quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Brasil da Justiça


Criminologia

A cada ano, os pesticidas químicos matam pelo menos três milhões de camponeses.

A cada dia, os acidentes de trabalho matam pelo menos dez mil trabalhadores.

A cada minuto, a miséria mata pelo menos dez crianças.

Esses crimes não aparecem nos noticiários. São, como as guerras, atos normais de canibalismo.


Os criminosos andam soltos. As prisões não foram feitas para os que estripam multidões. A construção de prisões é o plano de habitação que os pobres merecem.

Há mais de dois séculos, se perguntava Thomas Paine: “Por que será que é tão raro que enforquem alguém que não seja pobre?”

Texas, século XXI: a última ceia delata a clientela do patíbulo. Ninguém pede lagosta ou filé mignon, embora esses pratos apareçam no menu de despedida. Os condenados preferem dizer adeus ao mundo comendo hambúrguer e batata frita, como de costume. 
Eduardo Galeano

Insulto supremo à miséria

A sessão sindical do Senado (aumento para os ministros do Supremo) foi ofensiva e assustadora. Insultou porque tripudiou sobre o drama dos 12,7 milhões de brasileiros que estão no olho da rua. Espantou porque a União está quebrada
Josias de Souza

Tubarões no formol

Para quem está perplexo com o título do artigo, explico: andei assistindo, pela terceira vez, a entrevista de Mario Vargas Llosa concedida ao programa Roda Viva em maio de 2013. Maio de 2013, um mês antes dos protestos que se alastraram pelo Brasil, os protestos que jamais receberam resposta adequada dos políticos. Como outros, vejo na falta de resposta dos partidos brasileiros, sobretudo dos maiores, o início dessa trajetória turbulenta que nos levou à escolha de Sofia de 2018. Por que os tubarões? Porque na entrevista para o Roda Viva, o grande escritor fala sobre a degradação das artes plásticas e utiliza como exemplo a obra de Damien Hirst, artista britânico famoso por várias obras esquisitas, inclusive a do tubarão dissecado, suas partes expostas dentro de imensos tanques de formol.

Dizia então Vargas Llosa que a política estava passando por imenso desprestígio no mundo, e apontava o quanto isso poderia ser perigoso. Falava o escritor sobre a política alijada da literatura, sintoma desse desprestígio, do sentimento de que a política passara a ser algo degradante para as pessoas, a ponto de ser banida das artes, da expressão cultural. O desaparecimento do espírito crítico das artes plásticas capturado pelo tubarão no formol de Hirst seria sinal de tempos sombrios. Enfatizava o autor que consequências atrozes viriam da ausência da cultura e das artes como instrumentos de fiscalização do poder político. “Podemos vir a ter sociedades aparentemente democráticas e livres, que na realidade serão sociedades de zumbis”. Até aí nem se havia falado das redes sociais.

“Na música, nas artes, estamos chegando a um ponto em que já não sabemos do que gostamos e do que não gostamos”, advertira Vargas Llosa. Na política, sua presciência arrepia. Na política brasileira, essa frase expressaria com precisão o caminho que nos levou à terrível polarização do segundo turno. Sem saber direito do que gostávamos ou não, deixamo-nos levar pelos anseios não de gente decente e inteligente na política, mas pela visão de corruptos e tontos.

Há tontos de todos os lados. Gente confusa que usa e abusa do termo fascismo. Gente confusa que vê risco de uma Revolução Comunista no Brasil. Gente nem tão confusa que vê no vácuo ambiente propício para uma escalada ao poder. Teve pouca repercussão na imprensa o manifesto “O Brasil para os Brasileiros”, o programa de governo elaborado pela bancada evangélica do Congresso. Muito bem redigido em várias partes, sobretudo nas propostas econômicas – sim, a bancada evangélica apresenta uma pauta econômica detalhadíssima – o documento é repleto de espantalhos quando se chega ao final. Lá estão os alertas sobre a doutrinação comunista a qual estariam sujeitos nossos jovens e crianças nas escolas.

Para quem não sabe, Vargas Llosa – que chegou a ser candidato a presidente no Peru – é político. Como político, é defensor do capitalismo, rechaça a ditadura venezuelana, tem horror ao chavismo-madurismo. Vargas Llosa é um liberal clássico, um liberal britânico. Há uma distância muito grande entre o liberalismo de raiz e o ideário libertário de botequim que tomou conta do debate brasileiro antes e depois das eleições.

O Brasil não está entrando nos trilhos do liberalismo. O liberalismo verdadeiro exige abertura e diversidade, se molda às necessidades contemporâneas como se moldou ao defender as respostas econômicas à Grande Depressão. Cede espaço aos direitos e às vozes de todos. O liberalismo verdadeiro não dita o que deve ou não fazer um professor em sala de aula, não se intromete nas escolhas individuais, reconhece a existência de desigualdades e prega a necessidade de reduzi-las da forma mais eficiente possível. No liberalismo verdadeiro cabe a social-democracia virtuosa, aquela que bem alinha o tamanho da rede de proteção social à prudência fiscal. No liberalismo verdadeiro não cabe a ultra-ortodoxia que reza pela primazia dos mercados sobre a sociedade. Essa ultra-ortodoxia asfixia as mesmas redes de proteção que o liberalismo verdadeiro reconhece como prementes. Ao asfixiá-las, alija da sociedade expressivos segmentos que carecem de representatividade política, tornando-os cidadãos de segunda classe. Não há nada mais antiliberal do que isso.

Não precisamos tirar os tubarões do formol, tampouco lá colocá-los. Precisamos estar atentos a eles para não transformarmos um País já degradado em algo irreconhecível.