sábado, 20 de abril de 2019

Brasil de Judas


Muito além da caricatura

Reconheço, há um quê de diversão no tiroteio digital contra as figuras mais caricatas do governo, aí incluído para gáudio geral o presidente da República. Jair Bolsonaro fornece amplo material, bem como alguns de seus ministros. O espetáculo rende risos, grosserias, irresponsabilidades à deriva, irrelevâncias a granel, mas produz também preocupações consistentes.

Nem todas, é verdade. Parte delas completamente inconsistente — decorrente dos temores de determinados ativistas do apocalipse (alguns deles, de sofá) que até outro dia enxergavam a nomeação de militares para funções no governo como anunciação do apocalipse autoritário. Esses mesmos hoje celebram a ponderação dos generais, quem diria?

É o fenômeno conhecido como adaptação das impressões aos fatos. Mesmo assim, persiste a visão de que há um embate entre a ala circense e o grupo dos consistentes com placar favorável àquela. De acordo com essa concepção, o burlesco tenderia a prevalecer devido ao presidente, seus filhos e apoiadores mais barulhentos.

Um exame detido da realidade e desprovido da ideia preconcebida de que tudo é deboche e descaso no país desmente essa versão e demonstra a preferência do brasileiro pela seriedade, ponderação e competência. Fosse diferente, Bolsonaro, filhos e companhias toscas não teriam tido de engolir os recuos a que foram obrigados.

As relações com a China teriam ido para o espaço, a embaixada brasileira em Israel já estaria em Jerusalém, as escolas públicas ensinariam que a Terra é plana desde Adão e Eva, 45 embaixadores lotados mundo afora teriam voltado para Brasília, a tal da pauta conservadora de costumes estaria em franca tramitação no Congresso como protagonista da salvação nacional no lugar da reforma da Previdência, e por aí iríamos caso tivessem razão os que acreditam em bicho-papão.


Não que o presidente e partidários não gostariam de ver prevalecer suas crenças. A questão é que não podem. São impedidos pela materialidade democrática de fazer o que lhes dá nas respectivas telhas. Uma coisa é o desejo de um governante de atuar em determinada direção. Outra são os obstáculos impostos pela reação dos governados por intermédio de suas instâncias de representação e canais de comunicação. É a antiga e benfazeja regra de que o poder pode muito, mas não pode tudo. Nem aquele supremo, encarre¬gado da última palavra.

O que conseguiram os ministros Antonio Dias Toffoli e Alexandre de Mo-raes além de atrair repúdio generalizado ao Supremo Tribunal Federal e se expor ao ridículo de censurar um texto que passou a circular com franca amplitude depois da ordem contra a revista digital Crusoé? Nada.

Pois é disso que se trata: nada há para temer em atitudes desprovidas de eixo e fora do contexto democrático. Quanto mais caricatos seus autores, mais reação provocam, mais rápido tendem a cair do picadeiro porque, embora pareça, o Brasil não é um circo nem o brasileiro fica confortável vestido no figurino de palhaço.

Áudio da 'trava' comprova que Bolsonaro não é populista, só mente um pouo

Na política, o que te dizem em público nunca é tão importante quanto o que você ouve sem querer. Vazado do WhatsApp para as manchetes, o áudio em que o chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni informa aos caminhoneiros que "já demos uma trava na Petrobras" revela uma verdade inconveniente. Sob Jair Bolsonaro, o Planalto não represa preços de combustíveis, não cede a tentações populistas e não desautoriza o czar da Economia Paulo Guedes. Só mente um pouco.

Em viagem a Nova York, na semana passada, Guedes recebeu de Bolsonaro uma punhalada pelas costas. Soube pelos jornalistas que o presidente anulara com um "telefonaço" o reajuste do diesel. O ministro passou uma semana gastando baldes de saliva e o melhor do seu latim para convencer a plateia do seguinte: o que estava na cara não era uma intervenção populista do capitão na Petrobras, mas um telefonema inocente de um ignorante em economia tentando compreender a composição do preço do diesel.

Abra-se um parêntese para injetar na conversa fiada o áudio que Onyx enviou para um líder caminhoneiro, Marconi França. Foi postado num grupo de WhatsApp em 27 de março. Nele, o ministro soa assim: "Estamos trabalhando, o presidente está focado, tem várias coisas bacanas [...] para dar condição a que o caminhoneiro autônomo tenha o seu direito respeitado, seja valorizado. Estamos trabalhando muito. Já demos uma trava na Petrobras. Qualquer modificação de preço, no mínimo entre 15 e 30 dias de variação, não pode ter menos que isso." Fecha parêntese.

Em 26 de março, um dia antes de Onyx enviar aos caminhoneiros o seu mimo vocal, a Petrobras anunciara por meio de nota uma mudança na periodicidade dos reajustes do diesel. Em vez de subir semanalmente, o óleo passaria a ser reajustado em intervalos jamais inferiores a 15 dias. Pois bem, o reajuste que Bolsonaro mandou a Petrobras suspender foi anunciado em 11 de abril. Como combinado, eram transcorridos não 15, mas 16 dias desde a divulgação da nota.

Expostos os fatos, tirem-se as conclusões: 1) A Petrobras esticou o intervalo dos reajustes do diesel de 7 para 15 dias não porque quis, mas porque tomou uma "trava" do Planalto. Beleza. É do jogo. 2) É falsa a alegação de que Bolsonaro mandou suspender o reajuste de 11 de abril porque ficou surpreso. A canelada foi desferida com planejamento e método. 3) A anulação de um aumento feito dentro do prazo combinado foi, na verdade, uma "trava" dentro da outra. Bolsonaro deu de ombros para Guedes e deu ouvidos a Onyx, portador de ameaças de greve dos caminhoneiros.

A lambança custou R$ 32 bilhões em perda do valor de mercado da Petrobras. De volta a Brasília, Paulo Guedes trouxe Bolsonaro à realidade, jurou que a autonomia da estatal estava intacta e declarou que não se sentia atingido em sua autoridade. Na última quarta-feira, a Petrobras reajustou o diesel em 4,8%. Na véspera, o Planalto tentou mimar os caminhoneiros com o anúncio de um pacote que incluía desde promessas de recuperação de estradas até financiamento do BNDES.

De toda a novela restaram a "trava'', a desvalorização do papelório da Petrobras, a perda de valor de mercado da autoridade de Paulo Guedes e a evidência de que Bolsonaro, a exemplo de seus antecessores, não tem a mais remota ideia do que fazer para se livrar da constante ameaça da revolta da boleia. Parte dos caminhoneiros acena com a hipótese de puxar o freio de mão no próximo dia 29.

Você pode reagir ao áudio de Onyx e a tudo o que ele representa de duas maneiras. Numa, você se desespera com a inépcia do governo para resolver uma encrenca anunciada. Noutra, você faz como Paulo Guedes: se finge de bobo e declara, pelo bem do Brasil, que acredita piamente na conversão do intervencionista Bolsonaro ao evangelho liberal do seu Posto Ipiranga. O difícil é saber se a auto-enganação de Guedes sobreviverá a mais três Páscoas.

Notre Dame de Paris: duas observações

Nada mais falso, dizia o meu pai, um fanático pela Idade Média para quem a história parara, sim, mas depois do século 14. Se existe período que merece o nome de renascimento, acrescentava ele com devoção, esse período começa no ano mil e vai até à Peste Negra.

São três séculos gloriosos de civilização e arte, em que os homens se reproduzem como nunca; se alimentam como nunca; estudam como nunca; realizam trocas comerciais como nunca; constroem como nunca; e viajam como nunca. A prova?

Ali estava, apontava ele para a Notre-Dame. Longe iam os tempos em que as casas de culto eram pequenas, modestas, grosseiras. A catedral gótica era a expressão da riqueza de um tempo –riqueza material e, sobretudo, espiritual, com as paredes a elevarem-se para o céu como se fossem orações (cito de memória).

Para aquele homem, os medievais não eram fantasmas rústicos que viviam em outro planeta. Eram nossos contemporâneos, partilhando os desejos e os medos que é possível encontrar no homem do século 21.

Como professor que era, aconselhou-me bibliografia. Sobretudo Georges Duby, que eu li e agora reli. O homem medieval, escreveu o historiador francês, tinha medo da miséria, do outro, das epidemias, da violência e do além. E nós?

Nós não somos assim tão diferentes. Medo da miséria? Continua a ser uma angústia, mesmo ou sobretudo no meio de tanta afluência.

Medo do outro? Basta olhar para os nacionalismos agressivos, para quem os “estrangeiros” são os novos bárbaros.

Medo das epidemias? Nunca a saúde foi tão santificada como hoje.

Medo da violência? Uma preocupação que pode determinar resultados eleitorais.

Só não temos medo do além, talvez por não acreditarmos nele. Mas temos medo do aquém: o medo da morte nunca foi tão drástico.

A Notre-Dame de Paris não é uma relíquia do passado; é um monumento do presente onde podemos ver e projetar a nossa eterna humanidade.

2) Certa vez, contei a um grupo de amigos a minha visita à Capela Sistina. Falei do teto, daquele teto, que Michelangelo pintou em idade avançada. Alguém do grupo retorquiu: “E os pobres que passavam fome?”

É um comentário inteligente. Na cabeça do parceiro, se o papa não tivesse encomendado a obra a Michelangelo, ele teria comprado pão a todos os pobres de Roma, ou de Itália, ou da Europa.

Que a opção, no século 16, não fosse entre o teto ou os pobres mas entre o teto ou nada, eis uma hipótese que não perturbou aquela cabeça.

Agora, com o incêndio da Notre-Dame de Paris, esse argumento voltou a soar forte. Os milionários franceses já conseguiram juntar 900 milhões de euros para a reconstrução da catedral?

Hipocrisia, gritam os moralistas; eles deveriam gastar o dinheiro em ajuda humanitária, acrescentam. Uma vez mais, e na sabedoria dos moralistas, a opção não é entre a catedral ou nada; é entre a catedral ou uma ONG.

Se esse raciocínio fosse levado a sério, e aplicado retroativamente na história, não seria apenas o teto da Capela Sistina a desaparecer. Seria toda a arte ocidental, ou uma parte generosa dela, que sempre dependeu das boas graças dos mecenas.

De que nos servem as esculturas de Donatello se a família Médici não ajudava os pobres?

Que interessam as “Meninas” de Velázquez se Filipe 4º, rei de Espanha, não acabou com todos os miseráveis do país? (O país dele e, já agora, o país do lado, Portugal, então sob domínio filipino.)

E como tolerar Picasso ou Chagall se Peggy Gunggenheim não adotou todas as crianças órfãs do seu tempo?

É assim o mundo dos simples.
João Pereira Coutinho 

Imagem do Dia


O vergalho

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: – "Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!


– Meu senhor! gemia o outro.

– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.


Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio – o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

– E, sim, nhonhô.

– Fez-te alguma coisa?

– É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

– Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a cavar cá dentro uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. 
Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera.

Vejam as sutilezas do maroto! 
Machado de Assis, "Memórias póstumas de Brás Cubas"

Falar o que não querem ouvir

Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir
George Orwell

Cavaleiros do apocalipse

Os acontecimentos da semana me fizeram lembrar do debate eleitoral. Discutíamos muito o futuro da democracia. Havia pessimistas, mas, assim como nos Estados Unidos, contamos com um sistema de pesos e contrapesos. O Supremo aparecia aí como um Poder moderador, uma das garantias democráticas. Com o inquérito mandado abrir por Dias Toffoli, o papel do STF sofreu um deslocamento. Quando foi instaurado, escrevi que aquilo parecia uma carteirada, era tão absurdo que seria legalmente anulado.

O que era ainda apenas um mau sinal acabou se tornando uma ferida aberta em nossa democracia com a censura à revista Crusoé e ao site O Antagonista e inúmeras buscas em casa de pessoas que se expressam pelas redes sociais.

A notícia que a Crusoé publicou acabou sendo multiplicada à exaustão: Marcelo Odebrecht informou que Toffoli era o “amigo do amigo do meu pai”, apelido que aparecia em algumas mensagens dele. O que quer dizer isso? O amigo do pai de Marcelo é Lula. Ser amigo de Lula não é um fato isolado: milhares de brasileiros assumiriam essa condição. Toffoli era advogado-geral da União e possivelmente tratou com a Odebrecht das usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia.

Mas até aí também não apareceu nada de mais. Houve corrupção na construção de Jirau? Digo que sim, e já estive lá depois que a Lava Jato levantou o tema. Fiz um pequeno documentário no próprio lugar.


Não vi o nome de Toffoli. O próprio documento da Odebrecht não o liga à corrupção, não houve referência a pagamentos. Não havia, portanto, uma razão para transpor um marco democrático e determinar a censura da revista e do site. O que Toffoli conseguiu com isso? Em primeiro lugar, multiplicou fantasticamente a divulgação de uma notícia que lhe era incômoda. Em segundo lugar, fortaleceu a suspeição de que havia realmente algo a esconder.

Não foi um lance inteligente para quem personifica um Poder moderador. Foi um curto-circuito na compreensão do que é o Brasil hoje e abre uma crise aguda, anuvia ainda mais uma atmosfera nebulosa.

Todo esse equívoco terá um desfecho. Se o Supremo realmente se preocupa com a gravidade da situação, deve resolvê-la logo. E Toffoli perderá – e creio que perde também as condições de seguir na presidência.

Esse é um desdobramento que me parece realmente superar a questão. Na verdade, a necessidade de ir um pouco mais a fundo se dá em outros problemas neste momento. E nada se realiza. O caso da morte de um músico por soldados do Exército, em Guadalupe, no Rio de Janeiro, é um deles.

É discutível se o caso não deveria ser enviado para a Justiça comum. Mesmo um julgamento perfeito na esfera militar ainda não esgota o tema. Era preciso um projeto de longas conversas com os soldados, entender de onde tiraram aquela confiança para disparar tantos tiros e desprezar os apelos de socorro.

Existe uma possibilidade de encontrarmos algumas ideias que circulam na dimensão política, uma banalização da violência. Não me arrisco a dizer que uma ou outra ideia das que correm tenha influenciado os jovens. Apenas digo que valeria a pena pesquisar.

Em quase todas as conversas sobre segurança, incluído o pacote de Sergio Moro, existe uma ênfase punitiva. Mas há um amplo caminho pelo trabalho preventivo e creio que o Exército, tantas vezes chamado a intervir, tem condições de trilhá-lo. Que ideia os soldados tinham do protocolo, que ideias os levaram a desprezar as regras? Isso não pode acontecer com soldados do Exército Brasileiro e certamente o estudo do caso tende a indicar alguns caminhos.

No caso de Guararema, onde a PM matou 11 assaltantes, toda a ênfase de Doria e de Bolsonaro foi na ação policial. Estive em Guararema seis meses antes para mostrar como a cidade se tornou segura, por meio do seu sistema de câmeras. Acompanhei casos na sala de controle, observei que mesmo pequenos atos de vandalismo estavam sob vigilância.

Claro que, na minha concepção de segurança, interpretaria Guararema como um sucesso das câmeras – um estímulo para outras cidades brasileiras. Isso não significa desvalorizar a ação policial. É louvá-las. Mas depois de um exame no cérebro da segurança de Guararema, que é a sala de controle, por sinal, ao lado do quartel da PM.

A política de Bolsonaro flerta com a morte constantemente. Isso me incomoda. Vivo nas estradas brasileiras. É meu trabalho cotidiano. Considero um absurdo a ideia de reduzir os radares. Vai aumentar os acidentes. Não sei de onde ele tirou isso, aliás parece um Jânio Quadros punk. Briga de galo, biquíni, saudades dos delírios amenos.

Já vi anseios por aumento do limite legal de velocidade na Alemanha. São outros carros, outras estradas. Bolsonaro quer suprimir os controladores de limites.

Nosso regime democrático baseia-se num sistema de pesos e contrapesos. Ultimamente, andam todos muito pesados. Um importante contrapeso acaba sendo a própria sociedade: o Brasil está em outra, espero.

Se os próprios ministros do STF observarem bem a reação que suas medidas provocaram, vão perceber que existe um consenso em torno da liberdade de expressão que não se pode mais ultrapassar, a não ser numa ditadura.

Bolsonaro, creio, continuará atirando a esmo. De repente aparece em Israel com uma ousada tese sobre a História. Presidentes não são historiadores. Os que eventualmente o forem sabem que presidente não dá opiniões tão radicais sobre um fato histórico.

De repente, congela preços, opina sobre os equipamentos irregulares que o Ibama pode queimar e ainda tem toda uma guerra cultural para fazer – comunistas, Paulo Freire, globalistas, teorias do aquecimento global, de gênero…

Se há alguma teoria que nos possa ajudar, entre todas, é a teoria do caos. Temos de estudá-la muito para tirar algo de positivo da confusão nacional.

Casa de intolerância e do vale-tudo

O Brasil vive uma era de possibilidades ilimitadas, no mau sentido. A falta de modos políticos essenciais para a democracia não vem de hoje, mas a incivilidade ganha ares de nova etiqueta da elite deste país degradado.

Poucas lideranças parecem preocupadas ou capazes de medir a consequência de seus atos. Conflito institucional é nome elegante demais para o que se passa.

É melhor dar nome a alguns desses bois, antes de passar a mais abstrações.


O então juiz Sergio Moro pulava cercas legais a fim de dar impulso político a seus processos e juízos, como no caso do vazamento do grampo de Dilma Rousseff, mas não apenas.

Ministros do Supremo tomam decisões ou instituem inquéritos de legalidade avacalhada a fim de contra-atacar, com bons ou péssimos motivos, a militância politizada de procuradores, por exemplo. No meio da zorra, censuram a imprensa, como no caso da revista Crusoé.

Parte do Congresso (por revanche) e parte do bolsonarismo (em sua guerrilha anti-establishment) querem assediar, depor ou aposentar ministros do STF e controlar o Supremo.

O presidente da República e a falange da ala antissistema do bolsonarismo hostilizam o Congresso. Por atos e omissões, Bolsonaro ataca a ideia de governo articulado e organizado, a começar pelo seu próprio.

Parte relevante da elite econômica acredita que vale quase tudo a fim de implementar um programa econômico, sendo corresponsável pela degradação.

Por omissão, colaboração cúmplice ou mesmo militância feroz, aceita arreganhos autoritários e o envenenamento do convívio democrático. Despreza as ideias de que o país precisa de paz social mínima e a de que um governo precisa de líderes com um mínimo de capacidade administrativa, política e intelectual.

O vale-tudo começa com o laceamento da lei, a tentativa de passar do limite da responsabilidade para o território da irresponsabilidade, onde o folgado institucional tenta manipular o jogo político e legal.

Dão jeitinhos, burlam normas, “se colar, colou”, extrapolam seus poderes, interpretam liberalmente as regras, de acordo com sua conveniência e seu particularismo atrozes. Nesse terreno se constrói a casa de tolerância do malandro com aspirações autocráticas.

Dessas feitorias pioneiras do arbítrio, várias lideranças do país, públicas e privadas, lançam ataques umas contra as outras e contra direitos em geral.

Essa mesquinharia temperada de autoritarismo faz com que a desordem política e econômica seja cada vez maior, assim como o risco de um acidente ou atentado institucional mais grave.

Dessas feitorias pioneiras do arbítrio, várias lideranças do país, públicas e privadas, lançam ataques umas contra as outras e contra direitos em geral. Essa mesquinharia temperada de autoritarismo faz com que a desordem política e econômica seja cada vez maior, assim como o risco de um acidente ou atentado institucional mais grave.

Essa descrição sumária vale para aspectos do governo Dilma Rousseff, em que a corrupção ainda mais sistemática e o esbulho mais ou menos legal, mas imenso, das contas públicas se tornaram instrumento político básico.

Vale para aspectos da Lava Jato, do juizado Moro, das monocracias tumultuárias do Supremo. Vale para o governo Bolsonaro e para os jacobinos reacionários e iletrados do bolsonarismo. Vale para empresários que pagam para ver qualquer reforma e cobram qualquer preço deste país de democracia periclitante.

Trata-se apenas de um esboço preliminar de descrição da crise. Como chegamos a esse ponto é assunto para outras colunas, as quais, no entanto, talvez tenham de imediato de se ocupar do risco de chegarmos a um ponto sem volta. Acontece. Nem é preciso falar de Venezuela. Há exemplos mais próximos, do Rio à Argentina.