É certeza que os desventurados venezuelanos não lhe farão o menor caso, porque a dolarização do comércio não é um ato gratuito nem uma livre escolha, como acreditava o dirigente chavista, e sim a única maneira pela qual os venezuelanos podem saber o valor real das coisas em um país onde a moeda nacional se desvaloriza a cada instante pela pavorosa inflação —a mais alta do mundo— à qual a Venezuela foi levada por seus irresponsáveis dirigentes, multiplicando o gasto público e imprimindo moeda sem respaldo. A alusão de Cabello ao escambo é uma diáfana indicação desse retorno à barbárie que a Venezuela vive desde que, em um ato de cegueira coletiva, o povo venezuelano levou o comandante Chávez ao poder.
Fernando Vicente |
Neste longo trânsito, o comércio desempenhou um papel principal, e boa parte do progresso humano se deve a ele. Mas é um grande erro acreditar que sair da barbárie e chegar à civilização é um processo fatídico e inevitável. A melhor demonstração de que os povos podem, também, retroceder da civilização à barbárie é o que ocorre justamente na Venezuela. É, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo, e quando eu era criança milhões de pessoas foram para lá procurar trabalho, fazer negócios e em busca de oportunidades. Era, também, um país que parecia ter deixado para trás as ditaduras militares, a grande peste da América Latina de então. É verdade que a democracia venezuelana era imperfeita (todas são), mas, apesar disso, o país prosperava num ritmo sustentado. A demagogia, o populismo e o socialismo, parentes muito próximos, fizeram-na retroceder a uma forma de barbárie que não tem antecedentes na história da América Latina e talvez do mundo. O que o “socialismo do século XXI” fez com a Venezuela é um dos piores cataclismos da história. E não me refiro só aos mais de quatro milhões de venezuelanos que fugiram do país para não morrer de fome; também aos roubos abundantes com os quais a suposta revolução enriqueceu um punhado de militares e dirigentes chavistas cujas gigantescas fortunas fugiram e se refugiam agora naqueles países capitalistas contra os quais clamam diariamente Maduro, Cabello e companhia.
As últimas notícias publicadas na Europa sobre a Venezuela mostram que a barbarização do país adota um ritmo frenético. As organizações de direitos humanos dizem que há 501 presos políticos reconhecidos pelo regime, e, apesar disso, isolados e submetidos a tortura sistemáticas. A repressão cresce com a impopularidade do regime. Os corpos de repressão se multiplicam, e o último a aparecer agora opera nos bairros marginais, antigas cidadelas do chavismo, mas transformados, devido à falta de trabalho e à queda brutal dos níveis de vida, em seus piores inimigos. As surras e assassinatos a rodo são incontáveis e querem sobretudo, mediante o terror, fortalecer o regime. Na verdade, conseguem aumentar o descontentamento e o ódio contra o Governo. Mas não importa. O modelo da Venezuela é Cuba: um país sonâmbulo e petrificado, resignado à sua sorte, que oferece praias e sol aos turistas, e que ficou fora da história.
Infelizmente, não só a Venezuela retorna à barbárie. A Argentina pode imitá-la se os argentinos repetirem a loucura furiosa destas eleições primárias, em que repudiaram Macri e deram 15 pontos de vantagem à dupla Fernández/Kirchner. A explicação deste desvario? A crise econômica que o Governo de Macri não conseguiu resolver e que duplicou a inflação que assolava a Argentina durante o mandato anterior. O que falhou? Penso que o chamado ”gradualismo”, o empenho da equipe de Macri em não exigir mais sacrifícios de um povo extenuado pelos desmandos dos Kirchner. Mas não deu certo; mais do que isso, agora os sofridos argentinos responsabilizam o atual Governo —provavelmente o mais competente e honrado que o país teve em muito tempo— das consequências do populismo frenético que arruinou o único país latino-americano que tinha conseguido deixar para trás o subdesenvolvimento e que, graças a Perón e ao peronismo, retornou a ele com perseverante entusiasmo.
A barbárie se assenhora também da Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua esposa, depois de terem massacrado uma corajosa oposição popular, voltou a reprimir e assassinar opositores graças a umas forças armadas “sandinistas” que já se tornaram idênticas àquelas que permitiram a Somoza roubar e dizimar esse desafortunado país. Evo Morales, na Bolívia, dispõe-se a ser reeleito pela quarta vez como presidente da República. Fez uma consulta para ver se o povo boliviano queria que ele fosse novamente candidato; a resposta foi um não taxativo. Mas não lhe importa. Declarou que o direito a ser candidato é democrático e se dispõe a se eternizar no poder graças a eleições manufaturadas à maneira venezuelana.
E o que dizer do México? Escolheu esmagadoramente López Obrador, em eleições legítimas, e no país prosseguem os assassinatos de jornalistas e mulheres a um ritmo aterrador. O populismo começa a carcomer uma economia que, apesar da corrupção do Governo anterior, parecia bem orientada.
É verdade que há países como o Chile que, diferentemente dos já mencionados, progridem a passos de gigante, e outros, como a Colômbia, onde a democracia funciona e parece fazer avanços, apesar de todas as deficiências do chamado “processo de paz”. O Brasil é um caso à parte. A eleição de Bolsonaro foi recebida no mundo inteiro com espanto, por suas saídas de tom demagógicas e suas exortações militaristas. A explicação desse triunfo foi a grande corrupção dos Governos de Lula e Dilma Rousseff, que indignou o povo brasileiro e o levou a votar numa tendência contrária, não uma claudicação democrática. Certamente, seria terrível para a América Latina que também o gigante brasileiro começasse o retorno à barbárie. Mas não ocorreu ainda, e muito dependerá do que o mundo inteiro, e sobretudo a América Latina democrática, faça para impedi-lo.
Mario Vargas Llosa
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