quarta-feira, 24 de julho de 2024

Pensamento do Dia

 


Legião de fanáticos


O que vivemos não é um choque de civilizações, é um choque entre os fanáticos e o resto de nós
Amós Oz

Democratas precisam entender as ideias de Trump e usá-las a seu favor

Em 2016, o movimento Faça a América Grande de Novo (MAGA), de Donald Trump, era apenas um slogan – ou, na melhor das hipóteses, um espasmo de ressentimentos e instintos sobre questões como a imigração. Nos últimos oito anos, pesquisadores, ativistas e políticos transformaram o MAGA em uma visão de mundo, uma visão de mundo que agora transcende Donald Trump.

Em todo o mundo ocidental, os partidos de direita deixaram de ser partidos das elites empresariais e se tornaram partidos da classe trabalhadora. O MAGA é a visão de mundo que está de acordo com essa realidade em transformação. Ele tem suas raízes no populismo ao estilo de Andrew Jackson (sétimo presidente dos EUA, um dos fundadores do Partido Democrata, criticado pelo tratamento de indígenas e deslealdade política), mas atualizado e mais abrangente. É a visão de mundo que representa uma versão dos interesses da classe trabalhadora e oferece respeito a esses eleitores.


J.D. Vance é a personificação e um dos desenvolvedores dessa visão de mundo – com sua suspeita em relação ao poder corporativo, envolvimentos estrangeiros, livre comércio, elites culturais e altas taxas de imigração. Em Milwaukee, na semana passada, com Vance como o escolhido de Trump para vice-presidente, ficou claro como o MAGA substituiu o reaganismo como o principal sistema operacional do Partido Republicano.

Se os democratas quiserem derrotar o MAGA, não basta dizer: o homem laranja é ruim. Falar incessantemente sobre o dia 6 de janeiro não adianta nada. Se esperam vencer, eles precisam levar a sério a visão de mundo do MAGA e defender respeitosamente, especialmente para os eleitores da classe trabalhadora, algo melhor.

Na melhor das hipóteses, o que é o MAGA, afinal? Bem, em qualquer sociedade, há uma tensão legítima entre segurança e dinamismo. Em um mundo volátil, o MAGA oferece segurança às pessoas. Ele promete fronteiras e bairros seguros, proteção contra a globalização, contra a destruição criativa do capitalismo moderno, contra uma classe instruída que o despreza e doutrina seus filhos na escola. Como o senador Josh Hawley argumentou na revista Compact esta semana: “A diretoria há muito tempo vendeu os EUA, fechando fábricas no país e eliminando empregos americanos”.

Para aqueles que, com razão, se sentem atingidos por forças vastas e desestabilizadoras, Trump surge como uma espécie de personagem de Aaron Sorkin: “Vocês me querem naquele muro. Vocês precisam de mim naquele muro”. Ele oferece segurança para as pessoas seguirem com suas vidas.

Agora, o problema com o MAGA – e aqui reside a oportunidade democrata – é que ele emerge de um modo de consciência que é muito diferente da consciência americana tradicional.

A consciência americana tem sido uma consciência de abundância. Ondas sucessivas de imigrantes encontraram um vasto continente de campos férteis e cidades movimentadas. Em 1910, Henry van Dyke, que mais tarde se tornou embaixador dos EUA na Holanda e em Luxemburgo, escreveu o livro The Spirit of America, no qual observou que “o Espírito da América é mais conhecido na Europa por uma de suas qualidades – a energia”. No século 20, Luigi Barzini, um observador italiano, argumentou que os americanos têm um zelo pelo autoaperfeiçoamento contínuo, uma “necessidade incansável de consertar, melhorar tudo e todos, nunca deixar nada sozinho”.

Muitos observadores estrangeiros viam, e os americanos não viam isso, essa nação como dinâmica por excelência. Os americanos não tinham um passado comum, mas sonhavam com um futuro comum. O senso de lar não estava enraizado no nacionalismo de sangue e solo. O lar era algo que estavam construindo juntos. Durante a maior parte da história dos EUA, os americanos não eram conhecidos por sua profundidade ou cultura, mas por viver a todo vapor.

O MAGA, por outro lado, emerge de uma consciência de escassez, de uma mentalidade de soma zero: se os EUA decidirem deixar entrar toneladas de imigrantes, eles tomarão os empregos. Se os EUA ficarem mais “marrons”, “eles” substituirão “nós”. O MAGA é baseado em uma série de histórias de vítimas: as elites estão querendo nos ferrar. Nossos aliados estão se aproveitando de nós. Os EUA de linha secular estão oprimindo os EUA de raiz cristã.

Visto a partir da mentalidade tradicional de abundância americana, o MAGA se parece menos com um tipo de conservadorismo americano e mais com um conservadorismo europeu. Ele se assemelha às gerações de chauvinistas russos que argumentavam que as massas russas incorporam tudo o que é bom, mas são ameaçadas por estrangeiros. O MAGA se parece a uma espécie de marxismo de direita, que pressupõe que a luta de classes é a característica permanente que define a política. O MAGA é uma mentalidade de fortaleza, mas os EUA têm sido tradicionalmente definidos por uma mentalidade pioneira.

Se os democratas quiserem prosperar, eles precisam explorar as raízes culturais dinâmicas dos EUA e mostrar como elas podem ser aplicadas ao século 21. Deve-se dizer que o dinamismo social é mais complicado do que parece à primeira vista. Não se trata realmente de individualismo robusto ou da versão libertária de liberdade como ausência de restrições.

Minha definição favorita de dinamismo foi adaptada do psicólogo John Bowlby: toda a vida é uma série de explorações ousadas a partir de uma base segura. Se os democratas quiserem prosperar, eles precisam oferecer às pessoas uma visão tanto da base segura quanto das explorações ousadas.

Os americanos não podem estar seguros se o mundo estiver em chamas. É por isso que os EUA precisam estar ativos no exterior, em lugares como a Ucrânia, mantendo lobos como Vladimir Putin à distância. Os americanos não podem estar seguros se a fronteira estiver um caos. O apoio popular à imigração depende da sensação de que o governo tem tudo sob controle. Os americanos não podem estar seguros se um único contratempo levar as pessoas à pobreza esmagadora. É por isso que os programas de seguro social que os democratas construíram são tão importantes. Mas o que os democratas precisam fazer, na minha opinião, é oferecer às pessoas uma visão das explorações ousadas que as aguardam. É nesse ponto que os republicanos pessimistas pós-Reagan não podem competir.

Pessoalmente, gostaria que os democratas defendessem a agenda de abundância sobre a qual pessoas como Derek Thompson e meu colega Ezra Klein têm escrito. Precisamos construir coisas. Muitas casas novas. Aviões supersônicos e trens de alta velocidade.

Os democratas precisam enfrentar seus sindicatos de professores e se comprometer com o dinamismo na educação. Eles precisam enfrentar o protecionismo. Aumentar as tarifas, como Trump quer fazer, não só aumentaria os custos para os consumidores, mas geraria preguiça e mediocridade nos setores protegidos da concorrência. Os democratas precisam reduzir os órgãos reguladores que receberam tanta liberdade que sufocaram a inovação.

Se os republicanos vão se dedicar mais uma vez à retórica da guerra de classes, os democratas precisam sair disso. Eles precisam se voltar para a aspiração americana mais tradicional: não estamos condenados a um futuro permanente de luta de classes, mas podemos criar uma sociedade fluida e móvel.

Em Milwaukee, ouvi muito patriotismo, mas era o patriotismo da nostalgia, não o patriotismo da esperança. Isso deixa uma abertura para as pessoas que se reunirão em Chicago no próximo mês para a convenção do Partido Democrata.

A eleição e a alma do Vale do Silício

Confirmado que Kamala Harris será candidata à Presidência dos Estados Unidos, esta se torna uma eleição-chave para o Vale do Silício. A divisão política que se instalou no coração digital do país será o pano de fundo do pleito. Kamala iniciou a carreira política como procuradora-geral da região da Califórnia que inclui o Vale. Mas não só. O vice escolhido por Donald Trump, J.D. Vance, vem da elite do investimento em tecnologia. Tem ideias próprias fortes, que ajudam a compor um novo tipo de reacionarismo digital. O choque ideológico entre ambos é o choque ideológico que vem se desenhando na indústria da tecnologia nos últimos dez anos.


Em nenhum grupo a divisão política é mais nítida que no conhecido como “Máfia do PayPal”, um conjunto de homens na casa dos 50 anos que ajudou a criar o primeiro sistema de pagamento da internet, nos anos finais do século XX. Depois da venda do PayPal, que tornou todos muitas vezes milionários, eles se mantiveram próximos, numa rede de apoio mútuo, aconselhando uns aos outros em investimentos. Elon Musk fundou Tesla, SpaceX e é hoje dono da rede social X. Peter Thiel, David Sacks, Reid Hoffman e Pierre Omidyar viraram alguns dos investidores mais influentes da tecnologia. Seu dinheiro ajudou a financiar, nos estágios iniciais, empresas como Facebook e LinkedIn, e o mais bem-sucedido berçário de startups, a Y Combinator.

J.D. Vance — que trabalhou tanto com Sacks quanto com Thiel em suas firmas de investimento — tem ambos como mentores e principais apoiadores. Mas o caminho de influência é de mão dupla. Vance é um pensador com ideias próprias, que em muito ajuda a organizar o pensamento de ambos e de Musk. Não apenas. Aos três, somam-se Marc Andreessen, criador do primeiro navegador gráfico, e Ben Horowitz, seu sócio noutra empresa de venture capital particularmente bem-sucedida.

A concepção de mundo que esse grupo tem parte de uma visão radical de meritocracia. Quem manda na indústria da tecnologia está na crista da onda do desenvolvimento humano e seu caminho de domínio deveria ser facilitado pelo Estado. (Musk chega a ponto de ter muitos filhos por julgar ser sua obrigação passar adiante seus genes.) Eles acreditam ter maior competência para julgar como desenvolver melhor inteligência artificial e instalar um novo sistema financeiro global. (A Andreessen Horowitz é investidora importante no mundo das criptomoedas.) Querem menos regulação e consideram que os Estados Unidos se enfraqueceram com o discurso identitário em instituições de elite, que abre espaço a gente fraca e frágil em detrimento de quem tem real vocação para domínio.00:00

Vance elabora mais: apelida a elite americana de “A Catedral”, um grupo formado pelas mesmas escolas, que se encontra nos mesmos clubes, frequenta as mesmas festas e se espalha pelo comando das maiores empresas, dos dois partidos políticos e das redações de jornais e TVs importantes. Por compartilharem a mesma ideologia, variações do liberalismo fundador do país, em essência bloqueiam o acesso dos mais pobres, que se viciam com auxílios estatais e programas sociais. Seu libertarianismo econômico se mistura com a pauta conservadora de costumes e deságua numa versão mais sofisticada do trumpismo. Considera um mito a possibilidade de crescer por conta própria nos Estados Unidos, que enxerga como oligarquia.

Até o fim da primeira década deste século, era difícil encontrar gente declaradamente de direita no Vale — quanto mais esse misto de libertários com reacionários. Hoje o liberalismo progressista ainda está presente em executivos como Tim Cook, da Apple, nos fundadores de Google e Netflix, na ex-todo-poderosa da Meta Sheryl Sandberg e, claro, isso inclui gente da Máfia do PayPal. É o caso de Reid Hoffman, criador do LinkedIn, e Pierre Omidyar. São todos doadores do Partido Democrata. Muitos deles, doadores pessoais das campanhas de Kamala Harris desde os primeiros passos dela.

O Vale tem problemas com algumas propostas do governo de Joe Biden, incluindo o avanço antitruste sobre as grandes plataformas. Curiosamente, Vance apoia esse movimento do governo. Foi também um dos entusiastas investidores no Rumble, versão trumpista do YouTube. Em parte, Vance e os seus olham com desconfiança para seus pares no mundo digital por considerar que as gigantes de tecnologia são hostis à direita.

Desregulação de criptomoedas é uma das expectativas da direita do Vale. O lado progressista está aflito por maior discussão sobre o impacto econômico que o meio digital causa no mundo. Querem regulação por considerar que isso ajuda, no futuro, a imagem da indústria. E há um ponto que une a todos: a China é o adversário comum.