Qualquer um que erre pouco e, portanto, colha sucessos em série corre o risco crescente de alguma hora cometer um erro muito grave. Costuma ser um subproduto da autossuficiência. Será o caso de Jair Bolsonaro se continuar colocando dificuldades no caminho da produção e distribuição em massa por aqui de alguma vacina eficaz contra o SARS-CoV-2.
Imagine o leitor ou leitora uma situação em que a vacinação já tenha começado em diversos lugares do planeta, mas esteja parada aqui devido a questiúnculas políticas.
Um que errava pouco e quando errou decidiu caprichar foi Donald Trump. Só olhar as pesquisas de março para cá. Se Joe Biden ganhar na terça 3, a maior parte da conta irá para o comportamento errático e politicamente primário do incumbente. Que deixou de bandeja para o adversário a defesa da saúde e do bem-estar coletivos.
Trump, a exemplo de Bolsonaro, apostou no ponto futuro. Alguma hora as pessoas passariam a ter mais medo da ruína do que do vírus. Não deixa de fazer sentido. Onde estava o risco maior para Trump? No meio do caminho tinha uma eleição, e era prudente saber como estaria a pandemia na hora de os eleitores saírem para a urna.
Bolsonaro leva algumas vantagens sobre o colega. Duas são as principais. Não enfrenta uma oposição unificada e o mandato dele só estará em jogo daqui a dois anos. Por enquanto, o preço que paga pela imagem de certo desdém diante da vida humana não compromete decisivamente sua musculatura político-eleitoral.
E é altamente provável que em 2022 a Covid-19 já esteja bem mais controlada.
“Se o presidente raciocinar bem, a judicialização da guerra da vacina talvez seja uma solução para ele”
Acontece que, ao contrário de Trump, o presidente brasileiro não tem uma base parlamentar sólida e coesa. Foi o que salvou o americano do impeachment. O risco para Bolsonaro caso mergulhe na impopularidade é bem maior. Os animais selvagens no ecossistema de Brasília têm um faro especialmente aguçado para sentir o cheiro de patos mancos.
Todas as pesquisas mostram que, quando existir uma vacina, a esmagadora maioria da população vai querer se vacinar. Há aqui e ali preferências sobre a nacionalidade do imunizante, mas, na hora do “vamos ver”, o cidadão e a cidadã comuns não ficarão indiferentes a um passaporte para a volta à normalidade no transporte, na escola, no trabalho, no lazer.
Bolsonaro tem mostrado desconforto sobre a possibilidade de a guerra da vacina acabar judicializada. Se raciocinar bem, talvez seja uma solução para o presidente. Ele fica por aí adulando o núcleo mais duro da sua base, enquanto outros resolvem o problema prático, que, se não for resolvido, vai causar grave dor de cabeça ao ocupante do Planalto.
Aconteceu assim com o auxílio emergencial. E, por falar nele, Bolsonaro já tem bons desafios para abrir 2021. O fim do auxílio. A necessidade declarada de cumprir draconianamente o teto de gastos. A sucessão nas presidências da Câmara e do Senado. O rescaldo de um resultado (até agora) não brilhante da eleição municipal. A possível derrota de Trump.
Uma crise com a vacina contra a Covid-19 será um tempero e tanto para essa salada já indigesta.
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
O jabutizeiro do SUS
A Prefeitura de Vitória (ES) tem uma das melhores redes de atendimento básico à saúde do país, resultado de sucessivas administrações, mas, sobretudo, do avanço tecnológico promovido pelo atual prefeito, Luciano Rezende (Cidadania), que encerra o seu segundo mandato. Com as inovações, foi possível ampliar o atendimento em 30%, sem contratação de médicos ou construção de novos postos de saúde. Qualquer cidadão atendido na rede, inclusive nos dois pronto atendimentos (PAs) da cidade, recebe um torpedo no celular para dar uma nota de 0 a 10 de avaliação do atendimento. A nota média, em setembro, mesmo na pandemia da covid-19, foi 9,11. O ovo de Colombo surgiu depois de uma viagem de avião, quando o prefeito recebeu uma mensagem pedindo uma nota de avaliação do serviço da companhia aérea.
A revolução tecnológica começou pelo Pronto Atendimento de São Pedro, antiga região de palafitas, erradicadas nas administrações de Vitor Buaiz (PT) e Paulo Hartung (MDB). Na administração do tucano Luiz Paulo Velozzo Lucas, da qual Rezende foi secretário de Saúde e de Educação, esses serviços foram ampliados. Mas, foi preciso muita inovação tecnológica para que a gestão da saúde fosse focada 100% na ponta do atendimento ao público. Quando os torpedos começaram a ser disparados, houve muitos questionamentos, porque tudo influencia a avaliação, e não apenas o atendimento médico propriamente dito. O PA de São Pedro, por exemplo, foi o mais mal avaliado. Esse resultado levou a que os diretores dos dois melhores postos de saúde da cidade fossem transferidos para lá, onde a população mais pobre da cidade é atendida na emergência, 24 horas, todos os dias, inclusive domingos e feriados. A média da avaliação dos usuários, em setembro passado, foi de 8,66. Mesmo com a pandemia, a menor nota de avaliação do PA de São Pedro foi 7,29, em março.
A revolução tecnológica começou pelo Pronto Atendimento de São Pedro, antiga região de palafitas, erradicadas nas administrações de Vitor Buaiz (PT) e Paulo Hartung (MDB). Na administração do tucano Luiz Paulo Velozzo Lucas, da qual Rezende foi secretário de Saúde e de Educação, esses serviços foram ampliados. Mas, foi preciso muita inovação tecnológica para que a gestão da saúde fosse focada 100% na ponta do atendimento ao público. Quando os torpedos começaram a ser disparados, houve muitos questionamentos, porque tudo influencia a avaliação, e não apenas o atendimento médico propriamente dito. O PA de São Pedro, por exemplo, foi o mais mal avaliado. Esse resultado levou a que os diretores dos dois melhores postos de saúde da cidade fossem transferidos para lá, onde a população mais pobre da cidade é atendida na emergência, 24 horas, todos os dias, inclusive domingos e feriados. A média da avaliação dos usuários, em setembro passado, foi de 8,66. Mesmo com a pandemia, a menor nota de avaliação do PA de São Pedro foi 7,29, em março.
A chave para o alto desempenho foi a sinergia entre as secretarias de Saúde e da Fazenda, que colocou o time da subsecretaria de Tecnologia de Informação para desenvolver soluções que melhorassem a gestão da Saúde, obrigada a fazer mais com menos, devido à queda de 25% da arrecadação da cidade, com o fim do Fundap (fundo de desenvolvimento extinto em 2002, que beneficiava o complexo exportador capixaba). Ao contrário de outros municípios, que estão na latitude dos poços da Bacia de Campos, Vitória se beneficia pouco dos royalties de petróleo destinados aos capixabas.
Para melhorar o atendimento à população, o acesso à informação, a organização e o controle das unidades de saúde, a Secretaria Municipal de Saúde (Semus) registra a fila de atendimento, a classificação de risco, os procedimentos da sala de medicação, com prescrição e checagem de forma eletrônica. Os sistemas informatizados permitem agilizar procedimentos administrativos, gerenciais, de atendimento e acesso à informação de pacientes. Além disso, o sistema gera o prontuário eletrônico com os dados do atendimento prestado ao paciente. Para que o atendimento seja mais rápido, basta o usuário apresentar um documento com foto e ele será encaminhado para a classificação de risco. Depois, aguarda o atendimento médico ou odontológico de acordo com a gravidade do caso. As consultas são automaticamente remarcadas em caso de não confirmação. O time de engenheiros e programadores da prefeitura, funcionários de carreira, acabou com as filas de atendimento e reduziu a 5% as faltas às consultas médicas, que representavam 30% do total.
Além da rede de postos de saúde e centros de referência, a prefeitura mantém atendimentos psicossocial para adultos e infantojuvenil, de prevenção e tratamento de toxicômanos, atenção a idosos, gestantes e pediatria. São oferecidos serviços de cardiologia, dermatologia, endocrinologia, gastroenterologia, neurologia, obstetrícia (alto risco), oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, proctologia, psiquiatria, reumatologia, urologia, homeopatia, acupuntura e pequenas cirurgias, além de tratamento odontológico (radiologia, endodontia, periodontia e prótese dentária), e de diagnóstico de câncer de boca. Tudo gratuito. Além de equipes de médicos de família, agentes comunitários de saúde e orientadores de exercícios físicos.
E quando é que os jabutis subiram na árvore? Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, por exemplo, que foram introduzidas em massa na rede pública de Vitória durante a crise sanitária, vieram para ficar, assim como outras inovações tecnológicas introduzidas por lá. Acontece que grandes empresas de tecnologia já estão operando na área médica, aqui no Brasil, como a Afya, que oferece ensino especializado e treinamento a distância em larga escala (Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Pará, Tocantins e Distrito Federal). Há grande interesse na gestão dos serviços do SUS. As soluções que a Prefeitura de Vitória oferece de graça às demais prefeituras do país, via Frente Nacional de Prefeitos, na ótica dos grupos de medicina privada, são um grande business inexplorado. Por isso, as unidades básicas de saúde inacabadas do governo federal são quatro mil jabutis. Falta descobrir quem armou o “jabutizeiro” do SUS, que é muito maior. Com certeza, não foi enchente, foi mão de gente.
Para melhorar o atendimento à população, o acesso à informação, a organização e o controle das unidades de saúde, a Secretaria Municipal de Saúde (Semus) registra a fila de atendimento, a classificação de risco, os procedimentos da sala de medicação, com prescrição e checagem de forma eletrônica. Os sistemas informatizados permitem agilizar procedimentos administrativos, gerenciais, de atendimento e acesso à informação de pacientes. Além disso, o sistema gera o prontuário eletrônico com os dados do atendimento prestado ao paciente. Para que o atendimento seja mais rápido, basta o usuário apresentar um documento com foto e ele será encaminhado para a classificação de risco. Depois, aguarda o atendimento médico ou odontológico de acordo com a gravidade do caso. As consultas são automaticamente remarcadas em caso de não confirmação. O time de engenheiros e programadores da prefeitura, funcionários de carreira, acabou com as filas de atendimento e reduziu a 5% as faltas às consultas médicas, que representavam 30% do total.
Além da rede de postos de saúde e centros de referência, a prefeitura mantém atendimentos psicossocial para adultos e infantojuvenil, de prevenção e tratamento de toxicômanos, atenção a idosos, gestantes e pediatria. São oferecidos serviços de cardiologia, dermatologia, endocrinologia, gastroenterologia, neurologia, obstetrícia (alto risco), oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, proctologia, psiquiatria, reumatologia, urologia, homeopatia, acupuntura e pequenas cirurgias, além de tratamento odontológico (radiologia, endodontia, periodontia e prótese dentária), e de diagnóstico de câncer de boca. Tudo gratuito. Além de equipes de médicos de família, agentes comunitários de saúde e orientadores de exercícios físicos.
E quando é que os jabutis subiram na árvore? Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, por exemplo, que foram introduzidas em massa na rede pública de Vitória durante a crise sanitária, vieram para ficar, assim como outras inovações tecnológicas introduzidas por lá. Acontece que grandes empresas de tecnologia já estão operando na área médica, aqui no Brasil, como a Afya, que oferece ensino especializado e treinamento a distância em larga escala (Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Pará, Tocantins e Distrito Federal). Há grande interesse na gestão dos serviços do SUS. As soluções que a Prefeitura de Vitória oferece de graça às demais prefeituras do país, via Frente Nacional de Prefeitos, na ótica dos grupos de medicina privada, são um grande business inexplorado. Por isso, as unidades básicas de saúde inacabadas do governo federal são quatro mil jabutis. Falta descobrir quem armou o “jabutizeiro” do SUS, que é muito maior. Com certeza, não foi enchente, foi mão de gente.
A falta que os mortos na pandemia farão também para a riqueza do Brasil
Os quase 160 mil mortos até agora pela covid-19 no Brasil eram filhos, pais, mães e avós. Mas também eram professores, médicos, enfermeiros, engenheiros, prestadores de serviços ou aposentados pensionistas, por exemplo - em outras palavras, pessoas que que contribuíam para o sustento de suas famílias e para movimentar a economia do país.
Um levantamento preliminar recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre, da FGV) traça hipóteses para esmiuçar justamente o quanto o Brasil perdeu — e deixou de ganhar — com as vidas que estão se esvaindo na pandemia.
As 63,2 mil pessoas entre 20 e 69 anos (ou seja, em idade produtiva) que haviam morrido de covid-19 até 6 de outubro tinham rendimentos mensais estimados em R$ 108,6 milhões. Por ano, elas geravam em renda estimados R$ 1,3 bilhão.
Soma-se a isso o quanto provavelmente ganhavam do Estado, em média, as 72,3 mil pessoas com mais de 70 anos que morreram até 6 de outubro. Considerando a aposentadoria média de R$ 1,8 mil, elas recebiam por mês, juntas, estimados R$ 138,3 milhões. Em um ano, isso equivale a R$ 1,7 bilhão.
Um levantamento preliminar recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre, da FGV) traça hipóteses para esmiuçar justamente o quanto o Brasil perdeu — e deixou de ganhar — com as vidas que estão se esvaindo na pandemia.
As 63,2 mil pessoas entre 20 e 69 anos (ou seja, em idade produtiva) que haviam morrido de covid-19 até 6 de outubro tinham rendimentos mensais estimados em R$ 108,6 milhões. Por ano, elas geravam em renda estimados R$ 1,3 bilhão.
Soma-se a isso o quanto provavelmente ganhavam do Estado, em média, as 72,3 mil pessoas com mais de 70 anos que morreram até 6 de outubro. Considerando a aposentadoria média de R$ 1,8 mil, elas recebiam por mês, juntas, estimados R$ 138,3 milhões. Em um ano, isso equivale a R$ 1,7 bilhão.
Os pesquisadores Claudio Considera e Marcel Balassiano fizeram as estimativas cruzando dados do Portal da Transparência do Registro Civil, que traz informações sobre as pessoas mortas na pandemia, com a Pesquisa Nacional Por Amostras de Domicílios Contínua (Pnad Contínua, de 2018, do IBGE), que traça um panorama de nível de educação e renda da população brasileira.
"Essa tragédia já alcança todos nós social ou individualmente. Esse é seu lado humano", escrevem os pesquisadores no estudo.
"Mas há outro lado: essas pessoas vitimadas tinham um certo conhecimento, certas habilidades adquiridas ao longo da vida, que utilizando e transmitindo para os colegas poderiam, por muito tempo ainda, contribuir para gerar renda para si, para eventuais dependentes e, portanto, para o país. Eles farão falta."
Considera e Balassiano estimaram, também, o quanto as pessoas em idade produtiva ainda poderiam, em teoria, gerar de renda para o país, levando-se em conta a expectativa de vida nacional.
Calcularam que as pessoas entre 20 e 69 anos poderiam ter tido a chance de gerar, juntas, mais R$ 36,1 bilhões ao longo de sua vida, caso elas tivessem sobrevivido à pandemia.
"O presidente fala que todo mundo vai morrer mais cedo ou mais tarde (em referência à fala, de Jair Bolsonaro, de que "a morte é o destino de todo mundo", ao comentar os mortos pela pandemia em mais de uma ocasião). Isso é uma besteira", afirma Claudio Considera à BBC News Brasil.
"Ele ignora um aspecto, que é essa perda de habilidades que de certa forma é irreparável. Para o país, cada morte é uma perda de capital e de capacidade de gerar renda. Se uma máquina deixa de produzir, você pode rapidamente colocar outra no lugar, ela não tem que aprender nada. Uma vida não tem substituição imediata, e talvez não tenha mesmo (nunca)."
Esse conhecimento e essas habilidades intangíveis que as pessoas acumulam ao longo de sua vida profissional são chamados por economistas de capital humano.
E uma de suas principais variáveis é a educação, tanto a formal (anos de estudo) quanto a prática (ou seja, a experiência adquirida durante o trabalho), que impactam enormemente a capacidade produtiva — por isso que o Brasil, com seu histórico de problemas na educação, é considerado globalmente como um país de nível mediano em acumulação de capital humano.
E isso nos prejudica tanto no âmbito individual quanto nacional.
"O capital humano permite às pessoas ter ciência de seu potencial como membros produtivos da sociedade", afirma o Banco Mundial, instituição que mede anualmente o capital humano médio dos países.
"Mais capital humano está associado a renda mais alta às pessoas, mais ganhos para os países e uma coesão mais forte da sociedade. É uma força central no crescimento sustentável e na redução da pobreza."
Para os pesquisadores do Ibre, o mesmo raciocínio da perda de capital humano decorrente da pandemia poderia ser aplicado (e calculado) para outras mortes potencialmente evitáveis, resultado de outras tragédias brasileiras — como os altíssimos índices de homicídios e as mortes decorrentes de acidentes de trânsito do país.
Só no ano passado, o Brasil teve 47.773 mortes violentas intencionais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado neste mês de outubro.
As mortes no trânsito, embora em queda, foram 30.371 no ano passado.
Esses dois números, juntos, equivalem a quase um Maracanã lotado de pessoas mortas a cada ano.
Em 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou que os homicídios de jovens custava ao Brasil R$ 150 bilhões por ano.
"Cada vida é única, e óbvio que isso é muito mais importante do que a questão econômica", afirma o pesquisador Marcel Balassiano à BBC News Brasil.
"(Mas) todas as tragédias que ocorrem sempre têm uma perda de capital humano com impacto econômico no curto prazo e para o resto da vida — de o quanto essas pessoas poderiam produzir."
A mesma lógica vale para outros países que perderam capital humano, seja na pandemia ou em guerras e eventos trágicos.
Considera cita, por exemplo, os 6 milhões de mortos no Holocausto. "Pense em quantos eventuais prêmios Nobel estariam ali, quantas pessoas que poderiam ter contribuído para o bem da humanidade, ou na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais. São perdas também do ponto de vista econômico."
Considera e Balassiano fazem a ressalva de que, na atual crise econômica do Brasil, muitas das vítimas fatais do coronavírus talvez estivessem entre os mais de 65 milhões de brasileiros que, segundo dados de 2019, já viviam em situação vulnerável no mercado de trabalho e possivelmente sofreriam precarização profissional ainda mais intensa por causa da pandemia. Muitos talvez estivessem desempregados.
Isso não muda, porém, o fato de que suas habilidades e conhecimentos foram precocemente perdidos.
Do ponto de vista dos aposentados — que, embora talvez não gerassem mais renda e dependessem do Estado para sustentar a si e a parentes —, os economistas apontam que "algumas das mortes (na pandemia) levarão a pagamento de pensão. (...) Do lado fiscal, se de um lado temos os aposentados que deixarão de pesar no INSS, do outro (haverá) mais pensões em alguns casos. Pesquisas futuras para quantificar esse efeito fiscal ficam como sugestões".
Ambos os pesquisadores ressaltam que seu levantamento é preliminar, com o objetivo de, mais do que estabelecer um cálculo definitivo sobre a perda de capital humano na pandemia, "provocar um debate e falar disso mais qualitativamente do que quantitativamente".
O problema, claro, é compartilhado pelo restante do mundo, em meio às disrupções socioeconômicas provocadas pelo coronavírus. Em relatório de setembro, o Banco Mundial afirmou que a pandemia "ameaça reverter muitos dos ganhos recentes" na melhoria do capital humano global.
Para voltar a promover o acúmulo de capital humano, o Banco sugere que os países não apenas deem apoio às comunidades mais vulneráveis, como voltem seus olhares à educação: desde investir em estímulos cognitivos para as crianças menores (na fase em que seu cérebro está no auge do desenvolvimento) até promover habilidades nas crianças mais velhas e adolescentes.
Isso tudo no cenário desafiador da volta às aulas presenciais, ainda sob a ameaça do contágio pelo coronavírus, que demanda conciliar os esforços da educação à distância com "recursos personalizados de ensino e aprendizagem, urgentemente necessários principalmente para compensar (as oportunidades de aprendizado) perdidas pelas crianças em situação de desvantagem".
E, mesmo antes da pandemia, a desigualdade social já impedia muitos jovens de atingirem seu pleno potencial de capital humano. Agora, o desafio é ainda maior, diz o relatório do Banco Mundial.
"No mundo, uma criança nascida pouco antes da chegada da covid-19 teria como expectativa, em média, alcançar apenas 56% de sua produtividade potencial como trabalhadora futura. (Porque) os abismos em capital humano continuam especialmente profundos em países de baixa renda e os que são afetados pela violência, conflitos armados e fragilidade institucional."
"Essa tragédia já alcança todos nós social ou individualmente. Esse é seu lado humano", escrevem os pesquisadores no estudo.
"Mas há outro lado: essas pessoas vitimadas tinham um certo conhecimento, certas habilidades adquiridas ao longo da vida, que utilizando e transmitindo para os colegas poderiam, por muito tempo ainda, contribuir para gerar renda para si, para eventuais dependentes e, portanto, para o país. Eles farão falta."
Considera e Balassiano estimaram, também, o quanto as pessoas em idade produtiva ainda poderiam, em teoria, gerar de renda para o país, levando-se em conta a expectativa de vida nacional.
Calcularam que as pessoas entre 20 e 69 anos poderiam ter tido a chance de gerar, juntas, mais R$ 36,1 bilhões ao longo de sua vida, caso elas tivessem sobrevivido à pandemia.
"O presidente fala que todo mundo vai morrer mais cedo ou mais tarde (em referência à fala, de Jair Bolsonaro, de que "a morte é o destino de todo mundo", ao comentar os mortos pela pandemia em mais de uma ocasião). Isso é uma besteira", afirma Claudio Considera à BBC News Brasil.
"Ele ignora um aspecto, que é essa perda de habilidades que de certa forma é irreparável. Para o país, cada morte é uma perda de capital e de capacidade de gerar renda. Se uma máquina deixa de produzir, você pode rapidamente colocar outra no lugar, ela não tem que aprender nada. Uma vida não tem substituição imediata, e talvez não tenha mesmo (nunca)."
Esse conhecimento e essas habilidades intangíveis que as pessoas acumulam ao longo de sua vida profissional são chamados por economistas de capital humano.
E uma de suas principais variáveis é a educação, tanto a formal (anos de estudo) quanto a prática (ou seja, a experiência adquirida durante o trabalho), que impactam enormemente a capacidade produtiva — por isso que o Brasil, com seu histórico de problemas na educação, é considerado globalmente como um país de nível mediano em acumulação de capital humano.
E isso nos prejudica tanto no âmbito individual quanto nacional.
"O capital humano permite às pessoas ter ciência de seu potencial como membros produtivos da sociedade", afirma o Banco Mundial, instituição que mede anualmente o capital humano médio dos países.
"Mais capital humano está associado a renda mais alta às pessoas, mais ganhos para os países e uma coesão mais forte da sociedade. É uma força central no crescimento sustentável e na redução da pobreza."
Para os pesquisadores do Ibre, o mesmo raciocínio da perda de capital humano decorrente da pandemia poderia ser aplicado (e calculado) para outras mortes potencialmente evitáveis, resultado de outras tragédias brasileiras — como os altíssimos índices de homicídios e as mortes decorrentes de acidentes de trânsito do país.
Só no ano passado, o Brasil teve 47.773 mortes violentas intencionais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado neste mês de outubro.
As mortes no trânsito, embora em queda, foram 30.371 no ano passado.
Esses dois números, juntos, equivalem a quase um Maracanã lotado de pessoas mortas a cada ano.
Em 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou que os homicídios de jovens custava ao Brasil R$ 150 bilhões por ano.
"Cada vida é única, e óbvio que isso é muito mais importante do que a questão econômica", afirma o pesquisador Marcel Balassiano à BBC News Brasil.
"(Mas) todas as tragédias que ocorrem sempre têm uma perda de capital humano com impacto econômico no curto prazo e para o resto da vida — de o quanto essas pessoas poderiam produzir."
A mesma lógica vale para outros países que perderam capital humano, seja na pandemia ou em guerras e eventos trágicos.
Considera cita, por exemplo, os 6 milhões de mortos no Holocausto. "Pense em quantos eventuais prêmios Nobel estariam ali, quantas pessoas que poderiam ter contribuído para o bem da humanidade, ou na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais. São perdas também do ponto de vista econômico."
Considera e Balassiano fazem a ressalva de que, na atual crise econômica do Brasil, muitas das vítimas fatais do coronavírus talvez estivessem entre os mais de 65 milhões de brasileiros que, segundo dados de 2019, já viviam em situação vulnerável no mercado de trabalho e possivelmente sofreriam precarização profissional ainda mais intensa por causa da pandemia. Muitos talvez estivessem desempregados.
Isso não muda, porém, o fato de que suas habilidades e conhecimentos foram precocemente perdidos.
Do ponto de vista dos aposentados — que, embora talvez não gerassem mais renda e dependessem do Estado para sustentar a si e a parentes —, os economistas apontam que "algumas das mortes (na pandemia) levarão a pagamento de pensão. (...) Do lado fiscal, se de um lado temos os aposentados que deixarão de pesar no INSS, do outro (haverá) mais pensões em alguns casos. Pesquisas futuras para quantificar esse efeito fiscal ficam como sugestões".
Ambos os pesquisadores ressaltam que seu levantamento é preliminar, com o objetivo de, mais do que estabelecer um cálculo definitivo sobre a perda de capital humano na pandemia, "provocar um debate e falar disso mais qualitativamente do que quantitativamente".
O problema, claro, é compartilhado pelo restante do mundo, em meio às disrupções socioeconômicas provocadas pelo coronavírus. Em relatório de setembro, o Banco Mundial afirmou que a pandemia "ameaça reverter muitos dos ganhos recentes" na melhoria do capital humano global.
Para voltar a promover o acúmulo de capital humano, o Banco sugere que os países não apenas deem apoio às comunidades mais vulneráveis, como voltem seus olhares à educação: desde investir em estímulos cognitivos para as crianças menores (na fase em que seu cérebro está no auge do desenvolvimento) até promover habilidades nas crianças mais velhas e adolescentes.
Isso tudo no cenário desafiador da volta às aulas presenciais, ainda sob a ameaça do contágio pelo coronavírus, que demanda conciliar os esforços da educação à distância com "recursos personalizados de ensino e aprendizagem, urgentemente necessários principalmente para compensar (as oportunidades de aprendizado) perdidas pelas crianças em situação de desvantagem".
E, mesmo antes da pandemia, a desigualdade social já impedia muitos jovens de atingirem seu pleno potencial de capital humano. Agora, o desafio é ainda maior, diz o relatório do Banco Mundial.
"No mundo, uma criança nascida pouco antes da chegada da covid-19 teria como expectativa, em média, alcançar apenas 56% de sua produtividade potencial como trabalhadora futura. (Porque) os abismos em capital humano continuam especialmente profundos em países de baixa renda e os que são afetados pela violência, conflitos armados e fragilidade institucional."
Novas batalhas de Itararé
O mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.
Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.
Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.
O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.
Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.
No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.
Ainda não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de tempo?
As vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.
O Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido, por esse caminho, a imunização de rebanho?
Se abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do mundo.
São grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a superfície.
É uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se reúnem em porões de pizzaria.
Com a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais. Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua tese.
O fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de ambos foi um acidente histórico, uma alerta.
Isto não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.
É possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden. Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas que o tornaram possível.
De certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.
Com Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina, enfraquecer a busca nacional por esse recurso.
Em A Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas.
Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.
Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.
O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.
Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.
No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.
Ainda não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de tempo?
As vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.
O Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido, por esse caminho, a imunização de rebanho?
Se abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do mundo.
São grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a superfície.
É uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se reúnem em porões de pizzaria.
Com a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais. Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua tese.
O fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de ambos foi um acidente histórico, uma alerta.
Isto não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.
É possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden. Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas que o tornaram possível.
De certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.
Com Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina, enfraquecer a busca nacional por esse recurso.
Em A Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas.
Os padrões do comportamento civilizado
Numa democracia saudável, a luta pelo poder, por mais acirrada que seja, não pode servir de pretexto para que se violentem os padrões básicos de comportamento civilizado. Em outras palavras, todos, candidatos e eleitores, devem respeitar esses limites ditados pela decência – que, ao fim e ao cabo, é requisito fundamental para o reconhecimento mútuo da legitimidade dos que disputam o poder.
Há algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que, sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por honradez, são tratados como fracos.
Quando Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem feito à democracia no País.
Como se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave de um adversário para tentar lhe tomar votos.
Ao contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria toda sorte de barbaridades.
Não faz muito tempo, a presidente Dilma Rousseff, de triste memória, reconheceu que ela e seus correligionários faziam o “diabo” em época de eleição. Tal admissão causou na ocasião uma compreensível repulsa por parte dos cidadãos de bem, já bastante agastados com as artimanhas tinhosas do lulopetismo, mas ao mesmo tempo foi útil para revelar até onde estavam dispostos a ir o sr. Lula da Silva e seus discípulos para se agarrar ao poder.
Rasgada a fantasia de campeão da ética, com a qual o lulopetismo enganou muitos incautos por décadas, ficou claro para todos que a política, conforme concebida pelo PT, não era mais uma disputa de ideias, mas guerra aberta em que o adversário devia ser aniquilado.
Nisso o PT encontrou em Jair Bolsonaro seu inimigo ideal. Desde os tempos de deputado do baixo clero, o hoje presidente se notabilizou por defender nada menos que a destruição – física, até – de seus oponentes. Bolsonaro elegeu-se presidente criando e explorando fake news em redes sociais para desmoralizar seus concorrentes, atualizando o conceito de “fazer o diabo” na campanha.
Uma vez na Presidência, Bolsonaro não perde seu tempo governando, coisa que, de resto, seria incapaz de fazer; concentra suas energias em sua campanha antecipada pela reeleição e, para esse fim, não se constrange em explorar a pandemia de covid-19 e seus cerca de 160 mil mortos para tentar ganhar votos. Estimula aglomerações, menospreza a vacina e incentiva os cidadãos a tomar remédio sem eficácia comprovada, tudo para se livrar do fardo de liderar o País neste momento tão difícil e para atribuir a terceiros – seus adversários políticos – a responsabilidade pela crise.
O sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou muitos outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia de campanha. Assim, uma verdadeira malta de arruaceiros políticos, a exemplo do mestre, investe na confusão e na truculência como ativo eleitoral.
Resta torcer para que a rejeição a candidatos apoiados tanto por Bolsonaro como por Lula, detectada em algumas pesquisas, se confirme, pois assim ficará claro que nem todos os eleitores se sentem confortáveis em viver numa sociedade desprovida de solidariedade e respeito ao próximo, que é a sociedade idealizada pelos liberticidas bolsonaristas e lulopetistas.
Há algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que, sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por honradez, são tratados como fracos.
Quando Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem feito à democracia no País.
Como se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave de um adversário para tentar lhe tomar votos.
Ao contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria toda sorte de barbaridades.
Não faz muito tempo, a presidente Dilma Rousseff, de triste memória, reconheceu que ela e seus correligionários faziam o “diabo” em época de eleição. Tal admissão causou na ocasião uma compreensível repulsa por parte dos cidadãos de bem, já bastante agastados com as artimanhas tinhosas do lulopetismo, mas ao mesmo tempo foi útil para revelar até onde estavam dispostos a ir o sr. Lula da Silva e seus discípulos para se agarrar ao poder.
Rasgada a fantasia de campeão da ética, com a qual o lulopetismo enganou muitos incautos por décadas, ficou claro para todos que a política, conforme concebida pelo PT, não era mais uma disputa de ideias, mas guerra aberta em que o adversário devia ser aniquilado.
Nisso o PT encontrou em Jair Bolsonaro seu inimigo ideal. Desde os tempos de deputado do baixo clero, o hoje presidente se notabilizou por defender nada menos que a destruição – física, até – de seus oponentes. Bolsonaro elegeu-se presidente criando e explorando fake news em redes sociais para desmoralizar seus concorrentes, atualizando o conceito de “fazer o diabo” na campanha.
Uma vez na Presidência, Bolsonaro não perde seu tempo governando, coisa que, de resto, seria incapaz de fazer; concentra suas energias em sua campanha antecipada pela reeleição e, para esse fim, não se constrange em explorar a pandemia de covid-19 e seus cerca de 160 mil mortos para tentar ganhar votos. Estimula aglomerações, menospreza a vacina e incentiva os cidadãos a tomar remédio sem eficácia comprovada, tudo para se livrar do fardo de liderar o País neste momento tão difícil e para atribuir a terceiros – seus adversários políticos – a responsabilidade pela crise.
O sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou muitos outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia de campanha. Assim, uma verdadeira malta de arruaceiros políticos, a exemplo do mestre, investe na confusão e na truculência como ativo eleitoral.
Resta torcer para que a rejeição a candidatos apoiados tanto por Bolsonaro como por Lula, detectada em algumas pesquisas, se confirme, pois assim ficará claro que nem todos os eleitores se sentem confortáveis em viver numa sociedade desprovida de solidariedade e respeito ao próximo, que é a sociedade idealizada pelos liberticidas bolsonaristas e lulopetistas.
O futuro sem Bolsonaro
Um dos pesadelos dos americanos é que, mesmo que Donald Trump seja derrotado na eleição de terça-feira e varrido de volta para a Idade Média, o trumpismo continue a existir nos EUA. Era uma inflamação que só esperava um furúnculo para estourar, e esse furúnculo foi Trump. Já o nosso pesadelo é que o mesmo possa acontecer aqui, quando Jair Bolsonaro for levado a responder por seus crimes contra as instituições, a democracia e a vida —que o bolsonarismo não dependa mais da existência do seu Führer.
Se pensarmos bem, ele já existia antes da candidatura de Bolsonaro à Presidência, da facada em Juiz de Fora e de sua vitória nas urnas. Claro que Lula foi decisivo para essa vitória, ao sabotar outras candidaturas para que Bolsonaro —“fácil de derrotar”— chegasse à final contra o PT. Lula subestimou a aversão ao lulismo, alimentada durante 13 anos pelos desmandos de seu partido. A prova dessa aversão é que, com toda a demência e bestialidade do governo Bolsonaro, o PT está à beira da extinção.
Um indício da sobrevivência do bolsonarismo sem Bolsonaro é que, para seus fanáticos, não importa que Bolsonaro minta, alie-se aos corruptos que fingia combater, proteja genocidas e incendiários ou troque o país por sua miserável reeleição —o que sobrar do país depois de seu primeiro mandato. O Exército, que ele desmoraliza aos olhos da nação, continua a apoiá-lo. Os empresários, cujos negócios são prejudicados pela imagem de pária do Brasil no exterior, não o abandonam. O Congresso, que ele já ameaçou fechar, fecha com ele. E, a depender dos juízes, os zeros não se sentarão no banco dos réus.
Tudo isso é bolsonarismo e, se tantas categorias se sujeitam a ser corrompidas por ele, é porque não é mais Bolsonaro que importa.
Bolsonaro, por incrível que pareça, às vezes nos dá saudade da ditadura. Imagine se, no futuro, o Brasil chegar a ter saudade dele.
Um indício da sobrevivência do bolsonarismo sem Bolsonaro é que, para seus fanáticos, não importa que Bolsonaro minta, alie-se aos corruptos que fingia combater, proteja genocidas e incendiários ou troque o país por sua miserável reeleição —o que sobrar do país depois de seu primeiro mandato. O Exército, que ele desmoraliza aos olhos da nação, continua a apoiá-lo. Os empresários, cujos negócios são prejudicados pela imagem de pária do Brasil no exterior, não o abandonam. O Congresso, que ele já ameaçou fechar, fecha com ele. E, a depender dos juízes, os zeros não se sentarão no banco dos réus.
Tudo isso é bolsonarismo e, se tantas categorias se sujeitam a ser corrompidas por ele, é porque não é mais Bolsonaro que importa.
Bolsonaro, por incrível que pareça, às vezes nos dá saudade da ditadura. Imagine se, no futuro, o Brasil chegar a ter saudade dele.
Quem adota nome debochado na eleição é inimigo do povo
Desde que uma lei federal de 1997 admitiu a possibilidade de que os candidatos alterem o próprio nome civil para adotar na urna um nome que diga ao eleitor quem são, o lado oculto de muitos políticos veio à luz. Por esse meio, fragilidades da composição do sistema político brasileiro também ficaram visíveis.
O voto é instrumento de representação política. Por meio dele, o eleitor e cidadão se faz presente na tomada de decisões sobre a ordem política. Representação quer dizer presença do ausente. Mas não quer dizer ausência do representado. Mesmo que meu candidato não seja eleito, eu estarei representado pelos eleitos. Como corpo político, são o corpo simbólico da nação, do qual faço parte.
No voto, há um pacto entre o povo e o poder. Por meio dele, delego à maioria formada na eleição minha vontade política de cidadão, e não estritamente ao candidato em que votei. Goste ou não dos eleitos.
Há uma certa resignação cívica do eleitor vencido, o que não significa abrir mão de sua militância cidadã contra as ideias e a conduta do vencedor, sobretudo se não tratar com respeito as ideias dos vencidos. É isso a civilização na política.
O que envolve reciprocidade. Os eleitos não representam a si mesmos, engano frequente que, quando cometido, atesta que as eleições são para muitos renúncia de quem vota à representação de sua vontade política, e o mandato acaba sendo exercido como usurpação e roubo dos direitos políticos do povo e da propriedade privada do eleito. Não adianta o eleitor ser cidadão se o eleito não o é, nem sabe sê-lo.
Quem adota na eleição nome de palhaço ou nome debochado e se comporta como tal no poder é inimigo da sociedade e do povo porque deprecia as altas funções sociais e políticas das instituições que o representam. Partidos que perfilham esses mascaramentos não são partidos.
Muitos brasileiros encaram as anomalias que há no uso do nome de urna como indicação de que somos um povo politicamente ignorante e bizarro. Só num certo e limitado sentido o somos porque no Brasil o Estado conspira todo o tempo contra a consciência propriamente política.
O uso de apelido como nome de urna, no entanto, tem entre nós raízes antropológicas e históricas. Uma primeira fonte antropológica dos apelidos brasileiros é a tradição indígena dos nomes secretos. O nome só é conhecido por quem o deu.
Um caso célebre é o da brasileira branca Helena Valero, do Amazonas, raptada quando adolescente, nos anos 1930, pelos índios ianomâmi. Na tribo, no rapto que durou 20 anos, casou duas vezes e teve quatro filhos. Só conseguiu escapar em 1956. Ficou sabendo o nome de seu primeiro marido quando ele morreu.
Uma segunda fonte é a tradição comunitária e familiar das populações rurais, de que todos somos herdeiros, em que as pessoas são designadas pelos vínculos de família e procriação. Mesmo já adultas, são designadas pelo parentesco, geralmente com a mãe: Tonho da Maria, Zeca [Jeca] da Nhá Florinda. O apelido sobrepõe ao nome formal a precedência de um nome relacional, comunitário e afetivo. O que é peculiar da organização das sociedades tradicionais.
Hoje, a atribuição mesmo dos apelidos que parecem depreciativos da pessoa apelidada, como alguns de conotação racial, é rito de incorporação simbólica da pessoa apelidada à comunidade de família ou à comunidade local, mesmo que seja para inferiorizá-la.
Se há pouco caso pelas instituições em muitos nomes de urna, a maioria parece ser de nomes decorrentes da profissão ou da ocupação da pessoa. Ao acaso, valho-me de Anápolis, Goiás, cidade culta e próspera. Estes são alguns dos nomes de urna destas eleições: Alessandra Campos da Funerária, Diego da Ortopedia, Beto do Gás, Zé do Fogão, Wilson do Gesso, Ary do IPTU.
Quase sempre profissões de valimento dos que a esses profissionais recorrem em momentos adversos. Resquício do clientelismo político brasileiro, da troca de favores. Propina ideológica sendo cobrada no pedido de voto. Sobretudo a função pública sendo utilizada não como serviço à sociedade, mas como favor privado.
Sem contar pastores e militares, como tais identificados, que esperam os votos dos que entendem que os políticos e a política precisam mudar de endereço: ou o templo ou o quartel ou a delegacia de polícia. Uma explícita negação do que é a política.
A Justiça e os partidos toleram essas anomalias que viciam e corroem o sistema político. Às vezes proíbem nomes como o de Paulo Bosta, de Bauru, vendedor de esterco, porque “é vulgar, irreverente e, sim, contrário aos bons costumes”. Esses nomes, no entanto, deveriam ser vetados porque ao desmoralizar os candidatos que os usam, desmoralizam a função a que concorrem, que é a que justifica o voto.
O voto é instrumento de representação política. Por meio dele, o eleitor e cidadão se faz presente na tomada de decisões sobre a ordem política. Representação quer dizer presença do ausente. Mas não quer dizer ausência do representado. Mesmo que meu candidato não seja eleito, eu estarei representado pelos eleitos. Como corpo político, são o corpo simbólico da nação, do qual faço parte.
No voto, há um pacto entre o povo e o poder. Por meio dele, delego à maioria formada na eleição minha vontade política de cidadão, e não estritamente ao candidato em que votei. Goste ou não dos eleitos.
Há uma certa resignação cívica do eleitor vencido, o que não significa abrir mão de sua militância cidadã contra as ideias e a conduta do vencedor, sobretudo se não tratar com respeito as ideias dos vencidos. É isso a civilização na política.
O que envolve reciprocidade. Os eleitos não representam a si mesmos, engano frequente que, quando cometido, atesta que as eleições são para muitos renúncia de quem vota à representação de sua vontade política, e o mandato acaba sendo exercido como usurpação e roubo dos direitos políticos do povo e da propriedade privada do eleito. Não adianta o eleitor ser cidadão se o eleito não o é, nem sabe sê-lo.
Quem adota na eleição nome de palhaço ou nome debochado e se comporta como tal no poder é inimigo da sociedade e do povo porque deprecia as altas funções sociais e políticas das instituições que o representam. Partidos que perfilham esses mascaramentos não são partidos.
Muitos brasileiros encaram as anomalias que há no uso do nome de urna como indicação de que somos um povo politicamente ignorante e bizarro. Só num certo e limitado sentido o somos porque no Brasil o Estado conspira todo o tempo contra a consciência propriamente política.
O uso de apelido como nome de urna, no entanto, tem entre nós raízes antropológicas e históricas. Uma primeira fonte antropológica dos apelidos brasileiros é a tradição indígena dos nomes secretos. O nome só é conhecido por quem o deu.
Um caso célebre é o da brasileira branca Helena Valero, do Amazonas, raptada quando adolescente, nos anos 1930, pelos índios ianomâmi. Na tribo, no rapto que durou 20 anos, casou duas vezes e teve quatro filhos. Só conseguiu escapar em 1956. Ficou sabendo o nome de seu primeiro marido quando ele morreu.
Uma segunda fonte é a tradição comunitária e familiar das populações rurais, de que todos somos herdeiros, em que as pessoas são designadas pelos vínculos de família e procriação. Mesmo já adultas, são designadas pelo parentesco, geralmente com a mãe: Tonho da Maria, Zeca [Jeca] da Nhá Florinda. O apelido sobrepõe ao nome formal a precedência de um nome relacional, comunitário e afetivo. O que é peculiar da organização das sociedades tradicionais.
Hoje, a atribuição mesmo dos apelidos que parecem depreciativos da pessoa apelidada, como alguns de conotação racial, é rito de incorporação simbólica da pessoa apelidada à comunidade de família ou à comunidade local, mesmo que seja para inferiorizá-la.
Se há pouco caso pelas instituições em muitos nomes de urna, a maioria parece ser de nomes decorrentes da profissão ou da ocupação da pessoa. Ao acaso, valho-me de Anápolis, Goiás, cidade culta e próspera. Estes são alguns dos nomes de urna destas eleições: Alessandra Campos da Funerária, Diego da Ortopedia, Beto do Gás, Zé do Fogão, Wilson do Gesso, Ary do IPTU.
Quase sempre profissões de valimento dos que a esses profissionais recorrem em momentos adversos. Resquício do clientelismo político brasileiro, da troca de favores. Propina ideológica sendo cobrada no pedido de voto. Sobretudo a função pública sendo utilizada não como serviço à sociedade, mas como favor privado.
Sem contar pastores e militares, como tais identificados, que esperam os votos dos que entendem que os políticos e a política precisam mudar de endereço: ou o templo ou o quartel ou a delegacia de polícia. Uma explícita negação do que é a política.
A Justiça e os partidos toleram essas anomalias que viciam e corroem o sistema político. Às vezes proíbem nomes como o de Paulo Bosta, de Bauru, vendedor de esterco, porque “é vulgar, irreverente e, sim, contrário aos bons costumes”. Esses nomes, no entanto, deveriam ser vetados porque ao desmoralizar os candidatos que os usam, desmoralizam a função a que concorrem, que é a que justifica o voto.
Forças Armadas não se sentem representadas por Bolsonaro nem pela ala militar
O explosivo artigo do general Rêgo Barros contém o travo de amargura de quem foi escanteado do poder, porque talvez ele continuasse até hoje quietinho no Planalto, em “dolce far niente”, caso não tivesse sido exonerado. Diante dessa realidade, o texto realmente necessita de tradução simultânea, embora os termos estejam claros, numa redação perfeita e culta, não há reparos a fazer, pois esse retrato de Jair Bolsonaro é de um impressionismo irretocável.
Como todos sabem, o presidente é tudo aquilo que o general traçou, com algumas características adicionais que não foram mencionadas, como o fato de ser ignorante e mau educado. Aliás, aqui na trincheira da TI, eu não mudo a definição que fiz dele antes da eleição – é um completo idiota.
O mais importante a extrair do precioso e oportuno artigo do oficial-general é saber até que ponto o atual presidente conta com apoio das Forças Armadas.
Como todos sabem, o presidente é tudo aquilo que o general traçou, com algumas características adicionais que não foram mencionadas, como o fato de ser ignorante e mau educado. Aliás, aqui na trincheira da TI, eu não mudo a definição que fiz dele antes da eleição – é um completo idiota.
O mais importante a extrair do precioso e oportuno artigo do oficial-general é saber até que ponto o atual presidente conta com apoio das Forças Armadas.
Saudado de início como o salvador, que iria encher o governo de militares e dar jeito no país, não é de hoje que Bolsonaro vem desgostando os Altos Comandos das três armas, pois é isso que interessa, embora a grande massa dos militares esteja muito satisfeita com os aumentos dos salários, a privilegiada previdência e tudo o mais.
Mas o que importa é a visão dos comandantes, aqueles que realmente se preocupam com os interesses nacionais e não estão à disposição no mercado, para serem comprados por 30 dinheiros, “isso non ecziste”, diria padre Quevedo. O capitão Bolsonaro pode até ter conquistado o apoio da patuleia militar, porém jamais conseguiria cooptar o apoio do oficialato.
Fazendo jus a seu apelido na caserna, Bolsonaro estava usando sua ignorância cavalar para sonhar que os chefes militares o acompanhariam num golpe de estado, a pretexto de estar sendo “boicotado” pelo Supremo e pelo Congresso.
A audácia foi tamanha que sua trupe organizou, convocou e realizou um ato pró-golpe diante do Forte Apache, com a entusiástica participação do próprio Bolsonaro, que discursou em cima de uma caminhonete, maculando aquele território venerado pelos militares e emporcalhando a imagem das Forças Armadas.
De lá para cá, o apoio do Alto Comando das Forças Armadas ao governo passou a ser apenas constitucional. Os oficiais-generais das três armas limitam-se a cumprir a legislação, não há mais o menor vestígio de cobertura político-militar.
Em resumo, os problemas são dos civis, pois Bolsonaro e os ministros da ala militar exercem funções governamentais que pouco têm a ver com as Forças Armadas. Os militares continuarão nos quartéis ou dando apoio na questão da Amazônia, na construção de pistas de pouso, na abertura de estradas e em outras obras que lhes sejam solicitadas.
Mas o que importa é a visão dos comandantes, aqueles que realmente se preocupam com os interesses nacionais e não estão à disposição no mercado, para serem comprados por 30 dinheiros, “isso non ecziste”, diria padre Quevedo. O capitão Bolsonaro pode até ter conquistado o apoio da patuleia militar, porém jamais conseguiria cooptar o apoio do oficialato.
Fazendo jus a seu apelido na caserna, Bolsonaro estava usando sua ignorância cavalar para sonhar que os chefes militares o acompanhariam num golpe de estado, a pretexto de estar sendo “boicotado” pelo Supremo e pelo Congresso.
A audácia foi tamanha que sua trupe organizou, convocou e realizou um ato pró-golpe diante do Forte Apache, com a entusiástica participação do próprio Bolsonaro, que discursou em cima de uma caminhonete, maculando aquele território venerado pelos militares e emporcalhando a imagem das Forças Armadas.
De lá para cá, o apoio do Alto Comando das Forças Armadas ao governo passou a ser apenas constitucional. Os oficiais-generais das três armas limitam-se a cumprir a legislação, não há mais o menor vestígio de cobertura político-militar.
Em resumo, os problemas são dos civis, pois Bolsonaro e os ministros da ala militar exercem funções governamentais que pouco têm a ver com as Forças Armadas. Os militares continuarão nos quartéis ou dando apoio na questão da Amazônia, na construção de pistas de pouso, na abertura de estradas e em outras obras que lhes sejam solicitadas.
O que a pandemia nos ensina sobre a luta por habitação social digna na América Latina
Após meses de confinamento, a América Latina está começando a sair às ruas aos poucos. Porém, para muitos, tem sido difícil ficar em casa, pois nem sempre sua vivenda é digna de ser chamada assim. Um ano antes da declaração desta pandemia, que revelou desigualdades sociais, o Banco Mundial alertou que duas em cada três famílias da região precisavam melhorar suas casas por não atenderem a padrões mínimos de bem-estar e segurança. Essas mudanças estão pendentes.
Algumas casas não têm água, esgoto, ventilação, transporte, eletricidade ou acesso à Internet; um coquetel de deficiências que podem causar problemas ocupacionais e de saúde durante longos períodos de confinamento. “As cidades têm sido o epicentro desta pandemia e a habitação tem sido a primeira linha de defesa e proteção, que lança luz sobre um problema pendente de solução há décadas”, enfatiza Tatiana Gallego, chefe da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urban do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Além disso, essa população vive em periferias distantes do restante da população, em bairros sem acesso a serviços básicos, áreas verdes, escolas ou hospitais. Mais problemas.
Apesar de todas essas evidências que emergem novamente com o desejado, a luta para ter uma casa decente e resiliente parece estar congelada. Questionada sobre a situação atual, Catherine Paquette, pesquisadora e urbanista do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), especializado no México e no Chile, está muito preocupada: “O que está acontecendo é muito dramático para os pobres e os novos pobres que ainda não vemos [que vão cair nesta situação quando perderem os seus empregos nesta crise]. É muito cedo para saber o que a pandemia trará porque ainda estamos em uma fase de sobrevivência”. Mas agora que os latino-americanos estão começando a tirar suas cabeças da água e entrar em sua nova normalidade, que lições podem ser aprendidas com a pandemia?
A pandemia mais uma vez trouxe à tona um problema conhecido: o tamanho diminuto das habitações sociais e a falta de serviços e saneamento em seus bairros.
No Chile, a habitação social para famílias chegava a medir apenas 36 metros quadrados e em casos extremos não mais que 27. Hoje, a lei chilena estabelece o padrão mínimo de 55. A pesquisadora francesa explica que este país foi o primeiro a implementar uma política de produção em massa de habitação social nos anos 90 com padrões de qualidade muito baixos. A partir dos anos 2000, as coisas melhoraram.
Mesmo assim, os chilenos vivem pensando em sua casa. Os mais pobres, sobre como conseguir um decente. As condições em que vivem, principalmente em condomínios sociais herdados da fase de produção de moradias em massa, ainda deixam muito a desejar. Isso é confirmado por Marta Benedicto Cabello, psicóloga comunitária especializada em participação cidadã, intervenção social e gestão de projetos de desenvolvimento, com oito anos de experiência com comunidades vulneráveis em vários países da América Latina. Um dia ela entrou em uma casa em Alto Hospicio (Chile) cujo inquilino vivia há mais de um ano com fezes em sua cozinha. O cano estava quebrado e ninguém tinha vindo para consertar nada. “Quando passei pela porta, eles disseram ‘finalmente alguém está vindo para nos ajudar’", diz a especialista. Naquele lugar, ela nunca viu um planejamento do uso do solo ou políticas de desenvolvimento urbano. “Eles não têm áreas verdes, nem serviços, nem transporte. Atualmente é uma das cidades com pior qualidade de vida em todo o Chile”, afirma.
Mas o vírus fez com que algumas autoridades abrissem os olhos. O médico e Ministro da Saúde do Chile, Jaime José Mañalich, reconheceu durante o confinamento que não estava ciente da magnitude do problema habitacional, nem do nível de pobreza e superlotação em seu país. Isso foi noticiado por vários meios de comunicação chilenos no final de maio. No início do mês seguinte, o movimento social UKAMAU se levantou para pedir um plano de emergência nacional para a construção de moradias de interesse público e para acabar com o déficit habitacional e o desemprego.
Em outros países, como México, Brasil ou Colômbia, que também seguiram o exemplo do Chile nos anos 1990, a situação é ainda mais preocupante: os padrões, por enquanto, não mudam. Ainda há casas que não medem mais de 40 metros quadrados e onde não cabem móveis básicos. “Nessas condições, de fato, esses tempos de pandemia e confinamento são muito difíceis”, confirma Paquette.
Agilizar processos: o erro de tomar a casa como mercado
As dores de cabeça vão além das portas das casas. “A moradia não se expressa como um direito. Faz parte de um mercado e, além disso, não estão reunidas as condições de acesso a uma moradia social digna”, denuncia Benedicto.
O salário mínimo na América Latina aumentou desde 2000, segundo Antonio Prado, ex-secretário executivo adjunto da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), mas ainda não é muito adequado: entre cerca de 200 e 400 euros por mês dependendo do país, em janeiro de 2020. Com a crise, a região afunda em um contexto de retrocesso: a pandemia vai trazer a renda per capita de volta aos níveis de 2009. Sujeita a essa fragilidade econômica, como uma família pode ter acesso à habitação social? No Chile, por exemplo, você tem que pertencer à faixa mais pobre da população com uma renda inferior a 300 euros (o salário mínimo é de 388,7) e ter esse valor na conta poupança de sua casa, detalha Cristóbal Céspedes Díaz, Assistente social chilena especializada em estudos internacionais e políticas públicas para o desenvolvimento. “Antes de 2015, era preciso pedir um empréstimo ao banco para conseguir uma habitação social. Agora não. Felizmente”, diz ele antes de relatar a quantidade de papelada que atrapalha o processo. O acesso por crédito, no entanto, ainda vigora em muitos outros países do continente.
E aqui está outro problema: muitas pessoas perderam seus empregos por causa da pandemia, especialmente em famílias pobres, e não podem continuar a pagar por suas casas. Na América Latina, com ou sem coronavírus, o endividamento por hospedagem é muito alto e é possível que o apartamento, por sua má qualidade, não dure o tempo correspondente ao empréstimo hipotecário.
Céspedes explica que os “mais pobres” recebem um subsídio com o qual dificilmente podem ter acesso a uma casa sem serviços próximos e com materiais de péssima qualidade. Benedicto acrescenta: “Ainda há muitos desabrigados no Chile porque, se a economia se baseia na construção de cada vez mais, muitas outras questões são deixadas de lado, como melhorar e facilitar o acesso”. O objetivo dessas políticas, acredita a especialista, é manter as pessoas unidas ao Estado para promover o mercado, as privatizações e que os mais necessitados continuem a pedir subsídios, sem direito ao território, dando origem a mais favelas que ninguém presta atenção.
A pandemia destacou a necessidade de reforma para expandir a proteção social para os mais vulneráveis. Em linha com esta ideia, Gallego acrescenta que nos últimos 12 meses, países como o México ou o Brasil lançaram novos apoios à regularização e titulação, combinados com soluções (subsídios e microcréditos) para melhoria, crescimento e autoprodução assistida da habitação.
Uma questão muito importante para o chefe da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urbano do BID são “os efeitos perversos da superlotação estrutural”, que em condições de confinamento compulsório não só aumenta as chances de contágio dentro da família, mas também pode aumentar a violência. O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat) estima que um quarto da população urbana mundial ainda vive em favelas e a mesma porcentagem se aplica à América Latina. “Nesses bairros com habitação social existe bastante desconfiança e medo dos vizinhos”, descreve Paquette. “Lembro-me que em um trabalho de campo no Norte do México, uma família em um grupo de habitação social me disse que nunca saia de casa sozinha. Sempre havia gente porque era comum um dos vizinhos entrar para roubar”, testemunha. Esta falta de coesão entre as pessoas deve-se, entre outras coisas, ao facto de não terem sido eles que criaram o seu bairro e aí os instalaram, em casas individuais, longe de tudo e em particular das suas redes de solidariedade, essenciais para a vida cotidiana.
Porém, após esses meses de crise, as pessoas começaram a se conhecer, se apoiar e se organizar. “Agora é importante ver como podemos preservar essas formas de organização de bairro para o futuro. É muito valioso e deve ser fortalecido”, propõe o pesquisador francês. Benedicto e Céspedes também gostariam que fosse mais longe. Para eles, os movimentos sociais não são tão exigentes como deveriam, dada a situação deplorável em que se encontram alguns cidadãos. “É verdade que muito se conseguiu com os movimentos no Chile, mas em Arica, por exemplo, não vi nada, não há ajuda e a situação em muitos lugares continua desastrosa e não está progredindo”, lamenta a mulher. Em busca de soluções, Gallego reconhece que a interação social precisa reativar seus espaços públicos graças a métodos inovadores, como o chamado do BID Volver a la calle.
Por outro lado, os Governos locais, não estando envolvidos na produção em massa de programas de habitação de interesse social, podem recusar-se a assumir a gestão dos bairros depois de construídos por falta de recursos. Para resolver estes percalços, como muitos especialistas, Paquette é mais favorável ao Governo apoiando a produção social do habitat, ou seja, os locais construam e melhorem as suas casas com apoio técnico; que, além disso, irá promover a coesão social.
A lista de benfeitorias necessárias é longa, mas um dos maiores desafios para Gallego e Paquette é a reabilitação urbana, ou seja, a reforma de casas existentes, antes de se dedicarem à construção de novas. “A política habitacional foca no segundo objetivo e pouco no primeiro porque não gera mais economia e não beneficia os incorporadores”, explica a urbanista francesa. E conclui: “Gostaria que o retorno ao ‘novo normal’ pudesse gerar uma mudança de paradigma na matéria. A menos que os governos mais uma vez optem por contar com a produção maciça de moradias para reativar a economia... O risco é muito real”.
Gallego reconhece o perigo existente de uma suburbanização “ineficiente e expansiva”, mas é mais esperançoso: “A recente pandemia nos permitiu fazer uma reflexão profunda sobre os desafios apresentados pelo atual modelo de desenvolvimento urbano e habitacional e sobre as oportunidades que pode ser aberta em resposta a mudanças no comportamento da população”. Do seu ponto de vista, a pandemia revelou novas possibilidades para reavaliar sistemas de planejamento e ordenamento do território mais equitativos e adaptados.
A especialista se propõe a estabelecer um padrão de múltiplas centralidades, tendo o bairro como unidade humana e econômica. Este modelo pode “melhorar a gestão dos mercados de terras e, portanto, a acessibilidade da moradia e os níveis de segregação socioespacial enfrentados pela região”, diz ele. Também está comprometida com a densificação inteligente que, ao contrário da superlotação, maximiza o uso da área e ao mesmo tempo responde aos aspectos geofísicos, climáticos e culturais adequados para a área.
A estimativa do déficit habitacional permite calibrar os objetivos das políticas de produção de habitação social. O UN-Habitat elaborou um estudo a esse respeito que mostrou a alta complexidade do tema. O BID estima o déficit em cerca de 38 milhões de unidades, das quais 17 milhões são novas casas que deveriam ser construídas e o restante, aquelas que deveriam ser melhoradas. Soma-se a isso as necessidades anuais geradas pela formação de novas moradias, que são de dois milhões por ano. “Mas todas as casas incluídas no déficit habitacional não são realmente casas a serem construídas [muitas devem ser melhoradas] e aqui está o problema”, diz Catherine Paquette.
Os números variam amplamente dependendo das fontes. Não existe um procedimento de medição único e cada país tem sua metodologia. Além disso, a estimativa do déficit quantitativo (casas necessárias atualmente) depende do que é considerado uma família. Geralmente, toma-se como referência a família nuclear, ou seja, pais e filhos. No entanto, muitas famílias são constituídas por mais membros que se apoiam mutuamente dentro dos lares, uma forma de vida muito comum na região e essencial para as famílias mais humildes. Mas essas pessoas extras também são introduzidas no cálculo do déficit quando, muitas vezes, isso não significa que não possam comprar uma casa. O problema, neste caso, não é a falta de moradia, mas a pobreza. “A questão do déficit, aparentemente muito técnica e objetiva, não é nada disso. É político e altamente subjetivo. Estimar é um desafio maior”, finaliza Paquette.
Algumas casas não têm água, esgoto, ventilação, transporte, eletricidade ou acesso à Internet; um coquetel de deficiências que podem causar problemas ocupacionais e de saúde durante longos períodos de confinamento. “As cidades têm sido o epicentro desta pandemia e a habitação tem sido a primeira linha de defesa e proteção, que lança luz sobre um problema pendente de solução há décadas”, enfatiza Tatiana Gallego, chefe da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urban do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Além disso, essa população vive em periferias distantes do restante da população, em bairros sem acesso a serviços básicos, áreas verdes, escolas ou hospitais. Mais problemas.
Moradia vandalizada em conjunto habitacional nos arredores de Tijuana (México) |
Apesar de todas essas evidências que emergem novamente com o desejado, a luta para ter uma casa decente e resiliente parece estar congelada. Questionada sobre a situação atual, Catherine Paquette, pesquisadora e urbanista do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), especializado no México e no Chile, está muito preocupada: “O que está acontecendo é muito dramático para os pobres e os novos pobres que ainda não vemos [que vão cair nesta situação quando perderem os seus empregos nesta crise]. É muito cedo para saber o que a pandemia trará porque ainda estamos em uma fase de sobrevivência”. Mas agora que os latino-americanos estão começando a tirar suas cabeças da água e entrar em sua nova normalidade, que lições podem ser aprendidas com a pandemia?
A pandemia mais uma vez trouxe à tona um problema conhecido: o tamanho diminuto das habitações sociais e a falta de serviços e saneamento em seus bairros.
No Chile, a habitação social para famílias chegava a medir apenas 36 metros quadrados e em casos extremos não mais que 27. Hoje, a lei chilena estabelece o padrão mínimo de 55. A pesquisadora francesa explica que este país foi o primeiro a implementar uma política de produção em massa de habitação social nos anos 90 com padrões de qualidade muito baixos. A partir dos anos 2000, as coisas melhoraram.
Mesmo assim, os chilenos vivem pensando em sua casa. Os mais pobres, sobre como conseguir um decente. As condições em que vivem, principalmente em condomínios sociais herdados da fase de produção de moradias em massa, ainda deixam muito a desejar. Isso é confirmado por Marta Benedicto Cabello, psicóloga comunitária especializada em participação cidadã, intervenção social e gestão de projetos de desenvolvimento, com oito anos de experiência com comunidades vulneráveis em vários países da América Latina. Um dia ela entrou em uma casa em Alto Hospicio (Chile) cujo inquilino vivia há mais de um ano com fezes em sua cozinha. O cano estava quebrado e ninguém tinha vindo para consertar nada. “Quando passei pela porta, eles disseram ‘finalmente alguém está vindo para nos ajudar’", diz a especialista. Naquele lugar, ela nunca viu um planejamento do uso do solo ou políticas de desenvolvimento urbano. “Eles não têm áreas verdes, nem serviços, nem transporte. Atualmente é uma das cidades com pior qualidade de vida em todo o Chile”, afirma.
Mas o vírus fez com que algumas autoridades abrissem os olhos. O médico e Ministro da Saúde do Chile, Jaime José Mañalich, reconheceu durante o confinamento que não estava ciente da magnitude do problema habitacional, nem do nível de pobreza e superlotação em seu país. Isso foi noticiado por vários meios de comunicação chilenos no final de maio. No início do mês seguinte, o movimento social UKAMAU se levantou para pedir um plano de emergência nacional para a construção de moradias de interesse público e para acabar com o déficit habitacional e o desemprego.
Em outros países, como México, Brasil ou Colômbia, que também seguiram o exemplo do Chile nos anos 1990, a situação é ainda mais preocupante: os padrões, por enquanto, não mudam. Ainda há casas que não medem mais de 40 metros quadrados e onde não cabem móveis básicos. “Nessas condições, de fato, esses tempos de pandemia e confinamento são muito difíceis”, confirma Paquette.
Agilizar processos: o erro de tomar a casa como mercado
As dores de cabeça vão além das portas das casas. “A moradia não se expressa como um direito. Faz parte de um mercado e, além disso, não estão reunidas as condições de acesso a uma moradia social digna”, denuncia Benedicto.
O salário mínimo na América Latina aumentou desde 2000, segundo Antonio Prado, ex-secretário executivo adjunto da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), mas ainda não é muito adequado: entre cerca de 200 e 400 euros por mês dependendo do país, em janeiro de 2020. Com a crise, a região afunda em um contexto de retrocesso: a pandemia vai trazer a renda per capita de volta aos níveis de 2009. Sujeita a essa fragilidade econômica, como uma família pode ter acesso à habitação social? No Chile, por exemplo, você tem que pertencer à faixa mais pobre da população com uma renda inferior a 300 euros (o salário mínimo é de 388,7) e ter esse valor na conta poupança de sua casa, detalha Cristóbal Céspedes Díaz, Assistente social chilena especializada em estudos internacionais e políticas públicas para o desenvolvimento. “Antes de 2015, era preciso pedir um empréstimo ao banco para conseguir uma habitação social. Agora não. Felizmente”, diz ele antes de relatar a quantidade de papelada que atrapalha o processo. O acesso por crédito, no entanto, ainda vigora em muitos outros países do continente.
E aqui está outro problema: muitas pessoas perderam seus empregos por causa da pandemia, especialmente em famílias pobres, e não podem continuar a pagar por suas casas. Na América Latina, com ou sem coronavírus, o endividamento por hospedagem é muito alto e é possível que o apartamento, por sua má qualidade, não dure o tempo correspondente ao empréstimo hipotecário.
Céspedes explica que os “mais pobres” recebem um subsídio com o qual dificilmente podem ter acesso a uma casa sem serviços próximos e com materiais de péssima qualidade. Benedicto acrescenta: “Ainda há muitos desabrigados no Chile porque, se a economia se baseia na construção de cada vez mais, muitas outras questões são deixadas de lado, como melhorar e facilitar o acesso”. O objetivo dessas políticas, acredita a especialista, é manter as pessoas unidas ao Estado para promover o mercado, as privatizações e que os mais necessitados continuem a pedir subsídios, sem direito ao território, dando origem a mais favelas que ninguém presta atenção.
A pandemia destacou a necessidade de reforma para expandir a proteção social para os mais vulneráveis. Em linha com esta ideia, Gallego acrescenta que nos últimos 12 meses, países como o México ou o Brasil lançaram novos apoios à regularização e titulação, combinados com soluções (subsídios e microcréditos) para melhoria, crescimento e autoprodução assistida da habitação.
Uma questão muito importante para o chefe da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urbano do BID são “os efeitos perversos da superlotação estrutural”, que em condições de confinamento compulsório não só aumenta as chances de contágio dentro da família, mas também pode aumentar a violência. O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat) estima que um quarto da população urbana mundial ainda vive em favelas e a mesma porcentagem se aplica à América Latina. “Nesses bairros com habitação social existe bastante desconfiança e medo dos vizinhos”, descreve Paquette. “Lembro-me que em um trabalho de campo no Norte do México, uma família em um grupo de habitação social me disse que nunca saia de casa sozinha. Sempre havia gente porque era comum um dos vizinhos entrar para roubar”, testemunha. Esta falta de coesão entre as pessoas deve-se, entre outras coisas, ao facto de não terem sido eles que criaram o seu bairro e aí os instalaram, em casas individuais, longe de tudo e em particular das suas redes de solidariedade, essenciais para a vida cotidiana.
Porém, após esses meses de crise, as pessoas começaram a se conhecer, se apoiar e se organizar. “Agora é importante ver como podemos preservar essas formas de organização de bairro para o futuro. É muito valioso e deve ser fortalecido”, propõe o pesquisador francês. Benedicto e Céspedes também gostariam que fosse mais longe. Para eles, os movimentos sociais não são tão exigentes como deveriam, dada a situação deplorável em que se encontram alguns cidadãos. “É verdade que muito se conseguiu com os movimentos no Chile, mas em Arica, por exemplo, não vi nada, não há ajuda e a situação em muitos lugares continua desastrosa e não está progredindo”, lamenta a mulher. Em busca de soluções, Gallego reconhece que a interação social precisa reativar seus espaços públicos graças a métodos inovadores, como o chamado do BID Volver a la calle.
Por outro lado, os Governos locais, não estando envolvidos na produção em massa de programas de habitação de interesse social, podem recusar-se a assumir a gestão dos bairros depois de construídos por falta de recursos. Para resolver estes percalços, como muitos especialistas, Paquette é mais favorável ao Governo apoiando a produção social do habitat, ou seja, os locais construam e melhorem as suas casas com apoio técnico; que, além disso, irá promover a coesão social.
A lista de benfeitorias necessárias é longa, mas um dos maiores desafios para Gallego e Paquette é a reabilitação urbana, ou seja, a reforma de casas existentes, antes de se dedicarem à construção de novas. “A política habitacional foca no segundo objetivo e pouco no primeiro porque não gera mais economia e não beneficia os incorporadores”, explica a urbanista francesa. E conclui: “Gostaria que o retorno ao ‘novo normal’ pudesse gerar uma mudança de paradigma na matéria. A menos que os governos mais uma vez optem por contar com a produção maciça de moradias para reativar a economia... O risco é muito real”.
Gallego reconhece o perigo existente de uma suburbanização “ineficiente e expansiva”, mas é mais esperançoso: “A recente pandemia nos permitiu fazer uma reflexão profunda sobre os desafios apresentados pelo atual modelo de desenvolvimento urbano e habitacional e sobre as oportunidades que pode ser aberta em resposta a mudanças no comportamento da população”. Do seu ponto de vista, a pandemia revelou novas possibilidades para reavaliar sistemas de planejamento e ordenamento do território mais equitativos e adaptados.
A especialista se propõe a estabelecer um padrão de múltiplas centralidades, tendo o bairro como unidade humana e econômica. Este modelo pode “melhorar a gestão dos mercados de terras e, portanto, a acessibilidade da moradia e os níveis de segregação socioespacial enfrentados pela região”, diz ele. Também está comprometida com a densificação inteligente que, ao contrário da superlotação, maximiza o uso da área e ao mesmo tempo responde aos aspectos geofísicos, climáticos e culturais adequados para a área.
A estimativa do déficit habitacional permite calibrar os objetivos das políticas de produção de habitação social. O UN-Habitat elaborou um estudo a esse respeito que mostrou a alta complexidade do tema. O BID estima o déficit em cerca de 38 milhões de unidades, das quais 17 milhões são novas casas que deveriam ser construídas e o restante, aquelas que deveriam ser melhoradas. Soma-se a isso as necessidades anuais geradas pela formação de novas moradias, que são de dois milhões por ano. “Mas todas as casas incluídas no déficit habitacional não são realmente casas a serem construídas [muitas devem ser melhoradas] e aqui está o problema”, diz Catherine Paquette.
Os números variam amplamente dependendo das fontes. Não existe um procedimento de medição único e cada país tem sua metodologia. Além disso, a estimativa do déficit quantitativo (casas necessárias atualmente) depende do que é considerado uma família. Geralmente, toma-se como referência a família nuclear, ou seja, pais e filhos. No entanto, muitas famílias são constituídas por mais membros que se apoiam mutuamente dentro dos lares, uma forma de vida muito comum na região e essencial para as famílias mais humildes. Mas essas pessoas extras também são introduzidas no cálculo do déficit quando, muitas vezes, isso não significa que não possam comprar uma casa. O problema, neste caso, não é a falta de moradia, mas a pobreza. “A questão do déficit, aparentemente muito técnica e objetiva, não é nada disso. É político e altamente subjetivo. Estimar é um desafio maior”, finaliza Paquette.
Os generais devem uma autocrítica
O general Rêgo Barros era um alegre propagandista do presidente Jair Bolsonaro. Agora se juntou à tropa dos desiludidos com o capitão.
Em artigo no “Correio Braziliense”, ele criticou um certo líder seduzido por “comentários babosos” e “demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. “Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste”, escreveu. O general não precisou citar nomes. Seu alvo era Bolsonaro, de quem foi porta-voz.
Rêgo Barros fracassou na tentativa de estabelecer alguma civilidade no trato do governo com a imprensa. Foi sabotado pelo próprio chefe, que o desautorizava diariamente na portaria do Alvorada. Demitido em agosto, ele reforçou o clube dos militares amargurados. O patrono da turma é o ex-ministro Santos Cruz, derrubado pela artilharia dos filhos do presidente.
Em seu artigo, Rêgo Barros traçou o destino dos militares que não se curvam ao capitão: “Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas”. O general também criticou aqueles que, pela sobrevivência, optam por uma “confortável mudez”. Só faltou explicar por que ele passou um ano e oito meses no pelotão dos mudos.
Os oficiais pendurados no governo não foram vítimas de sequestro. Alistaram-se voluntariamente no projeto de Bolsonaro, em busca de um atalho para voltarem ao poder. Alguns se julgavam capazes de tutelar o presidente extremista. Outros só pensavam em engordar os contracheques.
Hoje muitos generais querem subscrever as queixas de Rêgo Barros. Antes disso, deveriam fazer uma autocrítica. Eles sempre souberam quem era o capitão.
Em artigo no “Correio Braziliense”, ele criticou um certo líder seduzido por “comentários babosos” e “demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. “Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste”, escreveu. O general não precisou citar nomes. Seu alvo era Bolsonaro, de quem foi porta-voz.
Rêgo Barros fracassou na tentativa de estabelecer alguma civilidade no trato do governo com a imprensa. Foi sabotado pelo próprio chefe, que o desautorizava diariamente na portaria do Alvorada. Demitido em agosto, ele reforçou o clube dos militares amargurados. O patrono da turma é o ex-ministro Santos Cruz, derrubado pela artilharia dos filhos do presidente.
Varrido do Exército por indisciplina, Bolsonaro parece ter prazer em humilhar oficiais superiores. Na semana passada, ele expôs o general Eduardo Pazuello a uma desmoralização pública. Depois permitiu que um ministro civil chamasse o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e “Banana de Pijama”.
Em seu artigo, Rêgo Barros traçou o destino dos militares que não se curvam ao capitão: “Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas”. O general também criticou aqueles que, pela sobrevivência, optam por uma “confortável mudez”. Só faltou explicar por que ele passou um ano e oito meses no pelotão dos mudos.
Além de silenciar diante de abusos, o ex-porta-voz protagonizou momentos de bajulação explícita. “Em qual cidade nosso presidente chega e não é ovacionado?”, questionou certa vez, ao divulgar uma viagem do chefe.
Os oficiais pendurados no governo não foram vítimas de sequestro. Alistaram-se voluntariamente no projeto de Bolsonaro, em busca de um atalho para voltarem ao poder. Alguns se julgavam capazes de tutelar o presidente extremista. Outros só pensavam em engordar os contracheques.
Hoje muitos generais querem subscrever as queixas de Rêgo Barros. Antes disso, deveriam fazer uma autocrítica. Eles sempre souberam quem era o capitão.
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