à noite tranquilos para o cinema, porque as portas ficariam entreabertas, e Mary e eu estaríamos de olho.

Por outro lado, Alice, que hoje tem 10 anos, e Eric, 7, não demoraram a descobrir que o apartamento vizinho era o fascinante território da permissividade, onde podiam praticar os excessos que em casa não lhes permitiam, sobretudo em matéria de doces. É o mínimo que podemos oferecer em troca do prazer que recebemos. Aliás, costumo dizer que se soubesse que era tão bom ser avô teria pulado a etapa dos filhos.

Agora se discute se é mais perigoso deixar que as crianças frequentem a escola ou que permaneçam em casa aos cuidados dos avós. Depois de ouvir especialistas, a jornalista Ana Lucia Azevedo concluiu: “há risco em deixar criança com avós, mas é melhor que ir à escola”.

Enfim, por mais doloroso que seja para nós, que diariamente abraçávamos e beijávamos Alice e Eric, temos que nos contentar com beijos e abraços à distância. E não consideramos “histeria” as medidas contra a pandemia.

Histérico é ... deixa para lá. É bom não mexer com quem não regula bem.

Apóstolos da discórdia

Nas grandes crises cada governante mostra seu tamanho. Alguns se agigantam e outros se apequenam. Winston Churchill, um dos maiores estadistas do século passado, uniu os britânicos na Segunda Guerra Mundial ao não escamotear a gravidade da crise e oferecer apenas “sangue, suor e lágrimas”. Emmanuel Macron adotou postura semelhante com seu discurso “Estamos em “Guerra””. O presidente francês está unindo seu povo em uma batalha que será dura e prolongada.

O verdadeiro estadista é o que entende o sentido de emergência em uma grave crise, deixa para trás divergências e promove a união nacional. Na Segunda Guerra o inimigo comum foi o nazismo. Hoje é a pandemia causada pelo coronavírus.

Às vezes a necessidade de unir a nação impõe renúncias. Macron, por exemplo temporariamente abriu mão de sua reforma da previdência por ser um óbice para o consenso dos franceses, em uma hora tão dramática.

Nem todos os governantes são estadistas. Mas entre quem tem essa estatura e quem deixa exposta a sua mediocridade há cinquenta tons de cinza.

Vejamos Donald Trump. Derrapou nos primeiros quinze dias subestimando os riscos do Covid-19, mas soube se reposicionar. Adotou medidas drásticas e encontrou um terreno comum entre democratas e republicanos no combate à pandemia que dizima milhares de vidas e arrasta a economia mundial para uma recessão de graves proporções.

Sim, diferenças aparentemente intransponíveis podem ser superadas com empenho e liderança. Em pouco mais de um ano Israel passou por quatro eleições, diante da impossibilidade de ter um governo estável. Pois bem, o vírus levou Benjamin Netanyahu e a oposição ao entendimento em torno de um governo de união nacional.

Nas grandes crises alguns governantes não estão à altura das exigências do momento. Neville Chamberlain era o homem errado no lugar errado, no limiar da Segunda Guerra Mundial.

Hoje é o presidente Jair Bolsonaro que se candidata a esse papel.

Nesse momento tão crucial sua grande missão seria promover a união dos brasileiros em torno da defesa da saúde e da economia nacional. A sobrevivência de muitos brasileiros está ameaçada pela pandemia. É dever do presidente defendê-los.

Bolsonaro, entretanto, dedica-se à missão de dividir os brasileiros e os poderes da República, comportando-se como um artesão da discórdia. Irresponsavelmente atenta contra a saúde pública ao estimular e participar de manifestação de rua. Não satisfeito, diz que vai comemorar seu aniversário com uma “festinha” no próximo sábado. Despreza as recomendações de seu ministro da Saúde!


Mais grave, soma sua voz a de outros apóstolos da cizânia, como o bispo Edir Macedo, para quem o coronavírus é obra de satanás. Enquanto a negação da realidade se limitava ao terraplanismo, apenas caia no ridículo. Mas quando ela põe em risco a saúde das pessoas é gravíssima. É uma postura obscurantista, que menospreza os riscos da pandemia.

Ontem Bolsonaro voltou a repetir que tudo não passa de uma onda de histeria. Se é assim, por que sua equipe econômica pediu para o Congresso aprovar a decretação de estado de calamidade? O ministro Paulo Guedes estaria contaminado pelo histerismo?

A saúde do presidente também não é uma questão particular, diz de perto a todos os brasileiros, mas, na sua paranoia, considera como golpe o seu isolamento, mesmo quando ditado por razões médicas. Sua leitura conspiratória vê por traz de tudo uma ação desestabilizadora do Congresso e da Suprema Corte para apeá-lo do poder.

O Parlamento comete derrapadas, como a criação de uma nova despesa de vinte bilhões ao ano. O STF também não é ingênuo. Mas vamos ser honestos, não são eles os agentes da cizânia. Quem está desempenhando esse papel, com objetivos ainda impossíveis de descortinar, é Bolsonaro.

Exemplo disso foi a reunião entre os presidentes de dois poderes com o ministro da saúde: fato inimaginável num regime presidencialista. Mas a presença do primeiro mandatário tornou-se dispensável porque ele simplesmente não soma. Ao contrário, divide.


O presidente está se auto isolando politicamente. Por motivos ideológicos veste a armadura ideológica do seu bolsão mais radical, governando apenas para ele. Propositadamente, tenta confundir a nação valorizando as manifestações que reuniram poucas pessoas no domingo; que foram às ruas para defender que o coronavírus é mentira e atentar contra os outros poderes da República.

Não se combate pandemia e recessão com ideologia. Muito menos promovendo a dissídia entre os brasileiros. O país dispensa os apóstolos da discórdia.
Hubert Alquéres

Blefe, na melhor hipótese

Nunca foi tão fácil saber quem tem razão. Os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, na liderança de suas instituições, transmitem mais conforto e segurança à maioria da população que o presidente da República. Sem os meios, que estão serenamente bem tocados pelo Ministério da Saúde, os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário dão sinais de equilíbrio, enquanto o presidente Jair Bolsonaro cria uma rota preocupante de insanidade suicida. Entra nela quem quer, mas caberia ao presidente dar o bom exemplo. Está nele o que acusa nos outros: só pensa na disputa do poder que, hoje, envolve o risco de morte.

Neste momento de incerteza da própria sobrevivência coletiva, quando deveria estar preocupado com a salvação pública, é incrível que o presidente protagonize não ações que gerem confiança, transparência e prudência, mas surtos incontroláveis do seu temperamento persecutório e provocativo.

Um Poder Executivo esconder suas próprias manobras chantagistas alegando ser vítima de chantagem, é blefe.


Jair Bolsonaro dizer que está apanhando há 15 meses e agora vai revidar, é também blefe. Desde que assumiu está batendo, provocando as demais instituições, jogando uns contra outros, transferindo a terceiros seus fracassos reais e imaginários. Sim, a cobrança é leve porque não houve tempo sequer para sofrer perdas significativas. Sente-se, pela desproporção dos atos, como se o próprio Bolsonaro estivesse preparando justificativas para uma ação excepcional.

Foram Bolsonaro, filhos e amigos que transformaram a Presidência em rinha.

Não é bom para a democracia que o Poder Legislativo fique omisso e engula atos de provocações a seco. Nem é razoável, também, que parta para retaliação ao Executivo, punindo toda a sociedade, como faz o presidente da República. O Legislativo está agindo de acordo com suas atribuições. E basta que mantenha a calma, bom senso, cuidados sanitários, definindo sua agenda conforme a possibilidade do momento.

O ministro da Economia, tal como o presidente, perdeu a hora para as reformas primordiais, a Tributária e a Administrativa. Depois das eleições municipais podem sair do arquivo, quem sabe. Agora a pauta está dominada pelas medidas de guerra e sobrevivência.

Quem brinca com a vida dando saltos mortais em momento inoportuno pode se arrebentar.

Paulo Guedes foi ao Parlamento e ficou divagando sobre o crescimento da Ásia. Os parlamentares perderam a paciência e a cerimônia, mais de dez saíram da sala. Uma reunião sem as grosserias de outros tempos, mas sem resultados.

No Congresso dissemina-se a certeza de que Bolsonaro nunca quis de fato as reformas e acredita não precisar delas para que a economia cresça 3%. Agora, com a pandemia, o futuro das reformas ficou ainda mais incerto.

À margem destas constatações, o governo tem exemplos internos de compostura no exercício do poder, mas não os cultiva. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, faz um trabalho de coordenação dos projetos de interesse do BC, a serem apreciados no Congresso, desde o primeiro dia no cargo. Reúne-se e dialoga com parlamentares, tudo na mais estridente discrição. Não será surpresa se conseguir aprovar a autonomia do Banco Central em meio às medidas emergenciais de combate ao vírus letal. Um nicho de temperança, enquanto a ambiguidade, a provocação, o escracho vão reduzindo a ação parlamentar do governo ao padrão de vereador do Rio.

O ministro Guedes, destilando desprezo pelo Congresso, arrisca transformar-se, precocemente, em um Guido Mantega. Cobrado, Guido reclamava do Congresso, a quem transferia a culpa, e ficava tudo por isso mesmo. Até que, em determinado momento, algo aconteceu: o impeachment.

Pensamento do Dia


O vírus Bolsonaro

É difícil não se horrorizar ao ver as fotos de Jair Bolsonaro participando de um ato contra o Congresso, abraçando pessoas e apertando as mãos de seguidores.

É pavoroso constatar que existem pessoas que tratam a atual situação de calamidade pública como se fosse uma “armação da mídia”, pessoas cegas em seu fanatismo, indiferentes a milhões de brasileiros. Posam de verde e amarelo e se dizem patriotas, mas são traidores da Pátria, se quisermos falar assim.

Um presidente que infringe regras e orientações estabelecidas por seu próprio governo é uma aberração. Ele debocha daquilo que deveria ser norma de conduta. Põe em risco a saúde da população e mostra não estar à altura da crise em que nos encontramos, que é epidemiológica e mundial, mas é também política, moral, econômica. O País está parado, à espera de alguém que o lidere e governe.


Em se tratando de Jair Bolsonaro, não dá para dizer que chegamos ao fundo do poço. Dele podemos esperar coisas sempre piores, mais graves, deletérias. Trata-se de um presidente que faz do poder um jogo de vida e morte, o contrário do que se esperaria de alguém eleito para governar um País enorme, complexo, diversificado. É um exibicionista, agarrado a ‘lives’ patéticas, nas quais demonstra toda a sua grosseria, seus maus modos, seu egocentrismo, sua irresponsabilidade. Tanto pode aparecer de máscara como se estivesse em quarentena, quanto pode cair nos braços da galera que o acompanha como se não houvesse amanhã.

Bolsonaro é uma versão do vírus do fanatismo populista e retrógrado, essa monstruosidade que se espalhou pelo mundo como uma pandemia. É uma ameaça à sociedade, à democracia, à dignidade humana.

Até quando o País suportará? Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial? O presidente hoje conspira abertamente contra seu próprio governo. Seus ministros e assessores parecem achar graça em suas peripécias, pensam que não atrapalharão demais, acham que ‘o cara é assim mesmo, é o jeito dele’. E a trupe de seguidores segue atrás, batendo bumbo e tirando fotos, contra tudo e contra todos.

Aqueles que compõem o governo atual e lhe dão sustentação ou são covardes irresponsáveis, que temem fazer alguma coisa, ou estão mancomunados com a mesma fúria de destruição que o presidente exibe, de modo cada vez mais escancarado.

Vale quanto tem

E de novo, como antigamente, o povo simples satisfazia-se com o pior, enquanto os senhores exigiam o melhor
Andrzej Szczpiorski, " Uma missa para a cidade de Arras"

Faça a coisa certa

Qualquer coisa para dar certo precisa do conceito correto, o método adequado e um ambiente favorável. O esforço para evitar que a pandemia de coronavírus se transforme numa tragédia social e em longa recessão não foge à regra. A externalidade mais negativa é a anunciada recessão da economia mundial, cujo impacto já está sendo sentindo no câmbio, com o dólar acima dos R$ 5, e a Bovespa despencando 14%, ontem. A pandemia de coronavírus já é uma realidade interna, pois a chamada “transmissão comunitária” começou em São Paulo e no Rio de Janeiro.

O crescimento da epidemia é exponencial: no balanço de ontem, o Ministério da Saúde confirmou a existência de 234 casos, sendo 152 em São Paulo, o estado mais populoso, mais rico e mais aparelhado; no Rio, são 31. A idade média dos infectados é 40 anos. O cenário de “transmissão comunitária” ocorre quando não se sabe quem foi o transmissor da doença. O Ministério da Saúde está trabalhando com o conceito correto para enfrentar a doença, como a maioria dos governadores e prefeitos, que estão tomando medidas para aumentar o distanciamento social e assim “achatar” a curva da epidemia, ou seja, fazer com que a propagação ocorra de forma mais lenta e seja interrompida.


Essa é a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotada com base nos casos asiáticos, sobretudo da China e da Coreia do Sul. No primeiro exemplo, houve tudo, por isso mesmo, os estudos mostram situações muito diferenciadas e não somente o caso dramático de Wuhan; no segundo, uma epidemia com a menor taxa de letalidade: 0,6%. Na Europa, as autoridades relutaram em adotar a estratégia de distanciamento social, mas o caso da Itália e a propagação da doença nos demais países fizeram com que a ficha caísse. Ontem, o presidente da França, Emmanuel Macron, em pronunciamento dramático e exemplar, conclamou os franceses a lutarem contra o coronavírus como quem vai à guerra.

Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump corre atrás do prejuízo. Ontem, admitiu que ainda é impossível prever quanto tempo vai durar a crise do coronavírus e que os EUA podem caminhar para uma recessão por causa disso. O governo adotou novas recomendações para os próximos 15 dias, entre elas a de evitar qualquer tipo de reunião social com mais de 10 pessoas. Os governadores foram instruídos a fechar escolas em todas as áreas próximas a qualquer sinal de que uma comunidade tenha sido afetada por algum caso. Nesses locais, deverão ser fechados bares, restaurantes, praças de alimentação, academias e outros ambientes fechados onde haja reuniões de grupos. Trump pediu ainda que as pessoas estudem em casa, evitem viajar e comer fora.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro faz tudo ao contrário. Depois de cumprimentar mais de 200 apoiadores e endossar as manifestações realizadas no domingo passado, em entrevistas, chegou a dizer que, se contrair o coronavírus, ninguém teria nada a ver com isso, que as pessoas não podem ser impedidas de ir às ruas, e por aí vai. Manteve o foco nos seus interesses políticos mais imediatos. Bolsonaro trabalha com o conceito errado. Ao contrário do que disse, a sociedade inteira tem a ver com o que o presidente da República fala e faz, não apenas seus apoiadores de extrema direita mais fanáticos. Cabe a Bolsonaro liderar o esforço do governo para conter o acoronavírus.

Não é preciso entrar no mérito das razões subjetivas ou psicológicas que levam um presidente da República a tomar atitudes que não são pautadas pela racionalidade, o importante é identificar a razão da falta de foco na verdadeira solução dos problemas: Bolsonaro não acredita na ciência. Não há nenhuma questão nacional relevante na qual suas concepções ideológicas e religiosas não subordinem as evidências científicas. A situação somente não é mais grave porque o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, vem fazendo a coisa certa. Um alento, porém, foram as medidas anunciadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes: serão empregados R$ 147,3 bilhões em medidas emergenciais para socorrer setores da economia e grupos de cidadãos mais vulneráveis, além de evitar a alta do desemprego.

Coquetel que pressiona Bolsonaro inclui crise, panelaço e pedido de impeachment “na manga”

O primeiro pedido de impeachment de Jair Bolsonaro foi protocolado nesta terça-feira. De autoria do deputado distrital Leandro Grass (Rede-DF), o documento aponta suposto crime de responsabilidade do presidente ao apoiar e convocar as manifestações contra o Congresso no dia 15 de março em meio a uma pandemia de coronavírus, e ao afirmar que as eleições de 2018 foram foram fraudadas sem, no entanto, apresentar prova alguma, dentre outras acusações. Outro pedido semelhante de afastamento de Bolsonaro iria ser protocolado pelo deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), mas o parlamentar optou por adiar a entrega em função da crise provocada pela doença. Agora, ao menos em tese, o futuro do presidente está nas mãos de um de seus maiores rivais políticos: cabe ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), decidir sobre dar ou não andamento ao processo de afastamento do chefe do Executivo.

No entanto, a expectativa, por ora, é de que nenhum pedido de impeachment prospere, mas sim que sirva como mais um elemento “na manga” de Maia para pressionar Bolsonaro, num horizonte de uma crise sanitária e econômica sem precedentes recentes. O que mais ameaça o Planalto é o comportamento errático do presidente ante o desafio do coronavírus, variando discursos: ora fala para sua base radicalizada, ora para os agentes tradicionais de poder. Depois de minimizar diversas vezes a doença infecciosa e ficar fora de uma reunião de cúpula em Brasília com os demais poderes na segunda-feira, agora Bolsonaro diz que falará com a imprensa sobre o tema ao lado de ministros, nesta quarta-feira, e que se reunirá com os representantes do Judiciário e do Legislativo. O giro de 180 graus na conduta também envolve pedir ao Congresso a aprovação de um “estado de calamidade pública”, que significa afrouxar os limites de gastos do Governo fora dos parâmetros da Lei de Responsabilidade fiscal, uma iniciativa elogiada por Maia.

Seja como for, o clima em Brasília é de tensão ainda em alta. O pedido de impeachment protocolado pelo deputado tem o simbolismo de ser apresentado em um momento de pico das novas rusgas entre o presidente e os poderes Legislativo e Judiciário. Já há algumas semanas o principal alvo do mandatário tem sido o Congresso e seus líderes: Maia frequentemente está na mira de ataques por parte de Bolsonaro (e de sua milícia virtual). O estranhamento mais recente entre os dois ocorreu no domingo. O presidente rompeu o isolamento recomendado pelo Ministério da Saúde para quem teve contato com pessoas infectadas pelo coronavírus ao participar de um protesto em Brasília no domingo, cumprimentando simpatizantes e posando para fotos. Ao menos 13 pessoas que viajaram com ele para os Estados Unidos testaram positivo para o vírus. Frente à atitude irresponsável do presidente, Maia o acusou de ter praticado “atentado à saúde pública”.

A resposta foi rápida: o mandatário reagiu afirmando que estavam tentando “isolá-lo”. “Maia me chamou de irresponsável e fez um ataque frontal. Nunca tratei ele dessa maneira. É um jogo. Desgastar, desgastar, desgastar. Tem gente que está em campanha até hoje para 2022 dando pancada em mim o tempo todo”, disse. Bolsonaro foi além, e disparou: “Prezado Davi [Alcolumbre, presidente do Senado], prezado Rodrigo, saiam às ruas e vejam como são recebidos”. Por fim, ele questionou a moral de ambos ao criticar sua postura. “A luta é pelo poder (...) Que moral tem esses que falaram contra e estão me criticando em ter comparecido a um evento como esse daí?”.
Primeiro panelaço, mas considerável apoio popular

A expectativa é de que o pedido de impeachment não siga seu curso, mas pressione Bolsonaro. O presidente foi alvo de seu primeiro panelaço mais forte em São Paulo e em várias cidades nesta terça-feira —há outro previsto para esta quarta—, mas ainda mantém uma faixa de 30% de apoio popular. Dilma Rousseff, em comparação, tinha menos de 10% de apoio quando a crise que a derrubou começou a se aprofundar. “Na atual conjuntura me parece que não terá andamento. Mas é bom lembrar que os presidentes da Câmara guardam este tipo de pedido ‘embaixo do colchão’ para usar em momento apropriado. Vide Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara, hoje preso, responsável pela tramitação do impeachment de Dilma Rousseff]. Sem dúvida ter um pedido destes fortalece o Maia”, afirma João Feres, cientista político e coordenador do Observatório do Legislativo Brasileiro. Na atual conjuntura o professor acredita que Maia se arriscaria a uma “derrota fragorosa” caso desse seguimento ao pedido protocolado. Mas “uma vez que haja um clima propício na sociedade e condições políticas, o pedido pode andar”, afirma Feres. Ele destaca que não é difícil tipificar o apoio de Bolsonaro à convocação para o ato contra o Legislativo como crime de responsabilidade, fator necessário para a abertura de um processo de impeachment.

Os desencontros com o Legislativo podem não ser o suficiente —ainda— para fazer com que o pedido de impeachment prospere, mas isso não quer dizer que o Congresso não possa sangrar o presidente. “Do ponto de vista político, das reformas que o Governo pretende aprovar, esse tensionamento com Legislativo é um grande problema. A agenda do Paulo Guedes não avança sem o Congresso”, afirma Lucas de Aragão, sócio da consultoria Arko Advice. Ele destaca ainda que, tendo em vista as eleições municipais deste ano, já existe uma tendência para que ritmo dos trabalhos da Câmara e do Senado seja reduzido no segundo semestre. “Acho que o presidente está numa situação onde existem outras variáveis que o desgastam mais do que o pedido de impeachment, como por exemplo a crise do coronavírus e a recuperação econômica”.

Além dos embates frequentes com o Legislativo, a maneira contraditória como Bolsonaro está conduzindo a crise do coronavírus tem sido criticada abertamente por governadores e líderes políticos de quase todo o espectro partidário. O presidente vinha se esforçando para minimizar os riscos da doença, e já falou mais de uma vez que trata-se de uma “histeria”, por vezes “provocada pela mídia”. Nesta terça-feira ele disse até mesmo que pensa em fazer uma “festinha tradicional” para comemorar seu aniversário nos próximos dias, ao passo que o Ministério da Saúde tenta controlar a disseminação da doença com uma abordagem que segue protocolos da Organização Mundial da Saúde, desestimulando grandes aglomerações e contato físico. O desrespeito do presidente com relação ao isolamento proposto para controlar a doença foi a gota d'água para alguns de seus aliados políticos, como a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP). Ela defendeu, na tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, o afastamento do presidente.

Enquanto Bolsonaro apenas ensaia mudar de conduta e assumir a liderança dos esforços de combate à doença, deputados tentam ter algum protagonismo diante da crise provocada pelo coronavírus. Nesta terça-feira foram apresentados projetos para permitir o uso de verba do FGTS e dos fundos Eleitoral e Partidário para ações de emergência na área de saúde. Maia aproveitou para alfinetar as medidas tomadas por Bolsonaro para contornar a crise: “O Governo já deveria ter fechado as fronteiras, restringido os voos internacionais e a circulação de pessoas, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo”. De momento, Bolsonaro anunciou o fechamento parcial apenas com a Venezuela, no norte, longe de ser o ponto mais movimentado de contato terrestre com o exterior.