quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O acordão de Temer com o Supremo

Saiu tudo conforme o combinado. A cinco semanas de deixar o poder, Michel Temer sancionou o aumento dos salários do Supremo. No mesmo dia, o ministro Luiz Fux revogou a própria liminar que garantia a farra do auxílio-moradia dos juízes. Foi um acordão explícito. Daqueles que só são fechados quando ninguém mais se importa em manter as aparências.

Temer chancelou o aumento dos capas-pretas para R$ 39,2 mil, além das mordomias do cargo. O Supremo prometeu compensar o gasto extra com cortes no orçamento da TV Justiça. Será uma medida cosmética. O problema está no efeito cascata do reajuste, estimado em R$ 4 bilhões por ano.


O presidente acendeu o pavio e vai deixar o palácio pela porta de emergência. A bomba explodirá no colo do sucessor. Ele dividirá a conta com os novos governadores, incluindo os que herdarão estados falidos, como Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Ao assumir o cargo, Temer pediu sacrifícios para equilibrar as contas. Seu último gesto vai na contramão do discurso de austeridade. É mais um sinal de que ele está menos preocupado com os cofres públicos do que com o próprio futuro.

Em janeiro, o presidente perderá o foro privilegiado e a blindagem negociada com os deputados. As denúncias da Procuradoria-Geral da República deverão ser remetidas à primeira instância. Um bom motivo para não negar o agrado natalino dos juízes.

Do lado do Supremo, a canetada de Fux escancarou que houve uma troca. Ao revogar o benefício que ele mesmo havia estendido aos colegas, o ministro restabeleceu o óbvio: não faz sentido o Estado pagar auxílio-moradia a juízes que têm imóvel próprio na comarca em que trabalham.

O curioso é que Fux não via problema no penduricalho até ontem. Bastou o aumento sair para que ele passasse a considerá-lo inadequado. “A Constituição é um documento vivo, em constante processo de significação e ressignificação”, justificou o ministro. Pode ser, mas certas autoridades são mais vivas do que qualquer documento.

Sem saída

Mas como se refaz um país com a Câmara e o Senado sendo o que são?
Ignácio de Loyola Brandão

Meu guri

O presidente eleito, ontem, deu uma entrevista no chamado quebra-queixo, à saída do Centro Cultural do Banco Cultural do Banco do Brasil, sede do grupo de transição. Seria para esclarecer o perfil de seu governo, mas a zona cinzenta não se dissipou. O governo Bolsonaro está indefinido não só quanto ao plano de voo, com as manobras concretas de que todos devem participar, mas principalmente na estrutura, cuja organização deve preceder o começo dos trabalhos. Falta a remodelação da Presidência da República e do Ministério da Infraestrutura, o que não é pouco. Mas apesar disso a escolha da equipe está avançada, e ela não dá à sociedade um sinal seguro sobre que rumo a nova ordem aponta.


A família Bolsonaro, nova oligarquia na política brasileira, como era previsível, começou a se desintegrar muito cedo. Carlos Bolsonaro desentendeu-se com Gustavo Bebianno e foi embora da transição, depois de ter pilotado as redes sociais durante a campanha, com sucesso. Tem mandato de vereador e o prestígio intransferível de ser filho do presidente. É claro que mesmo longe terá influência inaudita.

Eduardo Bolsonaro, que barbarizou na campanha e sofreu desmentidos em série, continua assombrando na transição ao começar uma rodada internacional de conversas, até fazendo alianças para punir Venezuela e Cuba, não se sabe com que mandato. O chanceler nem tomou posse. Se fosse na área militar, estaria preso.

Embora a lenda diga que Flávio é o mais estourado, não apareceu esse traço até agora. Mas é inegável a preponderância dessa influência familiar, afinal todos estarão na mesma ceia de Natal.

E eles não se contêm, parecem muito entrelaçados com o pai. Como não têm intimidade com a política, nem em sua história, nem adquirida, a possibilidade de errar é grande. Uma vantagem: todos tinham mandato antes de o pai chegar à Presidência, portanto têm legitimidade inquestionável, mas uma performance tosca.


A política brasileira sempre foi enredada por oligarquias. Todo presidente tem sua família, claro, não pode abandoná-la só porque chegou ao poder máximo, mas nem toda família tem condições de fazer parceria com o presidente. O chefe tem que domá-la.

E não há necessidade de ter cargos formais para os próximos. Getúlio Vargas trabalhou com a filha Alzira todo o tempo, e ela era uma assessora informal. Já Roseana Sarney teve cargo no Palácio. Os exemplos aparecem nas conversas entre os que estão perplexos com as intromissões dos filhos. Por exemplo, os irmãos Goes Monteiro, que exerceram funções diversas, de interventor a governador, de senador a chefe militar, todos tiveram os instrumentos necessários para manejar a política.

Pelo núcleo político mais próximo também não é possível perceber para onde estão indo. Bolsonaro cercou-se de pessoas que não eram líderes em seus partidos, quase tratadas com desprezo no Congresso e não têm o condão para mover opiniões, alianças e votações. Talvez o governo lhes dê força.

Onyx Lorenzoni e Gustavo Bebianno são incógnitas indecifráveis no momento. A relação do governo com o Congresso é crucial, e não se tem ideia de como ela vai acontecer sob o comando desses políticos já indicados. Cargos fundamentais para essas relações são os de líder do governo no Senado e na Câmara, que ainda não foram mencionados.

Ou a relação com o congresso está sendo articulada secretamente, ou não se sabe ainda o que fazer sem o presidencialismo de coalizão.

A Casa Civil tem que ser forte em um governo como esse. Não se tem ideia de como formar consensos. Por exemplo: os políticos de quem Bolsonaro se cercou até agora são todos contra a reforma da Previdência, ponto crucial de um programa de governo, hoje: Onyx, major Olímpio, coronéis, generais, sargentos, nunca quiseram a reforma. Só se vai ver com mais nitidez esse quadro quando começarem a operar de fato.

O grupo da Economia, sob o comando de Paulo Guedes, é homogêneo. Mas por ele também não dá para adivinhar o rumo do governo. Guedes vem de formação em Chicago, junto com a maioria de sua equipe. Sergio Moro, o poderoso ministro da Justiça e grande conquista do presidente eleito, vem de Harvard. A universidade que fez a formação de Moro é um centro de inteligência aberto, múltiplo, a mais glamourosa instituição dos Estados Unidos. Chicago cristalizou na universidade os princípios da economia conservadora. Quem vai inspirar o presidente?

O Itamaraty e o Ministério da Educação fazem parte daquele nicho, que também sempre existe, de amigos dos amigos, no caso dos amigos do guru presidencial Olavo de Carvalho. Uma dupla de direita, rígida, que também só com esse traço não aponta o que vai ser a nova gestão. Do filósofo Olavo Carvalho, que os apadrinhou, não se pode esperar muito porque ele não fornece ao espectador uma unidade de pensamento.

Percebe-se no novo governo uma República de Juiz de Fora, cidade que forneceu boa parte da equipe dos assessores e ministros militares. Curioso como Juiz de Fora virou marca indelével na vida política do presidente eleito. Porém isso, por si, não quer dizer muito.

Os numerosos militares de alta patente que assumirão cargos de relevância têm traços em comum. Alguns foram assessores militares no Congresso, onde se aproximaram de Bolsonaro como de muitos outros políticos. Os militares sempre fizeram sólida ponte com o Congresso, são aplicados, seguem a tramitação de projetos de seu interesse com grande disciplina. Parlamentares lhes têm estima. São organizados e cumprem rigorosamente a missão que lhes foi dada. São os melhores assessores parlamentares do governo que circulam pelos salões verde e azul.

Quem não teve essa escola, entre os militares do governo Bolsonaro, também tem comportamento ameno e senso de dever e submissão ao chefe presidente. Esse temperamento em comum lhes dá unidade. A ver como funciona quando começarem a operar. Até agora foi o grupo mais bem arranjado do novo governo, desmentindo os abalos esperados.

E a indefinição na comunicação é séria. Não dá para governar por desmentidos no Twitter, nem por anúncios de planos e nomeações pela rede. Aconselharam o presidente sobre a desnecessidade de ter uma comunicação profissional com os que fazem comunicação. Bolsonaro tem falado mais além do Twitter, mas não basta, é preciso ter no governo quem cuide disso. Para a mídia não tem problema, é fácil acompanhar o patriarca pelos seus manifestos, estejam onde estiverem. Para a sociedade é desinformação e risco de perda precoce de popularidade do eleito.

Gente fora do mapa


Lições para Educação do país em que pedreiros estudam por até 4 anos

Adriane Gischig foi à Suíça há 18 anos, levada pela paixão. No Brasil, ela cursava o quinto semestre da faculdade de Direito e planejava transferir os estudos para a Universidade de Basileia para ficar próxima do namorado. Os créditos já cursados, porém, não foram reconhecidos e a paulista se viu em uma encruzilhada: recomeçar a faculdade do zero ou buscar uma nova carreira. Precisando conquistar sua independência financeira logo, ela optou por fazer a chamada "formação de aprendizagem", mais curta, com três anos de duração, e entrar no mercado de trabalho.


Entre aulas de alemão, tubos de ensaio e microscópios, ela se reinventou como assistente de laboratório. O treinamento vocacional exigiu que ela trabalhasse e estudasse ao mesmo tempo, sob a tutela do sistema educacional público e do empregador, uma multinacional farmacêutica.

Durante a formação, recebia um salário mensal de cerca de mil francos suíços (o equivalente a R$ 4,3 mil). Ao concluir, foi efetivada com ganhos na faixa de cinco mil francos suíços (R$ 21,5 mil).

"Aqui na Suíça, se você fizer um curso técnico e se empregar, você ganha muito bem em comparação com o Brasil. Não precisa ser pós-graduado ou ter mestrado para viver com conforto", diz.

A casa com jardim, o carro e a possibilidade de viajar nas férias com os dois filhos são fatores de qualidade de vida que ela conquistou inicialmente com a formação de aprendizagem e depois com aperfeiçoamento.

Após trabalhar como assistente de laboratório por mais de três anos, Adriane decidiu fazer um novo estudo. Com mais quatro anos e meio de dedicação, ela conseguiu se formar na Escola Superior de Administração. Ao longo desse tempo, avançou na empresa, passando a agente de compras até chegar no departamento de finanças, onde já está há seis anos.

"Os suíços não têm preconceito se um profissional não tem faculdade. Isso só existe no Brasil. Não existe discriminação justamente porque aqui todo mundo vive bem, independentemente de como você se formou", diz, sem lamentar o sonho abdicado de se tornar advogada e reafirmando que não se arrepende de trocar a universidade pelo aprendizado técnico.

"No Brasil, tenho vários amigos e colegas formados em Direito que não trabalham na área ou estão desempregados", pondera.

Na Suíça o sistema de formação de aprendizagem é amplamente estimulado, e cerca de dois terços dos estudantes optam por esse caminho, que se segue aos 11 anos de ensino compulsório, começando no jardim de infância, passando pela escola fundamental até a intermediária.

Mais de 250 profissões estão disponíveis por meio desse sistema de aprendizado, que propicia contato desde cedo com o mercado de trabalho. O tempo de formação depende da carreira escolhida, mas o mínimo é de dois anos, podendo chegar a quatro.

Pelo sistema de formação de aprendizagem são ensinadas ocupações como padeiro, açougueiro, cozinheiro, vendedor, operador de máquina, enfermeira, pintor, cabeleireiro, bombeiro e outros postos práticos.

A formação profissionalizante serve não só como porta de entrada para o mercado de trabalho, como também é base para uma educação contínua que pode se estender pela vida toda.

As aulas são intercaladas com treinamento praticado em construtoras, supermercados, restaurantes, lojas, hospitais, laboratórios e fábricas. As empresas que no futuro contratarão esses profissionais dividem com os governos local e nacional a responsabilidade pela implementação do currículo que foca em habilidades práticas. 

Os que concluem com sucesso recebem, normalmente, uma oferta de emprego da companhia onde treinaram e um diploma com validade nacional, o que os permite ter acesso a novos cursos, avançando na especialização da área que escolheram.

Se depois de formados os aprendizes quiserem mudar de profissão e seguir para um instituto superior politécnico ou ir à universidade, é possível, mas é necessário fazer um rigoroso estudo complementar de transição.

Os empregos de base que estão acessíveis por meio de aprendizagem despertam grande interesse porque garantem uma boa renda. Na média, esses profissionais recebem por mês algo entre R$ 21.500 e R$ 25.850 (de 5 mil a 6 mil francos suíços).

Um pedreiro, por exemplo, ganha por mês na Suíça, em média, 5,5 mil francos (R$ 24 mil), um marceneiro, 5,1 mil francos (R$ 22,2 mil) e um mecânico, 5,8 mil (R$ 24,9 mil). Nessas mesmas profissões, a média salarial no Brasil é de R$ 1.640 para pedreiros, R$ 1.550 para marceneiros e R$ 1.530 para mecânicos de automóveis.

O curso básico de aprendizagem de formação para pedreiro, marceneiro e mecânico dura dois anos na Suíça. É possível também estudar por três a quatro anos e receber uma qualificação avançada nessas profissões, o que garante um salário ainda maior.

O fato de os estudantes já estarem inseridos ativamente na economia faz com que a taxa de desemprego entre a população jovem da Suíça seja de apenas 4%. Além disso, a evasão escolar é baixa, pois mais de 90% dos inscritos conseguem concluir com sucesso o programa.

Stefan Wolter, professor de economia na universidade de Berna dedicado ao tema da Educação, alerta que o excesso de pessoas com formação superior leva não apenas ao desemprego, mas também deprecia o salário dos que estão ativos no mercado.

Wolter desaconselha jovens com perfil acadêmico fraco a buscarem obter um diploma universitário a qualquer custo, recorrendo a universidades pagas e sem credibilidade.

"Nos Estados Unidos há pesquisas que mostraram que essas faculdades que só querem lucrar causam um impacto negativo. Lá, na média para cada ano a mais que você estuda, você ganha entre 8% e 10% a mais de salário. Mas se você for para uma universidade sem prestígio, o impacto será negativo mesmo assim. Você acabará acumulando dívidas do financiamento educacional", alerta.

O especialista destaca que a realidade da Suíça é bem diferente da do Brasil, em que há muito poucas alternativas à universidade para o jovem que quer continuar a estudar, em busca de aprimoramento e melhores salários.

"No Brasil, a alternativa que se tem a ir à universidade é zero. Você não recebe nenhuma educação decente se não for à universidade", diz.

O economista argumenta que os brasileiros menos qualificados, que muitas vezes acumulam anos de déficit de aprendizagem ao longo da educação básica, acabam se formando com notas sofríveis em instituições ruins e não conseguem se posicionar na sua profissão em um mercado de trabalho já saturado e muito competitivo. Para esses, teria sido melhor fazer um treinamento vocacional. "É um desperdício de capital humano", lamenta Wolter.

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Consumo, poderoso chefão

A cultura e a política se converteram em artigos de consumo. Os presidentes são eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis mais heróis que os banqueiros.
A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que é a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e fome não pertencem a história, mas a natureza, e a justiça e a liberdade foram condenadas a odiar-se entre si
Eduardo Galeano

Como governar para os pobres?

Numa pesquisa eleitoral do Ibope em outubro, apenas 37% dos entrevistados apontaram Bolsonaro como defendendo os interesses dos mais pobres em comparação a Haddad. 65% viam-no como defensor dos mais ricos. E, mesmo assim, ele levou a maioria dos votos válidos. Houve pobre votando em um candidato que ele próprio via como defensor dos ricos.

Infelizmente, como revela o relatório da Oxfam publicado ontem ("País estagnado —um retrato das desigualdades brasileiras"), o foco na pobreza e suas mazelas está mais urgente. A desigualdade estagnou basicamente desde o início da crise em 2014, e a pobreza subiu acentuadamente.


O relatório reconhece que a grande culpada é a crise econômica. De maneira geral, todos perderam; mas os mais pobres sofrem muito mais. O outro vilão apontado é o teto de gastos aprovado pelo governo Temer.

Se vivemos, desde 2016, uma lenta recuperação econômica, com a queda paulatina do desemprego, isso se deve ao próprio teto de gastos, que deu um sinal real de comprometimento do Estado com o ajuste fiscal. Mas é só uma promessa; cumpri-la significará passar a reforma da Previdência.

Deixar o Estado quebrar seria o pior cenário possível, inviabilizando qualquer investimento social.

Querer que o Brasil abandone o teto de gastos agora é miopia. É justamente o teto que coloca em evidência a realidade fundamental do orçamento público: para gastar mais de um lado, é preciso gastar menos do outro. O Brasil precisa sim de mais gasto social; e por isso mesmo o Estado brasileiro terá que cortar outros tipos de gasto.

Se, além do ajuste fiscal, a equipe econômica do novo governo conseguir implementar reformas liberalizantes na nossa economia (privatizações, desregulamentação, desburocratização, integração à economia global), viveremos um ciclo de crescimento e investimentos que beneficiarão toda a população.

A pobreza no Brasil reduzirá de forma expressiva no longo prazo. O livre mercado, no entanto, não dá conta de tudo: há milhões de pessoas que demandam assistência hoje e continuarão demandando; se nada for feito, no longo prazo estarão mortas.

Atender aos mais pobres e reduzir a desigualdade passa por termos uma economia mais livre e um Estado mais eficiente. Mas não para por aí.

Precisaremos de medidas para garantir que uma fatia maior dos ganhos do crescimento vá para quem mais precisa. Isso passa por pelo menos duas condições: a primeira é uma reforma tributária que, mantendo fixa a carga total (reduzi-la agora é impossível, e aumentá-la é suicídio), aumente os impostos dos indivíduos mais ricos ao mesmo tempo em que reduz a carga sobre os pobres e as empresas.

Em segundo lugar, a capacidade dos mais pobres de auferir os benefícios da modernização econômica do país dependerá da qualidade de sua educação, que hoje é sofrível. Superada a emergência do ajuste fiscal e aprovadas medidas para liberalizar nossa economia, o Estado estará pronto para focar em mais uma grande lacuna social de nossa história: a educação básica.

É quase utópico esperar do governo Bolsonaro algum comprometimento com a reforma do ensino (para além das nocivas bandeiras ideológicas) e com uma reforma tributária que cobre mais dos mais ricos e alivie as costas dos mais pobres. Apesar dessa percepção de ser o presidente dos ricos, o fato é que recebeu o voto de confiança de muitos pobres. A partir do ano que vem, mostrará se trai ou não essa confiança.
Joel Pinheiro da Fonseca

Modelito Brasil


Alheia às urnas, Brasília vive a fase do oba-oba

Se as eleições de outubro demonstraram alguma coisa foi que o brasileiro cansou de ser um figurante, do tipo que apenas compunha o fundo contra o qual se cumpria o destino trágico da nação. As urnas informaram que foi extinto aquele Brasil especial em que políticos e autoridades se sentiam a salvo, imaginando que não deviam nada ao Brasil comum, muito menos explicações. A despeito da clareza, a mensagem parece ter sido compreendida com o sinal trocado. Inaugurou-se em Brasília a fase do oba-oba.

Sob essa atmosfera de oba-oba, extinguiu-se a noção de certo e errado. Nesse ambiente, Michel Temer, um colecionador de processos criminais, sente-se à vontade para conceder à cúpula do Judiciário um reajuste salarial que se irradiará por toda a administração pública, chegando ao contracheque dos juízes de primeira instância, que o julgarão quando ele deixar o Planalto. E o Supremo, em troca do aumento, interrompe a imoralidade do auxílio-moradia pago a juízes com teto.


Todos sabem que essa modalidade suprema de toma-lá-dá-cá não compensará o efeito cascata, já orçado em pelo menos R$ 4 bilhões. Mas o clima de oba-oba transforma em chato quem fica lembrando que o orçamento de 2019 carrega um rombo de R$ 139 bilhões. Além disso, Temer está ocupado demais para se preocupar com cifras. Enquanto faz as malas e verifica se haverá sol e praia no dia 1º de janeiro, Temer comanda um lobby para que o Supremo restabeleça nesta quarta-feira o indulto para corruptos, com perdão de 80% das penas.

Simultaneamente, políticos encrencados na Lava Jato aproveitam o ritmo de oba-oba para tentar emplacar no Congresso um projeto que o multiprocessado Renan Calheiros colocou para andar no ano passado. Prevê a suavização de penas e a antecipação da liberdade de presos, inclusive os que foram condenados por corrupção. O eleitor que manifestou na urna sua contrariedade contra tudo isso que está aí olha de longe e fica em dúvida. Já não sabe se vive num país que dá jeito para tudo ou numa nação que não tem jeito.

Bolsonaro no apocalipse estatal

A esquerda dizia que o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) era “neoliberal”. A esquerda, petistas inclusive, dizia até que o primeiro governo de Lula da Silva (2003-2006) se rendera ao “neoliberalismo”. Que nome vai dar ao projeto de governo da economia de Jair Bolsonaro? Sim, projeto, pois sabe-se lá o que vai Paulo Guedes “entregar”, como diz o anglicismo horrível dos mercadistas.

Guedes levou para o governo seus companheiros de escola, mercado, conselhos empresariais e dos institutos Liberal e Millenium, as bestas do apocalipse, aliadas do Satanás da conspiração liberal globalizada, segundo a demonologia de esquerda.

Desde que há um Estado com derramamentos importantes pela economia (isto é, depois de Getúlio Vargas), não houve no governo do Brasil equipe liberal como esta de Guedes. Relaxando as dificuldades de comparação, mesmo quando o Estado era uma merreca, sob o governo dos fazendeiros de Império e República Velha, jamais houve essa unanimidade liberal radical.


Sim, ainda é projeto, é ambição, restritos desde o início porque a Casa Militar e o velho espírito de Bolsonaro acham que o “Petróleo é Nosso” e que bancos públicos têm funções sociais e estratégicas. Sabe-se lá o que Jair Bolsonaro vai pensar desse projeto, se e quanto dele for implementado, se e quando compreendê-lo, se ou quando houver revolta antiliberal (de servidores a industriais, passando por políticos e o povo das aposentadorias).

Assim como a esquerda não tem nome para a coisa, Bolsonaro não sabe e, aparentemente, não quer saber do sentido e do tamanho da coisa. Gosta mesmo é de cruzadas, para as quais nomeou essas pessoas que vão comandar Itamaraty e Educação, as quais também mal conhece, no entanto.

O presidente eleito converteu-se a alguma ideia vaga liberal em algum momento do governo Dilma Rousseff, uma história que ainda se está a apurar. Conheceu Guedes de fato apenas no ano passado.

Jamais teve ligação com grupos organizados da elite econômica, menos ainda de grupos de estudo ou de pensamento da elite econômica, liberais ou outros. A julgar pela sua incompreensão quase total do que seja um Banco Central, do que se passa com a dívida pública ou o que são estatísticas econômicas, deve ter remota ideia das consequências do que propõe Guedes, se alguma.

No entanto, não parece dar a mínima para isso, como ficou evidente desde que encaminhou todas as questões de programa a Paulo Guedes durante a campanha. Apenas calou seu economista-chefe quando a conversa econômica baixava às redes sociais como polêmica (o caso da CPMF, por exemplo). Como vai ser se houver mais furor nas redes insociáveis?

Também relevante, Bolsonaro não se importa ou faz questão de ser um estranho no ninho da imensa equipe econômica. O presidente eleito arrendou a economia a Guedes e o insulou do restante do governo ou, melhor dizendo, do seu núcleo palaciano, sob controle maior dos generais, seus amigos de escola, irmãos mais velhos, conselheiros maiores.

É neles, nos oficiais-generais, que Bolsonaro confia a fundo, com eles compartilha mentalidade e camaradagem, faz mais de 40 anos. São eles que vão coordenar seu governo, formal ou informalmente. No limite, Guedes e seus colegas de mercado são fusíveis que podem queimar. Os militares são a estação de força.

Era tudo mentira

As informações na reportagem "Palocci acusa Lula de interferir em fundos de pensão", de Ricardo Brandt, publicada na página A10 do Estado de domingo passado, são fundamentais para que se conheça em toda a extensão a que ponto chegou o planejamento do Partido dos Trabalhadores (PT) para executar a maior rapina dos cofres públicos da nossa História.

Nela o repórter reproduziu o depoimento completo, lógico, bem encadeado e muito verossímil dado em delação premiada pelo ex-ministro da Fazenda da primeira gestão petista na Presidência da República e ex-chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff à Polícia Federal (PF) em Curitiba, onde cumpre pena, da qual pede redução. Não chega mais a espantar ninguém, pois as notícias de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão já contaram em detalhes como os desgovernos da República entre 2002 e 2016 saquearam com volúpia, método, determinação e cinismo todos os cofres disponíveis do erário. Mas esclarece como foi possível realizar essa empreitada hercúlea e ambiciosa.

Segundo o relato, o ensaio geral do acabamento da ficção de terror e mistificação política e econômica começou com a criação, em dezembro de 2010, da empresa Sete Brasil, com o objetivo de contratar a construção dos navios-sonda de estaleiros. No depoimento ficou claro que o pretexto do investimento de dinheiro público na tal firma, segundo o qual serviria para garantir o apoio à indústria nacional e defender a autonomia do País, libertando-o da dependência de fornecedores estrangeiros, não passava de balela. Conforme Palocci, o que se queria desse dinheiro não era empregá-lo num objetivo teoricamente nacionalista e patriótico, mas apenas abastecer as campanhas políticas do PT com recursos desviados de contratos firmados entre a Petrobrás, estatal inteiramente aparelhada pela “companheirada”, e empreiteiras dispostas a se associarem no negócio sujo. O esquema foi treinado com diligência, como um curso prático a ser aplicado no Estado inteiro.

Os fundos de pensão – instrumento de poupança usado no sistema capitalista para substituir com mais eficiência e sustentabilidade os métodos da previdência social, que garante a sobrevivência de executivos e trabalhadores quando se aposentam – serviram como uma luva a interesses ladinos de larápios petistas. Afinal, eles lidam com quantias bilionárias e são geridos num sistema partilhado por representantes do poder público, dos sindicatos e dos funcionários a serem beneficiados com seu usufruto. Com a parceria de sindicatos dominantes nas estatais, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), e militantes estrategicamente distribuídos em tais empresas, o PT tinha a faca e o queijo na mão.

“Segundo Palocci, Lula e Dilma teriam determinado indevidamente a cinco ex-dirigentes dos fundos de pensão do Banco do Brasil (Previ), da Caixa Econômica Federal (Funcef) e da Petrobrás (Petros), indicados aos cargos pelo PT, que capitalizassem o ‘projeto sondas’. A operação financeira, que resultou na criação da Sete Brasil, em 2010, buscava viabilizar a construção no Brasil dos navios-sonda – embarcações que perfuram os poços de petróleo – para a Petrobrás explorar o pré-sal. A estatal anunciara em 2008 que precisaria de 40 equipamentos – no mundo, existiam menos de 100. ‘Dentro desse investimento, tinha todo ilícito possível’, afirmou o ex-ministro, em depoimento à PF”, de acordo com Brandt. Os dirigentes citados são Sérgio Rosa e Ricardo Flores, da Previ, Guilherme Lacerda, do Funcef, e Wagner Pinheiro e Luís Carlos Afonso, da Petros.

Isso tudo é pra lá de repugnante. Afinal, o furto dilapidava a poupança de trabalhadores, cujo nome o PT usa. E a corrupção descarada só não arruinou os fundos de pensão citados porque dinheiro limpo dos contribuintes e dos próprios beneficiários os estão salvando. E a bancarrota do Postalis mostra que não são únicos.

Palocci revelou aos investigadores que “o PT ocupou os comandos da Previ, Funcef e Petros desde o início do governo Lula, em 2003. O ex-ministro das Comunicações Luiz Gushiken (que morreu em 2013) era o principal responsável pela área. Palocci diz que foi padrinho político de Sérgio Rosa e Wagner Pinheiro e que o ex-ministro José Dirceu indicou Guilherme Lacerda – todos com aval de Gushiken”.

José Dirceu, condenado solto por benemerência do trio “Solta o Chapa” do STF – Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli –, pode argumentar que o antigo rival no comando do primeiro desgoverno Lula não tem como comprovar as acusações. Mas Brandt já avisou que Palocci deu o roteiro para a PF encontrar as tais provas. E a simples menção a Dirceu na narrativa já deveria bastar para o plenário do STF revogar a decisão que o liberou até do uso de tornozeleiras eletrônicas.

O ex-presidente do STF Ricardo Lewandowski tem mais ainda a explicar depois desse relato dos prolegômenos da rapina. Gushiken, ex-dirigente sindical bancário em São Paulo e responsável pelos fundos no latifúndio do PT, foi absolvido post mortem com pompa e misericórdia no julgamento da AP 470, vulgo mensalão, no STF. O revisor do processo, Lewandowski, fez um elogio fúnebre hagiográfico sobre o ora citado por Palocci, como se, mais que monge budista, que ele fingia ser, fosse um santo.

É útil lembrar que em 2009 a revista Piauí publicou Sérgio Rosa e o mundo dos fundos, de Consuelo Dieguez. Lá está escrito: “Bolchevique de cabo a rabo na juventude, o presidente da Previ administra um caixa de 121 bilhões de reais e, segundo o sociólogo Francisco de Oliveira, é representante de uma nova classe”. Nos fundos de pensão foi usado o método descrito por Lenin no artigo Todo o poder aos sovietes, no Pravda, em 18 de julho de 1917.

É hora de cobrar a conta: investigar os beneficiados pelo PT com dinheiro dos fundos de pensão e fazer acareação de Palocci com seus dirigentes.