segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A ecocidadania

O grito da floresta amazônica produziu três ecos ouvidos pelo mundo inteiro: a ecosofia, a ecoética e a ecocidadania.

A ecosofia vem a ser o conjunto de conhecimentos e reflexões multidisciplinares que dão suporte à sabedoria humana para viver em harmonia com todos os seres e contribuem para uma nova racionalidade, expressa por um cartesianismo atualizado: penso e sinto, logo existo e compartilho.

Nesta linhagem do pensamento, merecem destaque a visão libertária, beirando o anarcoambientalismo de Thoreau; o economicismo budista (Schumacher); a bioeconomia (Georgescu-Roegen); o ecodesenvolvimentismo (Ignacy Sachs); o ecologismo tripartite (Feliz Guattari); o desenvolvimentismo humanista (Edgar Morin); o holismo (Pierre Weil); o ecologismo profundo (Capra); a ecoespiritualidade (São Francisco de Assis); a ética do cuidado (Leonardo Boff); a hipótese Gaia (James Lovelock).

A ecoética incorpora dimensão nova à ética tradicional, de natureza intertemporal, que legitima o direito de todos os seres, no presente e no futuro, ao meio ambiente limpo, harmônico e sustentável. É da essência do desenvolvimento sustentável atender às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem suas necessidades.


A ecocidadania é uma das faces da cidadania global. O novo personagem é o ecocidadão. Trata-se do cidadão que, uma vez incluído nas vantagens e possibilidades do progresso, convive com uma grave contradição: de um lado, parece um super-homem pelo uso aparato tecnológico; de outra parte, pode se transformar em vítima do potencial destrutivo do mau uso da tecnologia e da degradação ambiental: apenas uma pulga, inteligente e frágil, diante da vastidão cósmica e da concreta ameaça à sobrevivência da espécie.

Nos direitos de quarta geração do ecocidadão, estão incluídos aqueles que ultrapassam o estado soberano e estão situados numa escala planetária a exemplo dos direitos fundamentais relativos à pessoa humana, à diversidade cultural e à sustentabilidade ambiental.

“A Amazônia, com sua floresta, é um bem da vida”, disse o poeta Tiago de Mello e, como tal, deve ser tratada pelo princípio universal da responsabilidade comum, porém diferenciadas, jamais, pela retórica do confronto verbalizada pelo Presidente da República.

Sobre a relação fraterna entre o homem e a floresta, Henry David Thoreau não somente praticou como deixou a seguinte lição: “Se um homem gasta metade de cada dia a passear pelas florestas arrisca-se a ser considerado um preguiçoso; mas se ele gasta o dia inteiro como especulador, devastando florestas e provocando a calvície precoce da terra, ele ganhará admiração dos seus concidadãos como pessoa ativa e empreendedora”.

Amazônia ganha aspecto de Mãe Joana's House

Existem muitos tipos de ingenuidade. Dois são mais constrangedores: a dos que creem em toda boa intenção e a dos que veem segundas intenções em tudo. O deputado Eduardo Bolsonaro revelou-se um ingênuo de mostruário. Conseguiu reunir numa mesma pessoa os dois piores tipos de ingenuidade.

Candidato a embaixador em Washington, o filho 03 do presidente liderou uma missão brasileira à Casa Branca. Avistou-se com Donald Trump. Na saída, disse que ele "aceitou nossa proposta de trabalhar conjuntamente para desenvolver de forma sustentável a Amazônia".

Com clarins implantados na traqueia, Eduardo apregoou o que julga ser uma boa nova: "Todos os líderes que tentarem subjugar a soberania nacional encontrarão problemas não só com o Brasil, mas também com os Estados Unidos". Foi como se a conversa no Salão Oval tivesse transformado a Amazônia num protetorado americano.



Simultaneamente, Eduardo esconjurou o socorro ambiental dos países do G7. Mimetizando o pai, demonizou o presidente francês Emmanoel Macron, porta-voz da oferta. "Não podemos aceitar, no Brasil, Macron falando e atentando contra nossa soberania nacional, depois querer fazer algum tipo de ajuda, porque não é uma ajuda que vem de bom coração. Isso é um desrespeito aos brasileiros, seria subjugar nossa brasilidade aceitar esse tipo de ajuda".

No Twitter, Jair Bolsonaro celebrou: "Brasil e Estados Unidos nunca estiveram tão alinhados". Quer dizer: para o filho 03 e seu pai, Trump é um amigo de bom coração que precisa ser cultivado. Quanto a Macron, o ideal é colocar um ódio amazônico entre o Brasil e a falsa generosidade do neo-colonizador francês.

Quem quiser entender o que se passa precisa analisar a conjuntura manuseando todo o leque de hipóteses —das piores às melhores.

Na pior das hipóteses, os Bolsonaro perseguem o sonho da submissão a Trump porque são capazes de tudo para transformar preservação da floresta num outro nome para exploração predatória de recursos naturais.

Na melhor das hipóteses, depois que o governo desprezou doações ambientais de R$ 283 milhões de Noruega e Alemanha, os Bolsonaro jogam pela janela algo como R$ 83 milhões do G7 não por maldade, mas porque são incapazes de todo.

Em qualquer das duas hipóteses, o interesse público fica ao relento. Como se sabe, países não têm amigos, possuem interesses. Num momento em que Washington mede forças com Pequim, interessa a Brasília manter equidistância da briga, extraindo benefícios comerciais dos dois lados.

Numa fase em que o Mercosul se esforça para tirar do papel o recém-celebrado acordo comercial com a União Europeia, convém ao interesse nacional deixar Macron falando sozinho para sua plateia de agricultores protecionistas. É hora de aprofundar o diálogo com gente como a premiê alemã Angela Merkel, cujo pragmatismo interessa muito ao agronegócio brasileiro.

Em vez de esgrimir uma suposta aliança com os Estados Unidos contra uma hipotética ameaça à soberania nacional, Bolsonaro deveria retirar a Amazônia das manchetes internacionais. Basta fazer o oposto do que vem realizando: restaurar o aparato fiscalizatório no setor ambiental, silenciar motosserras e apagar incêndios.

Ou o governo é soberano e restaura a ordem na Amazônia, ou terceiriza a soberania nacional à Casa Branca, consolidando uma floresta que está ao deus dará como uma espécie de Mãe Joana's House.

Paisagem brasileira


País caranguejo

Retrocesso na democracia já ocorreu. O risco é que piore
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central

Acordou tarde

Nova York ainda ardia nas cinzas do ataque terrorista do 11 de setembro de 2001 quando o presidente George W. Bush decretou a sua guerra ao terror. O primeiro flanco que abriu foi no Afeganistão, de onde os Estados Unidos não conseguem sair até hoje. Em 2003, Bush propôs aos aliados que também se juntassem a ele na malfadada invasão do Iraque. Só que a França disse “não” através de um chanceler que já tinha o sobrenome para ser vilipendiado (Dominique de Villepin), o aliado historicamente bissexto voltou a ser visto como traidor. Seguiu-se um episódio do qual os americanos preferem não se lembrar, por tolo.

Dois congressistas do Partido Republicano, um deles presidente da Comissão de Assuntos Administrativos da Casa, instruíram todas as cafeterias do Capitólio a rebatizarem seus cardápios. As populares french fries (batatas fritas) passaram a ser listadas como liberty fries, e o ato de patriotismo de ocasião teve inevitável tribo de seguidores. Donald Trump certamente teria aprovado. Jair Bolsonaro também. Detalhe: trocou-se o nome do prato, ninguém deixou de devorar batatinhas.

À época, a embaixada da França emitiu resposta cortante — “... Em momento tão grave não estamos focando na nomenclatura que americanos dão a batatas...” — e informou que o mundialmente popular prato é originário da Bélgica, não da França. Fim da história: numa calada manhã do verão de 2006, com o desastre no Iraque sem fim à vista, o novo presidente da mesma comissão parlamentar devolveu às frites a sua designação em inglês. Em surdina, para não chamar a atenção.


29 de agosto de 2019, Palácio do Planalto, cerimônia de lançamento do Em Frente, Brasil, programa de combate a crimes violentos. Ao assinar o documento do projeto piloto, o presidente do Brasil gostou de anunciar a demissão oficial da esferográfica francesa Bic para atos de governo, e de exibir uma Compactor como sua sucessora oficial. Talvez não soubesse que a Cia. de Canetas Compactor, com sede na Baixada Fluminense, tem origem alemã e sociedade com parceiros globais, mas ninguém é perfeito. Para estes tempos de guerra amazônica com o mundo, é até um alívio quando o presidente apenas troca de stylo à bille.

Tampouco ferem ou causam danos os arroubos vernaculares de Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil. Ele denuncia a esquerda por usar a questão ambiental como “aríete ecológico”(aríete = máquina de guerra com que se derrubavam as muralhas).

Mais arriscado é o mesmo Onyx garantir aos brasileiros que a suspensão de compras de couros do Brasil por parte de alguns dos principais importadores mundiais “não tem importância”. Venderemos alhures, assegura ele. Não é bem assim. Por trás dos cerca de R$ 10 bilhões que o país exporta anualmente em produtos de couro, valor que soa abstrato para quem passa batido por números, estão grifes bastante familiares para brasileiros. Muitos as conhecem por anúncios em revista, vários as cobiçam em vitrines, alguns poucos as possuem em algum armário de casa. Sem falar nas inúmeras falsificações de mochilas JanSport, adereços Kipling, botinas Timberland ou jaquetas The North Face.

Estas e outras 14 marcas internacionais pertencentes ao grupo americano VF Corporation decidiram aguardar mudanças concretas na governança ambiental do governo Bolsonaro para retomar as compras. A VFC nada tem de esquerda. Certamente, pretende continuar a crescer para além dos US$ 13,8 bilhões de lucro previstos para 2019 e não deve considerar o boicote decretado lesivo a seu negócio. Para suspendê-lo, aguarda garantias e atos do governo Bolsonaro de que o couro comprado não contribuiu para a degradação ambiental do Brasil.

Nada de novo, por sinal. Em 2013 a Asia Pulp&Paper, maior produtora de polpa e papel sediada em Jacarta e uma das maiores do mundo, teve de ceder a pressões externas para abandonar a prática de desmatamento da floresta natural indonésia, que alimentava a cadeia produtiva do grupo. A exigência fora feita por quase cem grandes clientes corporativos como a Disney, Levi Strauss e Mattel (fabricante das bonecas Barbie). A chacoalhada foi grande, o resultado final ainda inconstante, mas a mensagem foi inequívoca.

Vanessa Adachi, em reportagem desta semana no “Valor Econômico”, traça um interessantíssimo mapa múndi dos grandes negócios movidos a critérios de sustentabilidade. Um manifesto divulgado semanas atrás por 181 CEOs de empresas americanas de grosso calibre acena com o propósito de encerrar a era da supremacia dos acionistas e da necessidade de encarar a responsabilidade corporativa para além do lucro, para o bem-estar da sociedade como um todo. Paralelamente, chega a três mil o número de empresas de 64 países que compõem o chamado grupo B Corporations, de rigorosa certificação ambiental e social. Tem fila de espera. A preocupação com impactos socioambientais no universo dos fundos graúdos também só cresce.

É nesta paisagem cambiante que a moratória de 60 dias anunciada por Bolsonaro sobre queimadas no país não faz nexo. É pouco, é genérico, e proíbe o que já deveria estar proibido — as queimadas ilegais. Acordou tarde.

Usurpação do poder

O ex-presidente Michel Temer alertou, em entrevista ao jornal Valor, para a ocorrência cada vez mais habitual da quebra da ordem constitucional. “O que mais temos no Brasil é a violação de natureza institucional”, disse, referindo-se aos excessos de órgãos subordinados aos Três Poderes. A denúncia é de extrema gravidade, já que significa que, por vias ocultas, o poder estaria sendo exercido fora dos cânones institucionais. Em outras palavras, haveria um exercício não democrático do poder.

“Quando a Constituição diz que ‘todo poder emana do povo’ não é regra de palanque, é regra jurídica”, lembrou Michel Temer. Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, “em vez de haver um único poder no Estado, como no absolutismo (...), há três órgãos para exercer o poder. A partir deles é que há os órgãos inferiores. E esses órgãos inferiores não podem estar em busca de poder. Eles têm que acompanhar o que a estrutura do poder constitucional estabelece, por meio do Legislativo, Executivo e Judiciário. É neste sentido que digo que há equívocos institucionais muito acentuados”, afirmou o ex-presidente.


Eis o ponto central da questão e que tem sido motivo de muita confusão. Precisamente porque todo o poder emana do povo, no Estado Democrático de Direito, os órgãos subordinados aos Três Poderes não exercem poder e, portanto, não devem estar em busca de poder. O poder, por delegação do povo, é exercido pelas três instituições superiores – Legislativo, Executivo e Judiciário – na exata medida de suas competências constitucionais.

O Ministério Público, por exemplo, não exerce o poder. O que lhe cabe é a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Ou seja, ele é o guardião da ordem jurídica, mas não o artífice e tampouco o modulador dessa ordem. Assim, o Ministério Público é plenamente democrático no exercício de suas atribuições, respeitando de fato e de direito que todo o poder emana do povo, quando ele não busca poder para si mesmo. Um membro do Ministério Público sairia do traçado democrático se, no cumprimento de sua atividade profissional, almejasse algum tipo de influência política. O mesmo se pode dizer de todos os órgãos subordinados aos Três Poderes, como, por exemplo, os Tribunais de Contas e os órgãos públicos de fiscalização e controle.

No entanto, tem-se visto no Brasil não apenas a frequente busca de poder por órgãos que não detêm poder, como alertou o ex-presidente Michel Temer. O que é mais surpreendente é que, nessa tentativa de usurpar o poder, membros desses órgãos apelam ao princípio democrático ou à Constituição de 1988, como se a democracia significasse distribuição indistinta do poder a todos os órgãos públicos. Em alguns casos, chegam a alegar que, sem o exercício desse poder, não teriam condições de cumprir as atribuições que a Carta Magna lhes atribuiu.

Nos últimos anos, por exemplo, membros do Ministério Público afirmaram explicitamente que sua tarefa institucional de combater a corrupção incluía promover alterações no sistema político e no ordenamento jurídico. Além disso, toda tentativa voltada a promover uma atuação desses órgãos dentro dos cânones institucionais – isto é, dentro dos limites que a ordem democrática lhes conferiu – foi classificada como mordaça, censura ou diminuição da autonomia funcional. Tal reação pode ser vista, por exemplo, em relação ao projeto de lei que criminaliza o abuso de autoridade.

Diante dessas alegações que, sob a aparência de consciência democrática, buscam usurpar o exercício do poder, é preciso relembrar que a democracia não distribui indistintamente o poder aos órgãos estatais. Se assim fosse, o poder já não emanaria do povo, e sim do Estado. Por isso, a Constituição assegura que o poder seja exercido, de fato e de direito, por quem, de fato e de direito, representa o povo. Nesse sentido, é característico da democracia o cuidado – extremo respeito – com o Legislativo e suas prerrogativas. Os órgãos estatais não caminham bem quando, de alguma forma, buscam desqualificar o trabalho do Congresso perante a opinião pública. O respeito pelos Três Poderes é parte essencial da consciência democrática – e isso vale para todos, também para quem exerce temporariamente, seja porque foi aprovado em concurso, seja porque foi eleito, a função pública.

O fim que se aproxima

Amazonas: mito grego
menos antigo que os mitos da Amazônia.

Os que vivem no Cosmo há milênios
são perseguidos por mãos de ganância,
olhos ávidos: minério, fogo, serragem, fim.


Quem são vocês,
incendiários desde sempre,
ferozes construtores de ruínas?

Os que queimam, impunes, a morada ancestral,
projetam no céu mapas sombrios:
manchas da floresta calcinada,
cicatrizes de rios que não renascem.
atrás da humanidade amazônica?

Que triste pátria delida,
mais armada que amada:
traidora de riquezas e verdades.

Quando tudo for deserto,
o mundo ouvirá rugidos de fantasmas.
E todos vão escutar, numa agonia seca, o eco.

Não existirão mundos, novos ou velhos,
nem passado ou futuro.

No solo de cinzas:
o tempo-espaço vazio.
Milton Hatoum (Audio)

Pensamento do dia


Trump? Só Trump?

Depois de isolar o Brasil do mundo desenvolvido, com sua retórica virulenta e desprezo à preservação do meio ambiente e às comunidades indígenas, o presidente Jair Bolsonaro tenta dar a volta por cima criando um cerco à França, uma das mais sólidas democracias do Ocidente.

Já telefonou para os líderes dos EUA, Japão, Espanha e Alemanha e recebeu em Brasília o mediador do seu conflito com o mundo, o chileno Sebastián Piñera, mas, obviamente, sua maior investida e grande aposta é o ídolo da família, Donald Trump.

Sem apoio dos EUA o G-7 não decide e não faz nada. Logo, Trump é meio caminho andado para neutralizar Macron e, assim, Bolsonaro marcou um gol quando as portas da Casa Branca se abriram para encontro fora da agenda de Trump com o deputado Eduardo Bolsonaro, candidato a embaixador do Brasil em Washington, e o chanceler Ernesto Araújo.

O presidente americano é cabo eleitoral de Eduardo, depois de endossar o pedido de agrément de próprio punho. Ninguém confirma, nem desmente, mas é razoável supor que Bolsonaro aproveitou o telefonema para Trump, no pico das queimadas da Amazônia e da crise com o G-7, para pedir: “Ô, Trump, recebe o garoto aí! Ele tá precisando de uma força pra passar lá no Senado!”

A visita teve duplo objetivo. Dar uma forcinha para Eduardo, que encontra forte resistência da opinião pública e dos senadores para um salto tão absurdamente grande, e arrancar algum compromisso dos EUA em relação à Amazônia, para efeitos políticos internos e externos. Que compromisso? Dinheiro? Equipes? Equipamentos? Ou um chega pra lá público em Macron?

E a coisa não é assim tão simples, depois de Bolsonaro, o pai, ter praticamente rechaçado R$ 300 milhões da Alemanha e da Noruega no Fundo da Amazônia e feito exigências e insinuações para aceitar a “esmola” de US$ 20 milhões (mais de R$ 80 milhões) dos europeus.

“Macron promete ajuda de países ricos à Amazônia. Será que alguém ajuda alguém – a não ser uma pessoa pobre, né? – sem retorno? Quem é que está de olho na Amazônia? O que eles querem lá?”, provocou o presidente brasileiro. Será que Trump, e só Trump, ofereceria ajuda sem “retorno”? Será que só os europeus estão sempre de olho na Amazônia? Os EUA nunca? O que os americanos querem lá?

Duas curiosidades: o americano deu longa entrevista a jornalistas após o encontro com os brasileiros, mas não disse uma palavra sobre Eduardo, Jair, Brasil, Amazônia. Só pensava, e falava, sobre o furacão Dorian. E as fotos só saíram no dia seguinte.

Desse jeito, a seca vai passar, as queimadas vão apagar e nem o Brasil destina parte dos milhões do fundo da Petrobrás, nem os europeus mandam seus euros, nem Trump anuncia seus dólares para salvar as florestas, enquanto Bolsonaro mantém, firme, o discurso da soberania e a tese de que os europeus (só os europeus...) querem mesmo nos roubar a Amazônia.

As queimadas, aliás, começam a perder espaço para a economia, depois que o risco de recessão técnica foi superado pelo crescimento de 0,4% no último trimestre e a Pnad confirmou a tendência de recuperação de empregos. Agora é monitorar a mais nova crise da Argentina e desfazer os nós do Orçamento de 2020.

O dinheiro acabou, o setor público é o grande entrave para a recuperação econômica e só há uma saída: assim como está aprendendo a negociar com as grandes democracias, Bolsonaro vai ter de finalmente aprender a negociar com o Congresso, por onde passeou por 28 anos.

Ou revisão do teto de gastos, ou fim da “regra de ouro” ou crédito suplementar de R$ 367 bilhões. Senão, adeus investimentos e Bolsonaro vai ter de cortar salário de servidor. Como? Só Deus sabe. Atirar em Macron e fazer reverências a Trump não vão dar um jeito nisso.

A grande fraude

O populismo de direita é quase sempre uma fraude, porque essencialmente é uma maneira de desviar a atenção e ignorar as pessoas que estão sofrendo com a desigualdade. Coloca-se a culpa nos imigrantes, nos estrangeiros, nos criminosos, e os verdadeiros problemas não são enfrentados.
O populismo é um sintoma dessa doença [a desigualdade], e às vezes dá uma resposta ou outra, mas nunca a resposta final. É preciso respostas mais inteligentes e, acima de tudo, que a sociedade realmente acredite que esse é um problema a ser enfrentado.
Martin Wolf, comentarista-chefe de economia no Financial Times e doutor em economia pela London School of Economics

Gostaria de saber o que passa pela cabeça dos militares que assessoram Bolsonaro

Não adianta alegar que Jair Bolsonaro sempre foi assim, que já era esperado esse procedimento exótico adotado pelo presidente desde que assumiu o poder, em janeiro, e também não adianta dizer que ele jamais vai mudar. O fato concreto é que o ministro mais próximo responde pela Secretaria-Geral da Presidência, chama-se Jorge Antônio de Oliveira Francisco e na semana passada deu entrevista a Bela Megale, de O Globo, com declarações estranhíssimas.

“Muitos amigos falam: ‘Cara, como você trabalha com aquele maluco? Deve ser chato pra caramba’. Pelo contrário, a gente morre de rir o dia todo. Ontem, estava despachando com ele um assunto seríssimo. Uma pessoa entrou, e ele começou a dar risada, brincar…”, revelou o bem-humorado ministro.


Na verdade, Jorge de Oliveira tem bons motivos para “morrer de rir o dia todo”, pois sempre deu sorte na vida. Especialmente a partir de 1998, quando seu pai, que era capitão do Exército, tornou-se chefe de gabinete do então deputado Jair Bolsonaro, que passou a ajudar a carreira do filho do amigo.

Em 2003, o jovem Jorge de Oliveira concluiu o ensino médio no Colégio Militar de Brasília e entrou para a PM do Distrito Federal. Apadrinhado por Bolsonaro, desde então foi requisitado para trabalhar no Congresso Nacional, Ou seja, jamais prestou serviços nas ruas e nunca trocou tiros com criminosos.

Nessa boa vida, formou-se em Direito e passou para a reserva em 2013, na patente de major e com apenas 20 anos de serviços. Protegido da família, desde sempre recebeu dupla remuneração – na Câmara e na PM – e em 2015 Oliveira já era chefe de gabinete do filho 03, deputado Eduardo Bolsonaro.

Apesar da inexistente experiência como advogado, em janeiro deste ano o presidente nomeou o amigo para a Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil. Foi um fracasso. No caso da posse de armas, quando era necessário mudar a lei com uma medida provisória, ele apresentou um decreto. No caso da imposto sindical obrigatório, bastava um decreto, mas ele redigiu uma medida provisória, que perdeu a validade sem ir à votação. Qualquer outro teria sido demitido, mas Jorge de Oliveira é um homem de sorte.

A grande surpresa ocorreu em 21 de junho, quando Bolsonaro decidiu nomeá-lo para a Secretaria-Geral da Presidência, no lugar do general Floriano Peixoto Neto. O mais incrível é que, na primeira entrevista, o major se intitulou “jurista” e anunciou que continuaria a acumular a subchefia de Assuntos Jurídicos do Planalto. Portanto, além de não ter aptidão profissional, falta-lhe também discernimento.

Em meio a essa esculhambação institucional, com a vigência desse pacto sinistro que une os três Poderes contra a Lava Jato, o Coaf, a Receita e a Polícia Federal, é claro que todos os brasileiros gostariam de saber a opinião dos chefes militares que integram o primeiro escalão do governo. O que realmente estão achando de tudo isso? E por que não dizem nada?

É uma omissão intrigante, inquietante e decepcionante. Mas tem semelhança com o silêncio que vagueia pelos corredores do Supremo, nessa espera do julgamento da blindagem dos corruptos e da decisão de imobilizar os patrióticos auditores do Coaf, da Receita e do Banco Central.

Salário é um zero à esquerda no país da extrema direita

O salário médio não cresce desde abril. Para ser mais preciso: desde então o rendimento médio do trabalho não aumenta ou até cai, se comparado com valores do mesmo mês do ano passado. Não era ruim assim desde 2016, ainda na recessão.

Não causa escândalo. No país da Grande Depressão, o conflito mais expressivo ou evidente é tenebrosamente político. Por exemplo, há grande disputa pelo controle de instituições do sistema de Justiça, do Supremo ao moribundo Coaf, passando por Ministério Público e Polícia Federal.

Lavajatistas, bolsonaristas e a uberdireita (que quer fechar ou tomar STF e Procuradoria), grupos no Congresso e os diversos partidos da Justiça, todos batem-se pelo poder arbitrário de mandar gente para a cadeia, de fugir da polícia ou de decretar o esbulho de direitos civis, quem sabe políticos. Os direitos sociais já vão para o vinagre por inércia.


Sim, lamenta-se de modo vazio o desemprego, que não terá melhora notável até 2022, se der tudo certo. Há quem se anime com o aumento do número de pessoas trabalhando, mais 2,2 milhões de um ano para cá. Mais de 80% desses novos empregos são da categoria “empregado sem carteira assinada” e por “conta própria”.

A soma (“massa”) de todos os rendimentos do trabalho cresce no ritmo mais lento desde agosto de 2017, ao passo de 2,2% ao ano. No mínimo, o zero à esquerda dos salários deveria preocupar quem quer a ressuscitação do PIB, em tese desejo geral. Nem isso.

A penúltima manifestação trabalhista de nota ocorreu em abril de 2017, contra a reforma da Previdência. A última foi o caminhonaço dos amigos de Jair Bolsonaro, o que ajudou a arrebentar o país em 2018.

A reforma trabalhista passou quase sem um pio. Assim foi o fim da contribuição sindical obrigatória, último e maior interesse da burocracia sindical carcomida.

A nova massa de trabalhadores, que vive de bico, não tem sindicato ou quase representação de outra espécie. Os celetistas estão apavorados. Até o privilegiado e militante funcionalismo federal está quieto diante do talho iminente prometido pelo governo Bolsonaro.

Houve protesto contra esse ministro da Educação, que fez questão de desdourar a pílula do corte de gastos com disparates atrabiliários, corte que era um arrocho no governo inteiro. No mais, a emergência social e a ameaça de colapso do governo federal mal são assunto político, no sentido maior do termo.

Decerto as saídas são mínimas, mas não é disso que se trata aqui. A conversa sobre os problemas materiais limita-se a um debate sobre reformas, em geral de elite. Os salários, o trabalho que vira bico em 80% dos casos ou a ruína dos estados, nada disso motiva política organizada do povo miúdo e de seus ausentes representantes.

Há risco alto de que, em 2020, universidades federais tenham de fechar, que falte subsídio para remédio popular e dinheiro para livro didático, isso em um país de governos que gastam quase 40% do PIB por ano.

É um espanto que essa desgraça toda não se transforme em protesto. Ou talvez se transforme, de modo caricato ou monstruoso.

Um pilar da eleição de Bolsonaro foi o pensamento de que “quebrando o sistema”, em particular a corrupção, as coisas e as contas se resolvem. A facção mais extremada desse grupo imenso enfatiza mesmo é o quebra-quebra institucional, fechar ou dominar o Supremo etc. O país se politiza ao extremo, no extremo satânico da ideologia que cobre de névoa os problemas sociais.

Volta à barbárie

O segundo homem forte da Venezuela, Diosdado Cabello, enfurecido porque, devido à vertiginosa inflação que açoita sua pátria, o bolívar desapareceu de circulação e os venezuelanos só compram e vendem em dólares, pediu a seus compatriotas que recorram ao “escambo” para desterrar do país de uma vez por todas a moeda imperialista.

É certeza que os desventurados venezuelanos não lhe farão o menor caso, porque a dolarização do comércio não é um ato gratuito nem uma livre escolha, como acreditava o dirigente chavista, e sim a única maneira pela qual os venezuelanos podem saber o valor real das coisas em um país onde a moeda nacional se desvaloriza a cada instante pela pavorosa inflação —a mais alta do mundo— à qual a Venezuela foi levada por seus irresponsáveis dirigentes, multiplicando o gasto público e imprimindo moeda sem respaldo. A alusão de Cabello ao escambo é uma diáfana indicação desse retorno à barbárie que a Venezuela vive desde que, em um ato de cegueira coletiva, o povo venezuelano levou o comandante Chávez ao poder.

Fernando Vicente
O escambo é a forma mais primitiva do comércio, aqueles intercâmbios que nossos remotos ancestrais realizavam e que alguns pensadores, como Hayek, consideram o primeiro passo dados pelos homens das cavernas em direção à civilização. Certamente, comercializar é muito mais civilizado que matar-se entre si a pauladas, como faziam as tribos até então, mas suspeito que o ato decisivo para a desanimalização do ser humano tenha ocorrido antes do comércio, quando nossos antecessores se reuniam na caverna primitiva, ao redor de uma fogueira, para contar histórias. Essas fantasias atenuavam o espanto em que viviam, temerosos da fera, do relâmpago e dos piores predadores, as outras tribos. As ficções lhes davam a ilusão e o apetite de uma vida melhor que aquela que viviam, e dali nasceu talvez o primeiro impulso para o progresso que, séculos mais tarde, nos levaria às estrelas.

Neste longo trânsito, o comércio desempenhou um papel principal, e boa parte do progresso humano se deve a ele. Mas é um grande erro acreditar que sair da barbárie e chegar à civilização é um processo fatídico e inevitável. A melhor demonstração de que os povos podem, também, retroceder da civilização à barbárie é o que ocorre justamente na Venezuela. É, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo, e quando eu era criança milhões de pessoas foram para lá procurar trabalho, fazer negócios e em busca de oportunidades. Era, também, um país que parecia ter deixado para trás as ditaduras militares, a grande peste da América Latina de então. É verdade que a democracia venezuelana era imperfeita (todas são), mas, apesar disso, o país prosperava num ritmo sustentado. A demagogia, o populismo e o socialismo, parentes muito próximos, fizeram-na retroceder a uma forma de barbárie que não tem antecedentes na história da América Latina e talvez do mundo. O que o “socialismo do século XXI” fez com a Venezuela é um dos piores cataclismos da história. E não me refiro só aos mais de quatro milhões de venezuelanos que fugiram do país para não morrer de fome; também aos roubos abundantes com os quais a suposta revolução enriqueceu um punhado de militares e dirigentes chavistas cujas gigantescas fortunas fugiram e se refugiam agora naqueles países capitalistas contra os quais clamam diariamente Maduro, Cabello e companhia.

As últimas notícias publicadas na Europa sobre a Venezuela mostram que a barbarização do país adota um ritmo frenético. As organizações de direitos humanos dizem que há 501 presos políticos reconhecidos pelo regime, e, apesar disso, isolados e submetidos a tortura sistemáticas. A repressão cresce com a impopularidade do regime. Os corpos de repressão se multiplicam, e o último a aparecer agora opera nos bairros marginais, antigas cidadelas do chavismo, mas transformados, devido à falta de trabalho e à queda brutal dos níveis de vida, em seus piores inimigos. As surras e assassinatos a rodo são incontáveis e querem sobretudo, mediante o terror, fortalecer o regime. Na verdade, conseguem aumentar o descontentamento e o ódio contra o Governo. Mas não importa. O modelo da Venezuela é Cuba: um país sonâmbulo e petrificado, resignado à sua sorte, que oferece praias e sol aos turistas, e que ficou fora da história.

Infelizmente, não só a Venezuela retorna à barbárie. A Argentina pode imitá-la se os argentinos repetirem a loucura furiosa destas eleições primárias, em que repudiaram Macri e deram 15 pontos de vantagem à dupla Fernández/Kirchner. A explicação deste desvario? A crise econômica que o Governo de Macri não conseguiu resolver e que duplicou a inflação que assolava a Argentina durante o mandato anterior. O que falhou? Penso que o chamado ”gradualismo”, o empenho da equipe de Macri em não exigir mais sacrifícios de um povo extenuado pelos desmandos dos Kirchner. Mas não deu certo; mais do que isso, agora os sofridos argentinos responsabilizam o atual Governo —provavelmente o mais competente e honrado que o país teve em muito tempo— das consequências do populismo frenético que arruinou o único país latino-americano que tinha conseguido deixar para trás o subdesenvolvimento e que, graças a Perón e ao peronismo, retornou a ele com perseverante entusiasmo.

A barbárie se assenhora também da Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua esposa, depois de terem massacrado uma corajosa oposição popular, voltou a reprimir e assassinar opositores graças a umas forças armadas “sandinistas” que já se tornaram idênticas àquelas que permitiram a Somoza roubar e dizimar esse desafortunado país. Evo Morales, na Bolívia, dispõe-se a ser reeleito pela quarta vez como presidente da República. Fez uma consulta para ver se o povo boliviano queria que ele fosse novamente candidato; a resposta foi um não taxativo. Mas não lhe importa. Declarou que o direito a ser candidato é democrático e se dispõe a se eternizar no poder graças a eleições manufaturadas à maneira venezuelana.

E o que dizer do México? Escolheu esmagadoramente López Obrador, em eleições legítimas, e no país prosseguem os assassinatos de jornalistas e mulheres a um ritmo aterrador. O populismo começa a carcomer uma economia que, apesar da corrupção do Governo anterior, parecia bem orientada.

É verdade que há países como o Chile que, diferentemente dos já mencionados, progridem a passos de gigante, e outros, como a Colômbia, onde a democracia funciona e parece fazer avanços, apesar de todas as deficiências do chamado “processo de paz”. O Brasil é um caso à parte. A eleição de Bolsonaro foi recebida no mundo inteiro com espanto, por suas saídas de tom demagógicas e suas exortações militaristas. A explicação desse triunfo foi a grande corrupção dos Governos de Lula e Dilma Rousseff, que indignou o povo brasileiro e o levou a votar numa tendência contrária, não uma claudicação democrática. Certamente, seria terrível para a América Latina que também o gigante brasileiro começasse o retorno à barbárie. Mas não ocorreu ainda, e muito dependerá do que o mundo inteiro, e sobretudo a América Latina democrática, faça para impedi-lo.
Mario Vargas Llosa