terça-feira, 5 de agosto de 2025
Reforma do sistema monetário global?
As idiossincráticas trumpadas de Trump mereceriam a explicitação das forças socioeconômicas que se movimentam nos subterrâneos das vidas de mulheres e homens.
Keynes, o John Maynard, dedicou-se à compreensão das relações complexas entre Estrutura e Ação, entre os papéis sociais e sua execução pelos indivíduos engalanados nos ouropéis da liberdade e racionalidade, mas, de fato, enredados nas forças sistêmicas. Keynes, na esteira de Freud, introduziu as configurações subjetivas produzidas pelas interações entre as formas sociais e seus indivíduos, inexoravelmente submetidos aos objetivos de acumulação de riqueza monetária.
Não seria impróprio afirmar que o poder americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, a economia global iludiu as conjecturas binárias que pretendem afastar a Economia da Política. O exercício do poder americano desencadeou transformações financeiras, tecnológicas e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.
Entre tantos desesperos, Trump acusou os Brics de organizarem uma conspiração contra o poder do dólar. Não por acaso, um dos temas do momento é a reforma da arquitetura financeira internacional, ou coisa assemelhada. São cada vez mais frequentes os rumores sobre a possibilidade de abandono progressivo do dólar em favor de outras moedas no faturamento das transações internacionais e na denominação de contratos.
O futuro chegou ao passado: Keynes, delegado da Inglaterra em Bretton Woods, propôs a Clearing Union, uma espécie de banco central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios privados seriam realizados nas moedas nacionais, que, por sua vez, estariam referidas ao bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos centrais nacionais (em bancor) junto à Clearing Union.
O plano apresentado por Keynes em Bretton Woods buscava uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários. Isto significava, na verdade - dentro das condicionalidades estabelecidas - facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava, ademais, que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial”.
O arranjo monetário adotado em Bretton Woods afirmou a supremacia do dólar. Essa supremacia sobreviveu ao gesto de Richard Nixon em 1971 - a desvinculação do dólar ao ouro - e à posterior flutuação das moedas em 1973. A continuada desvalorização do dólar, ao longo dos anos 70, suscitou a elevação brutal do juro básico americano em 1979. Esse gesto de poder derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na “desinflação competitiva” e culminou na crise japonesa deflagrada no crepúsculo dos anos 80. A valorização da moeda americana suscitou o Acordo do Louvre, que empurrou goela abaixo do Japão a valorização do iene, a famosa endaka.
Sob pressão de Tio Sam, o país entrou na farra da desregulamentação financeira. Saboreou inicialmente as delícias de uma bolha imobiliária e outra no mercado de ações. A curtição durou pouco. Em 1989, os preços dos imóveis e das ações despencaram e deixaram os bancos japoneses encalacrados em créditos irrecuperáveis.
Retornemos às relações entre Estrutura e Ação: a supervalorização da moeda americana que danou as economias devedoras, como o Brasil, também moveu o investimento direto das corporações industriais americanas para a China e Ásia emergente.
Hoje, a “competitividade” chinesa é crescente tanto nos mercados menos qualificados quanto, em ritmo acelerado, nos de tecnologia mais sofisticada. O país tornou-se grande receptor do investimento direto americano, europeu e japonês e, ao mesmo tempo, ganhou participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos EUA e Europa.
A redistribuição espacial da indústria manufatureira ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como favoreceu o avanço da chamada globalização financeira. A ampliação dos déficits comerciais americanos que atormentam Trump teve como contrapartida a rápida acumulação de reservas na China superavitária. Nos anos 90, as reservas chinesas abasteceram vigorosamente o mercado de títulos emitidos pelo Tesouro americano.
Há bens que vêm para o mal. A acumulação de reservas chinesas lastreadas nos Treasuries foi simultânea à espantosa expansão do crédito nos Estados Unidos. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa. Nessa toada, a espantosa evolução do consumo das famílias de Tio Sam instigou a bolha financeira que explodiu na crise de 2008. A virtude da temperança chinesa incitou os destemperos da finança que levaram à crise de 2008.
Não por acaso, correm à solta as propostas de reforma das relações monetário-financeiras internacionais. Quase todas elas contemplam a redução do papel do dólar como moeda-reserva e recomendam sua substituição progressiva por um sistema plurimonetário.
Há quem pretenda ressuscitar a proposta europeia apresentada em 1979, na reunião do FMI em Belgrado: substituir o dólar por uma cesta de moedas, a “conta de substituição”. Naquela reunião, a proposta foi rejeitada por Paul Volcker, que reafirmou o poder da moeda americana, ao impor ao mundo uma elevação sem precedentes da taxa de juro.
Despido da roupagem de protagonista importante, o palmeirense que ora submete os leitores do Valor às suas mal traçadas linhas estava na reunião de Belgrado. Ouvi pessoalmente as vozes dos poderes que comandam a economia. “Ninguém vai contestar o Poder do Dólar”, sapecou Volcker.
Keynes, o John Maynard, dedicou-se à compreensão das relações complexas entre Estrutura e Ação, entre os papéis sociais e sua execução pelos indivíduos engalanados nos ouropéis da liberdade e racionalidade, mas, de fato, enredados nas forças sistêmicas. Keynes, na esteira de Freud, introduziu as configurações subjetivas produzidas pelas interações entre as formas sociais e seus indivíduos, inexoravelmente submetidos aos objetivos de acumulação de riqueza monetária.
Não seria impróprio afirmar que o poder americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, a economia global iludiu as conjecturas binárias que pretendem afastar a Economia da Política. O exercício do poder americano desencadeou transformações financeiras, tecnológicas e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.
Entre tantos desesperos, Trump acusou os Brics de organizarem uma conspiração contra o poder do dólar. Não por acaso, um dos temas do momento é a reforma da arquitetura financeira internacional, ou coisa assemelhada. São cada vez mais frequentes os rumores sobre a possibilidade de abandono progressivo do dólar em favor de outras moedas no faturamento das transações internacionais e na denominação de contratos.
O futuro chegou ao passado: Keynes, delegado da Inglaterra em Bretton Woods, propôs a Clearing Union, uma espécie de banco central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios privados seriam realizados nas moedas nacionais, que, por sua vez, estariam referidas ao bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos centrais nacionais (em bancor) junto à Clearing Union.
O plano apresentado por Keynes em Bretton Woods buscava uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários. Isto significava, na verdade - dentro das condicionalidades estabelecidas - facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava, ademais, que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial”.
O arranjo monetário adotado em Bretton Woods afirmou a supremacia do dólar. Essa supremacia sobreviveu ao gesto de Richard Nixon em 1971 - a desvinculação do dólar ao ouro - e à posterior flutuação das moedas em 1973. A continuada desvalorização do dólar, ao longo dos anos 70, suscitou a elevação brutal do juro básico americano em 1979. Esse gesto de poder derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na “desinflação competitiva” e culminou na crise japonesa deflagrada no crepúsculo dos anos 80. A valorização da moeda americana suscitou o Acordo do Louvre, que empurrou goela abaixo do Japão a valorização do iene, a famosa endaka.
Sob pressão de Tio Sam, o país entrou na farra da desregulamentação financeira. Saboreou inicialmente as delícias de uma bolha imobiliária e outra no mercado de ações. A curtição durou pouco. Em 1989, os preços dos imóveis e das ações despencaram e deixaram os bancos japoneses encalacrados em créditos irrecuperáveis.
Retornemos às relações entre Estrutura e Ação: a supervalorização da moeda americana que danou as economias devedoras, como o Brasil, também moveu o investimento direto das corporações industriais americanas para a China e Ásia emergente.
Hoje, a “competitividade” chinesa é crescente tanto nos mercados menos qualificados quanto, em ritmo acelerado, nos de tecnologia mais sofisticada. O país tornou-se grande receptor do investimento direto americano, europeu e japonês e, ao mesmo tempo, ganhou participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos EUA e Europa.
A redistribuição espacial da indústria manufatureira ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como favoreceu o avanço da chamada globalização financeira. A ampliação dos déficits comerciais americanos que atormentam Trump teve como contrapartida a rápida acumulação de reservas na China superavitária. Nos anos 90, as reservas chinesas abasteceram vigorosamente o mercado de títulos emitidos pelo Tesouro americano.
Há bens que vêm para o mal. A acumulação de reservas chinesas lastreadas nos Treasuries foi simultânea à espantosa expansão do crédito nos Estados Unidos. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa. Nessa toada, a espantosa evolução do consumo das famílias de Tio Sam instigou a bolha financeira que explodiu na crise de 2008. A virtude da temperança chinesa incitou os destemperos da finança que levaram à crise de 2008.
Não por acaso, correm à solta as propostas de reforma das relações monetário-financeiras internacionais. Quase todas elas contemplam a redução do papel do dólar como moeda-reserva e recomendam sua substituição progressiva por um sistema plurimonetário.
Há quem pretenda ressuscitar a proposta europeia apresentada em 1979, na reunião do FMI em Belgrado: substituir o dólar por uma cesta de moedas, a “conta de substituição”. Naquela reunião, a proposta foi rejeitada por Paul Volcker, que reafirmou o poder da moeda americana, ao impor ao mundo uma elevação sem precedentes da taxa de juro.
Despido da roupagem de protagonista importante, o palmeirense que ora submete os leitores do Valor às suas mal traçadas linhas estava na reunião de Belgrado. Ouvi pessoalmente as vozes dos poderes que comandam a economia. “Ninguém vai contestar o Poder do Dólar”, sapecou Volcker.
Trump toca flauta?
Numa entrevista recente, no podcast Pod Force One, Trump disse que estudou flauta por um breve período, com seus 11, 12 anos de idade. Embora não toque mais, continua conduzindo ratos, crianças e adultos ao abismo, de maneira semelhante ao famoso flautista de Hamelin.
Diz o conto, como muitos sabem, que numa cidade infestada por ratos, apareceu um flautista afirmando que, por um certo pagamento, poderia livrar os habitantes dos roedores. Acordo feito, levou os ratos, ao som da sua música, a se afogarem no rio. Acordo desfeito, por não ter recebido o combinado, escafedeu-se e depois voltou, com nova música que encantou as crianças locais e as levou, aprisionadas, a uma caverna. A cidade ficou sem crianças e, pois, sem futuro.
Melhor dizendo, não propriamente sem futuro, mas sem um futuro desejável, com melhor qualidade de vida, mais entendimento, negociações, concessões recíprocas, construções comuns, convivência harmônica e melhorias da qualidade de vida da maioria. Objetivamente falando, estamos sendo conduzidos a um futuro oposto a todos esses valores civilizacionais, a um porvir rumo à barbárie!
Nessa direção nos conduz um dos dirigentes mais poderosos da Terra. Há alternativas? Claro, existem, mas hoje sem o poder necessário para direcionar o futuro num rumo mais desejável. Como construir essa alternativa?
Não há resposta simples, clara e suscinta. O caminho há que se fazer ao caminhar. O bem comum tem de prevalecer sobre o lucro privado, sem deixar de reconhecer que o lucro privado é potente motor de melhorias para o bem comum, ainda que seja, também, causa de danos ao bem comum. A complexidade do equilíbrio entre bônus e ônus requer algo que os cada vez mais dominantes algoritmos e menos democráticos dirigentes não possuem: humanismo!
A força dominante é um Golias, mas há que construirmos os Davis! A vitória do pequeno sobre o grande é difícil, mas não impossível, e não se limita à bíblia!
No caminho a construir, equívocos ocorrerão, e somente serão corrigidos se prevalecerem os objetivos de privilegiar a solidariedade, a cooperação, a humildade e a objetividade rumo à uma nova civilização, na qual o ganho privado, domesticado, não suplante o bem-estar coletivo.
Trata-se, pois, de reinventar e redefinir o mundo, a civilização, os objetivos, os desejos, os sonhos, a satisfação, o contentamento.
Trata-se, talvez, de reinventar o animal humano, tornando-o, de fato, sapiens?
Diz o conto, como muitos sabem, que numa cidade infestada por ratos, apareceu um flautista afirmando que, por um certo pagamento, poderia livrar os habitantes dos roedores. Acordo feito, levou os ratos, ao som da sua música, a se afogarem no rio. Acordo desfeito, por não ter recebido o combinado, escafedeu-se e depois voltou, com nova música que encantou as crianças locais e as levou, aprisionadas, a uma caverna. A cidade ficou sem crianças e, pois, sem futuro.
Melhor dizendo, não propriamente sem futuro, mas sem um futuro desejável, com melhor qualidade de vida, mais entendimento, negociações, concessões recíprocas, construções comuns, convivência harmônica e melhorias da qualidade de vida da maioria. Objetivamente falando, estamos sendo conduzidos a um futuro oposto a todos esses valores civilizacionais, a um porvir rumo à barbárie!
Nessa direção nos conduz um dos dirigentes mais poderosos da Terra. Há alternativas? Claro, existem, mas hoje sem o poder necessário para direcionar o futuro num rumo mais desejável. Como construir essa alternativa?
Não há resposta simples, clara e suscinta. O caminho há que se fazer ao caminhar. O bem comum tem de prevalecer sobre o lucro privado, sem deixar de reconhecer que o lucro privado é potente motor de melhorias para o bem comum, ainda que seja, também, causa de danos ao bem comum. A complexidade do equilíbrio entre bônus e ônus requer algo que os cada vez mais dominantes algoritmos e menos democráticos dirigentes não possuem: humanismo!
A força dominante é um Golias, mas há que construirmos os Davis! A vitória do pequeno sobre o grande é difícil, mas não impossível, e não se limita à bíblia!
No caminho a construir, equívocos ocorrerão, e somente serão corrigidos se prevalecerem os objetivos de privilegiar a solidariedade, a cooperação, a humildade e a objetividade rumo à uma nova civilização, na qual o ganho privado, domesticado, não suplante o bem-estar coletivo.
Trata-se, pois, de reinventar e redefinir o mundo, a civilização, os objetivos, os desejos, os sonhos, a satisfação, o contentamento.
Trata-se, talvez, de reinventar o animal humano, tornando-o, de fato, sapiens?
'Genocídio mais televisionado da história'
Ilan Pappe é filho de judeus alemães que escaparam da perseguição do nazismo. Nasceu em Haifa em 1954, seis anos após a criação do Estado de Israel. “Tive a infância típica de uma criança israelense”, contou na sexta-feira, na Festa Literária de Paraty. Ao escolher o ofício de historiador, ele começou a ter contato com fatos que não eram ensinados na escola. “Tudo o que encontrava nas minhas pesquisas contradizia o que havia ouvido dos meus pais e dos professores. Fui exposto a uma história bem diferente de Israel e da Palestina”, disse.
Depois de uma temporada de estudos no exterior, Pappe voltou a Israel para mostrar o que havia garimpado em livros e arquivos oficiais. Sua visão crítica do sionismo desagradou amigos, parentes e colegas de academia. “Fui ingênuo. Achei que seria recebido de braços abertos”, comentou. “Não me dei conta de que desafiar a narrativa histórica do meu próprio país seria considerado uma traição. Isso foi um choque para mim”, admitiu.
O historiador disse ter vivido um dilema comum a quem rema contra a maré. Ou se mantinha fiel às suas convicções ou “cedia à pressão e escrevia o que as pessoas queriam ler”. “Decidi continuar com a minha verdade, sabendo o preço que precisaria pagar”, contou. O mais caro foi a demissão da Universidade de Haifa, em 2006. Sem espaço para trabalhar em Israel, ele aceitou convite para dirigir o centro de estudos palestinos da Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Autor de mais de 20 livros, Pappe veio ao Brasil lançar os dois mais recentes: “Brevíssima história do conflito Israel-Palestina” e “A maior prisão do mundo”, cujo título resume sua visão da atualidade em Gaza. “Os palestinos moram numa grande prisão desde 1967. Israel controla tudo em suas vidas. Eles vivem como detentos”, disse na Flip.
“Israel lançou mais bombas sobre a Faixa de Gaza desde 2007 do que os aliados lançaram sobre a Alemanha na Segunda Guerra”, prosseguiu. Ele comparou a situação atual do território à de um campo de extermínio. “É o genocídio mais televisionado da História”, sentenciou.
Na visão de Pappe, os palestinos são alvo de um processo de limpeza étnica, com a cumplicidade das potências que dão armas e apoio político ao governo de Israel. Ele disse que a promessa de França e Reino Unido de reconhecerem a Palestina como Estado é um “pequeno passo”. Mas defendeu que só sanções econômicas, como as aplicadas à Àfrica do Sul na época do apartheid, seriam capazes de frear o massacre em Gaza. “Se o Ocidente fizesse 50% do que está fazendo com a Rússia (após a invasão da Ucrânia), criaria um grande problema para Israel”, disse.
Ao apresentar a mesa, a curadora Ana Lima Cecilio disse que o convite a Pappe foi a “decisão mais importante” da 23ª edição da Flip. “Houve pressão para impedir que eu falasse a vocês”, agradeceu o historiador, sob aplausos e gritos de apoio. Ele afirmou que suas críticas não demonizam Israel nem os israelenses. “Eu falo em hebraico, sonho em hebraico”, comentou, antes de lembrar que mais da metade da população de Gaza tem menos de 20 anos de idade. “Esses jovens só conheceram uma realidade: viver sob cerco, bombardeio e destruição permanente.”
Depois de uma temporada de estudos no exterior, Pappe voltou a Israel para mostrar o que havia garimpado em livros e arquivos oficiais. Sua visão crítica do sionismo desagradou amigos, parentes e colegas de academia. “Fui ingênuo. Achei que seria recebido de braços abertos”, comentou. “Não me dei conta de que desafiar a narrativa histórica do meu próprio país seria considerado uma traição. Isso foi um choque para mim”, admitiu.
O historiador disse ter vivido um dilema comum a quem rema contra a maré. Ou se mantinha fiel às suas convicções ou “cedia à pressão e escrevia o que as pessoas queriam ler”. “Decidi continuar com a minha verdade, sabendo o preço que precisaria pagar”, contou. O mais caro foi a demissão da Universidade de Haifa, em 2006. Sem espaço para trabalhar em Israel, ele aceitou convite para dirigir o centro de estudos palestinos da Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Autor de mais de 20 livros, Pappe veio ao Brasil lançar os dois mais recentes: “Brevíssima história do conflito Israel-Palestina” e “A maior prisão do mundo”, cujo título resume sua visão da atualidade em Gaza. “Os palestinos moram numa grande prisão desde 1967. Israel controla tudo em suas vidas. Eles vivem como detentos”, disse na Flip.
“Israel lançou mais bombas sobre a Faixa de Gaza desde 2007 do que os aliados lançaram sobre a Alemanha na Segunda Guerra”, prosseguiu. Ele comparou a situação atual do território à de um campo de extermínio. “É o genocídio mais televisionado da História”, sentenciou.
Na visão de Pappe, os palestinos são alvo de um processo de limpeza étnica, com a cumplicidade das potências que dão armas e apoio político ao governo de Israel. Ele disse que a promessa de França e Reino Unido de reconhecerem a Palestina como Estado é um “pequeno passo”. Mas defendeu que só sanções econômicas, como as aplicadas à Àfrica do Sul na época do apartheid, seriam capazes de frear o massacre em Gaza. “Se o Ocidente fizesse 50% do que está fazendo com a Rússia (após a invasão da Ucrânia), criaria um grande problema para Israel”, disse.
Ao apresentar a mesa, a curadora Ana Lima Cecilio disse que o convite a Pappe foi a “decisão mais importante” da 23ª edição da Flip. “Houve pressão para impedir que eu falasse a vocês”, agradeceu o historiador, sob aplausos e gritos de apoio. Ele afirmou que suas críticas não demonizam Israel nem os israelenses. “Eu falo em hebraico, sonho em hebraico”, comentou, antes de lembrar que mais da metade da população de Gaza tem menos de 20 anos de idade. “Esses jovens só conheceram uma realidade: viver sob cerco, bombardeio e destruição permanente.”
Trump é um pesadelo
Estive em Paraty para falar de um belo livro de fotos de João Farkas: “Costa norte”. Escrevi um texto de apresentação e, no debate sobre manguezais, dunas e petróleo na Foz do Amazonas, um homem perguntou:
— E o fator Trump, que dizer sobre ele?
Fugia um pouco do tema, mas respondi com sinceridade que Trump me tirava algumas horas de sono. Sou jornalista, ele é o homem mais poderoso do mundo. Terei de falar sobre ele nos próximos anos, é um inescapável pesadelo.
Seu narcisismo e estreiteza de ideias colocam um perigo ao analista: cair na zona de conforto da crítica fácil e deixar de evoluir como faria se estivesse diante de alguém com ambiguidades e zonas de sombra típicas da riqueza humana.
Não posso desistir. Preciso trabalhar e, além do mais, Trump influencia a sorte do Brasil. É um momento de todos ajudarem, dentro de seus limites. O que posso fazer é estudar mais.
Estou iniciando o clássico “Fantasias masculinas”, de Klaus Theweleit, uma análise profunda e inquietante de um grupo de soldados que tiveram papel crucial na ascensão do nazismo. Os soldados eram integrantes dos Freikorps, unidades paramilitares que lutaram e triunfaram sobre o movimento revolucionário alemão, imediatamente depois da Primeira Guerra.
Talvez possa avançar em minhas análises. Mas o fator Trump implica mais que um esforço individual de interpretação. É um desafio que pede uma estratégia nacional. Quando houve o tarifaço, sugeri que concentrássemos a energia tentando mobilizar as forças internas nos Estados Unidos, onde a medida repercutiu mal. Intelectuais, políticos e jornalistas criticaram Trump, sem falar nos grupos econômicos descontentes, que serão úteis nas eleições que se aproximam.
Passado o primeiro momento, é necessário continuar negociando. Mas sugiro que o Brasil inicie uma longa mudança. Primeiro ponto tático: é preciso recuperar ao máximo os contatos com os Estados Unidos. A Frente Parlamentar Brasil-Estados Unidos ainda não fez uma única reunião neste ano. Nossa inteligência, se podemos chamá-la assim, não acompanhou os passos dos lobistas que influenciaram a Casa Branca e contavam diariamente seus feitos.
De modo geral, nos comportamos como se o fator Trump nunca fosse chegar a nossa praia. As divergências não podem evitar o diálogo. Precisamos ampliar nosso conhecimento sobre o que se passa nos Estados Unidos, identificar interlocutores e compartilhar com os americanos este momento difícil, que parece desembocar num governo autoritário.
Em termos estratégicos, há um consenso de que devemos ampliar os negócios com o mundo, abrir mercados na Europa. Lula trabalha para fechar o acordo Mercosul-União Europeia ainda neste ano. Mas há também Canadá, México e todos os países que, de certa forma, foram atingidos pelas tarifas de Trump, inclusive na Ásia.
Existe outro nível de abertura, talvez difícil de trafegar numa maré nacionalista. É a abertura da própria economia brasileira, simplificando a estrutura tarifária, removendo barreiras não tarifárias, avançando no que o Banco Mundial chama de caminhos da prosperidade. Claro que uma abertura assim implica riscos internos que precisam ser minimizados. Podemos sair mais fortes de tudo isso. Por que não tentar?
— E o fator Trump, que dizer sobre ele?
Fugia um pouco do tema, mas respondi com sinceridade que Trump me tirava algumas horas de sono. Sou jornalista, ele é o homem mais poderoso do mundo. Terei de falar sobre ele nos próximos anos, é um inescapável pesadelo.
Seu narcisismo e estreiteza de ideias colocam um perigo ao analista: cair na zona de conforto da crítica fácil e deixar de evoluir como faria se estivesse diante de alguém com ambiguidades e zonas de sombra típicas da riqueza humana.
Não posso desistir. Preciso trabalhar e, além do mais, Trump influencia a sorte do Brasil. É um momento de todos ajudarem, dentro de seus limites. O que posso fazer é estudar mais.
Estou iniciando o clássico “Fantasias masculinas”, de Klaus Theweleit, uma análise profunda e inquietante de um grupo de soldados que tiveram papel crucial na ascensão do nazismo. Os soldados eram integrantes dos Freikorps, unidades paramilitares que lutaram e triunfaram sobre o movimento revolucionário alemão, imediatamente depois da Primeira Guerra.
Talvez possa avançar em minhas análises. Mas o fator Trump implica mais que um esforço individual de interpretação. É um desafio que pede uma estratégia nacional. Quando houve o tarifaço, sugeri que concentrássemos a energia tentando mobilizar as forças internas nos Estados Unidos, onde a medida repercutiu mal. Intelectuais, políticos e jornalistas criticaram Trump, sem falar nos grupos econômicos descontentes, que serão úteis nas eleições que se aproximam.
Passado o primeiro momento, é necessário continuar negociando. Mas sugiro que o Brasil inicie uma longa mudança. Primeiro ponto tático: é preciso recuperar ao máximo os contatos com os Estados Unidos. A Frente Parlamentar Brasil-Estados Unidos ainda não fez uma única reunião neste ano. Nossa inteligência, se podemos chamá-la assim, não acompanhou os passos dos lobistas que influenciaram a Casa Branca e contavam diariamente seus feitos.
De modo geral, nos comportamos como se o fator Trump nunca fosse chegar a nossa praia. As divergências não podem evitar o diálogo. Precisamos ampliar nosso conhecimento sobre o que se passa nos Estados Unidos, identificar interlocutores e compartilhar com os americanos este momento difícil, que parece desembocar num governo autoritário.
Em termos estratégicos, há um consenso de que devemos ampliar os negócios com o mundo, abrir mercados na Europa. Lula trabalha para fechar o acordo Mercosul-União Europeia ainda neste ano. Mas há também Canadá, México e todos os países que, de certa forma, foram atingidos pelas tarifas de Trump, inclusive na Ásia.
Existe outro nível de abertura, talvez difícil de trafegar numa maré nacionalista. É a abertura da própria economia brasileira, simplificando a estrutura tarifária, removendo barreiras não tarifárias, avançando no que o Banco Mundial chama de caminhos da prosperidade. Claro que uma abertura assim implica riscos internos que precisam ser minimizados. Podemos sair mais fortes de tudo isso. Por que não tentar?
Entre ameaças e chantagens
A chantagem de Trump de aumentar em 50% as tarifas para produtos brasileiros, com o objetivo de pressionar nosso Judiciário, faz parte de sua estratégia global, a teoria do louco. Imperam a imprevisibilidade e o personalismo em suas decisões. O bilionário tenta persuadir seus adversários mostrando que é capaz de qualquer ação para vencer. Em parte, está funcionando, como o acordo EUA-UE evidencia.
A Folha lembrou das rusgas entre Brasil e EUA por causa de softwares e computadores nos anos 1980. O país protegia seu mercado dos produtos estadunidenses ao mesmo tempo que incentivava o desenvolvimento de uma indústria nacional. Aos moldes do que fizeram China e Japão, fabricava softwares copiando a tecnologia dos EUA.
Como resposta, Ronald Reagan ameaçou aplicar uma sobretaxa de 100% sobre produtos brasileiros. A lista incluía madeira, ferro, equipamentos telefônicos e aviões. Sarney cedeu. O Brasil permitiu a comercialização dos produtos da Microsoft e flexibilizou sua política de informática. As sanções foram suspensas. Nossa indústria naufragou e nossa dependência externa reflete-se nos R$ 10 bilhões gastos com big techs em 2024.
Nos anos 1990, o neoliberalismo era mais que uma moda, era uma ordem ideológica. Economistas, jornais e políticos vibravam com as privatizações e a reorganização do Estado promovida por FHC no Brasil e que se estendia a maioria dos países da América Latina.
Todos seguiam as diretrizes do Consenso de Washington, que impunha ajustes estruturais, cortes de gastos sociais e abertura de mercado para liberar empréstimos. Precisa de dinheiro? Só adotando nossas políticas. Esse era o subtexto do FMI. “O que está sendo vendido como ajuda econômica é, na verdade, uma forma altamente sofisticada de chantagem econômica. A ‘ajuda’ do FMI vem sempre com um preço — e esse preço é o sacrifício da soberania econômica”. escreveu Naomi Klein em a Doutrina do Choque.
Ou como vaticinou o geógrafo David Harvey, “O neoliberalismo não destrói o Estado — o redesenha como instrumento de classe.” Não é coincidência a primeira experiência neoliberal ter ocorrido durante a ditadura de Augusto Pinochet entre os anos de 1973-1990 no Chile.
Há as chantagens evidentes e irracionais de Trump, há as ideológicas e racionais do neoliberalismo. E há as chantagens da rotina, que nos colocam em um labirinto sem saída. Somos submetidos aos mecanismos psicológicos, burocráticos e existenciais tal qual Josef K., o protagonista de “O Processo” de Franz Kafka. Nós normalizamos as opressões e somos cúmplices indiretos delas.
A Folha lembrou das rusgas entre Brasil e EUA por causa de softwares e computadores nos anos 1980. O país protegia seu mercado dos produtos estadunidenses ao mesmo tempo que incentivava o desenvolvimento de uma indústria nacional. Aos moldes do que fizeram China e Japão, fabricava softwares copiando a tecnologia dos EUA.
Como resposta, Ronald Reagan ameaçou aplicar uma sobretaxa de 100% sobre produtos brasileiros. A lista incluía madeira, ferro, equipamentos telefônicos e aviões. Sarney cedeu. O Brasil permitiu a comercialização dos produtos da Microsoft e flexibilizou sua política de informática. As sanções foram suspensas. Nossa indústria naufragou e nossa dependência externa reflete-se nos R$ 10 bilhões gastos com big techs em 2024.
Nos anos 1990, o neoliberalismo era mais que uma moda, era uma ordem ideológica. Economistas, jornais e políticos vibravam com as privatizações e a reorganização do Estado promovida por FHC no Brasil e que se estendia a maioria dos países da América Latina.
Todos seguiam as diretrizes do Consenso de Washington, que impunha ajustes estruturais, cortes de gastos sociais e abertura de mercado para liberar empréstimos. Precisa de dinheiro? Só adotando nossas políticas. Esse era o subtexto do FMI. “O que está sendo vendido como ajuda econômica é, na verdade, uma forma altamente sofisticada de chantagem econômica. A ‘ajuda’ do FMI vem sempre com um preço — e esse preço é o sacrifício da soberania econômica”. escreveu Naomi Klein em a Doutrina do Choque.
Ou como vaticinou o geógrafo David Harvey, “O neoliberalismo não destrói o Estado — o redesenha como instrumento de classe.” Não é coincidência a primeira experiência neoliberal ter ocorrido durante a ditadura de Augusto Pinochet entre os anos de 1973-1990 no Chile.
Há as chantagens evidentes e irracionais de Trump, há as ideológicas e racionais do neoliberalismo. E há as chantagens da rotina, que nos colocam em um labirinto sem saída. Somos submetidos aos mecanismos psicológicos, burocráticos e existenciais tal qual Josef K., o protagonista de “O Processo” de Franz Kafka. Nós normalizamos as opressões e somos cúmplices indiretos delas.
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