sexta-feira, 19 de abril de 2024
Atacar crime organizado é estratégico
A relação do crime organizado com o Estado brasileiro se tornou um tema estratégico para o presente e o futuro do país. A prisão dos mandantes da morte de Marielle, a fuga de dois membros do Comando Vermelho de presídio federal de segurança máxima e a investigação sobre os tentáculos do PCC na administração pública em São Paulo revelam que as facções criminosas só são fortes porque seu negócio, o crime, está cada vez mais interligado com ação ou inação do aparelho estatal. Essa deveria ser a agenda prioritária da segurança pública do país, em vez de projetos aporofóbicos e sem embasamento em evidências, como a “Lei da Saidinha” e a PEC sobre as drogas.
É estarrecedor como os políticos e parcela da sociedade compraram um modelo demagógico para combater a criminalidade e a sensação crescente de insegurança. Há uma miopia enorme que gera decisões que, ao fim e ao cabo, somente vão fortalecer o crime organizado. Fim da “saidinha” e criminalização da posse e porte de drogas em qualquer quantidade terão como principal resultado o crescimento da população prisional, especialmente de pessoas pobres e negras. Isso só fortalece ainda mais as facções criminosas, que precisam de um exército de gente sem direitos nem esperança, produzindo assim uma máquina do crime cada vez mais poderosa.
O foco não deveria ser leis penais mais rígidas desenhadas para atingir basicamente os mais pobres. Da classe média para cima ninguém será preso por porte de drogas. Basta visitar as festas de jovens abastados ou da alta sociedade paulistana, carioca ou brasiliense para saber como o ilícito usado por seus participantes é invisível para as forças policiais. Assim, a descriminalização mais importante a ser discutida no país é a da pobreza.
Tampouco o endurecimento da ação policial resolverá a questão da criminalidade. A polícia paulista matou a torto e a direito a população vulnerável da Baixada Santista, e o PCC continua exportando suas drogas pelo porto de Santos. A política do “bandido bom é bandido morto” defendida pelo secretário Derrite não reduziu os crimes contra o patrimônio que ocorrem em São Paulo, que cresceram até no icônico bairro de Higienópolis. Há clamores morais em prol do punitivismo e da mão forte - muitas vezes ilegal - das polícias. Mas, ao final, produz-se incompetência em acabar com as raízes da criminalidade e imoralidade de ampliar o fosso da desigualdade.
Estrategicamente, só há uma saída para reduzir o peso da criminalidade sobre a sociedade brasileira: criar um projeto estrutural e de longo prazo para combater o crime organizado, que é capaz de afetar negativamente, e de forma ampla, o exercício da cidadania, a qualidade da democracia e o desenvolvimento econômico sustentável do país. Tudo isso acontece porque o Estado foi atingido em cheio por esse fenômeno.
Há duas formas de intromissão do crime organizado na atividade estatal: enfraquecendo as políticas públicas e gerando um relacionamento promíscuo com a política. Atuando nos dois campos, as facções criminosas reduzem a capacidade governamental de enfrentá-las. De um lado, amedrontando ou aliciando pessoas para servir ou comprar serviços de suas organizações e, de outro, corrompendo policiais e políticos para garantir salvo-conduto na prática diária de seus crimes.
Mais especificamente, o crime organizado afeta as políticas públicas de quatro modos. O primeiro é interferindo na provisão de serviços básicos à população, como fazem as milícias no Rio de Janeiro, prática que está se expandindo para várias partes do país. Em determinados territórios, o Estado e/ou concessionárias estão perdendo a batalha para as facções. Esses grupos mafiosos amedrontam a população para que ela seja obrigada a gastar boa parte de sua renda para pagar fornecedores ilegais de internet, água, gás, energia elétrica e tudo o que for possível de extorquir dos mais pobres. Cidadãos de áreas periféricas têm seus direitos vilipendiados sem que nenhuma força republicana consiga estancar essa enorme violência.
O segundo modo realiza-se pelo fortalecimento de atividades econômicas ilícitas para alavancar mais riqueza e, sobretudo, lavar dinheiro. O crime organizado é uma máquina de fazer negócios ilegais travestidos de legalidade. Mais uma vez as políticas públicas estão perdendo a batalha. Neste caso, estão sendo ineficazes para garantir e estimular o crescimento das empresas e do empreendedorismo sobre bases concorrenciais justas. O quanto o crime organizado está infiltrado do pequeno ao grande negócio no Brasil? Ninguém sabe o tamanho exato, mas quando facções dominam empresas de ônibus que ganham bilhões de subsídios da Prefeitura de São Paulo ou então se expandem em diversas atividades econômicas do mundo virtual, o sinal é assustador para o capitalismo brasileiro.
As políticas públicas têm um terceiro front de fragilidade frente ao crime organizado: a questão socioambiental. O Brasil tem nesse tema um dos seus ativos econômicos e geopolíticos mais importantes. Porém, atividades ilícitas extremamente violentas, como o tráfico de drogas, o garimpo ilegal e o desmatamento, são um empecilho gigantesco, se não o maior, a uma boa política ambiental. Mas não é só a natureza que sofre aqui. A população desses locais degradados por facções criminosas é refém de uma lógica equivocada de desenvolvimento, e enquanto o crime organizado dominar o pedaço, dificilmente haverá apoio a modelos mais sustentáveis.
O ciclo de impactos do crime organizado nas políticas públicas completa-se com um quarto elemento, o mais diretamente ligado a esse processo. As facções são o principal veículo da violência e insegurança que assolam o Brasil. Há crimes individualizados ou cometidos por pequenos grupos autônomos, mas isso é bem residual no conjunto do fenômeno. Obviamente que a organização cada vez mais efetiva dessas máfias, sua capacidade em adquirir armas e usá-las, a força que têm nas prisões, além dos negócios cada vez mais rentáveis, são aspectos que ampliam o seu poder.
Esse poderio, no entanto, só foi consolidado porque parcela das forças policiais foi conquistada pela corrupção. Assim, é cada vez mais difícil, em certos territórios, saber quem é polícia e quem é bandido, para lembrar da dicotomia básica que aprendi na rua quando cresci na periferia de São Paulo. Vale reforçar que policiais não só são comprados, como também estabelecem “tributos” para pagamento dos criminosos - o “arrego” no Rio de Janeiro e a “recolha” em São Paulo.
O impacto sobre as políticas públicas ampliou-se demais nos últimos anos por uma razão mais perversa: a entrada do crime organizado na política brasileira. Os recentes episódios envolvendo a morte de Marielle e as prisões de empresários e políticos envolvidos com o PCC mostram que essa temática poderá ter nos próximos anos o mesmo lugar central na agenda pública que teve a Operação Lava-Jato na década passada. Mesmo tendo cometido uma série de erros e ilegalidades, todas para favorecer politicamente agentes do sistema de Justiça, a Lava-Jato teve como maior legado a mudança na forma de financiamento eleitoral baseada nas trocas de dinheiro privado por benefícios públicos.
Há um novo cenário hoje: o crime organizado, junto com o golpismo de lideranças bolsonaristas, constitui um grande risco à democracia brasileira. No início, esse fenômeno se circunscrevia a algumas elites políticas locais e estaduais, especialmente no Rio de Janeiro, onde políticos apoiaram as milícias em nome da ordem - gente do bolsonarismo faz parte dessa história. A capacidade de se infiltrar na política cresceu vertiginosamente nos últimos anos, inclusive substituindo com dinheiro ilícito parte do financiamento privado que a classe política detinha no passado.
Vencer o crime organizado vai exigir um grande esforço nacional, um dos maiores de nossa história. Tal como ocorreu na maior frente ampla da política brasileira, que há 40 anos, completados nesta semana, organizou a campanha das Diretas Já para acabar com a ditadura militar. Líderes sociais, empresariais, religiosos e políticos vão ter de atuar conjuntamente e publicamente gritar contra o crime organizado. Para tanto, será necessário mudar estruturalmente a política de segurança pública, o que só será possível implementando efetivamente, e não com medidas fragmentadas e esporádicas, o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, um modelo que pode integrar o governo federal aos estados por meio de pactos institucionalizados e de longo prazo.
Como lembra Renato Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a profissionalização e a adoção de modelos de gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso. Por essa linha, abandona-se o discurso demagógico que tem alimentado a discussão no Congresso Nacional. A saída para combater o crime organizado não é acabar com a “saidinha”, mas sim, um pacto amplo em torno de um SUSP efetivo. A pergunta incômoda é saber se a sociedade, policiais e políticos estão preparados para assumir essa bandeira. O medo maior é que parte do problema esteja no fato de que haja mais gente importante ligada às facções criminosas do que imaginaríamos nos nossos piores sonhos.
É estarrecedor como os políticos e parcela da sociedade compraram um modelo demagógico para combater a criminalidade e a sensação crescente de insegurança. Há uma miopia enorme que gera decisões que, ao fim e ao cabo, somente vão fortalecer o crime organizado. Fim da “saidinha” e criminalização da posse e porte de drogas em qualquer quantidade terão como principal resultado o crescimento da população prisional, especialmente de pessoas pobres e negras. Isso só fortalece ainda mais as facções criminosas, que precisam de um exército de gente sem direitos nem esperança, produzindo assim uma máquina do crime cada vez mais poderosa.
O foco não deveria ser leis penais mais rígidas desenhadas para atingir basicamente os mais pobres. Da classe média para cima ninguém será preso por porte de drogas. Basta visitar as festas de jovens abastados ou da alta sociedade paulistana, carioca ou brasiliense para saber como o ilícito usado por seus participantes é invisível para as forças policiais. Assim, a descriminalização mais importante a ser discutida no país é a da pobreza.
Tampouco o endurecimento da ação policial resolverá a questão da criminalidade. A polícia paulista matou a torto e a direito a população vulnerável da Baixada Santista, e o PCC continua exportando suas drogas pelo porto de Santos. A política do “bandido bom é bandido morto” defendida pelo secretário Derrite não reduziu os crimes contra o patrimônio que ocorrem em São Paulo, que cresceram até no icônico bairro de Higienópolis. Há clamores morais em prol do punitivismo e da mão forte - muitas vezes ilegal - das polícias. Mas, ao final, produz-se incompetência em acabar com as raízes da criminalidade e imoralidade de ampliar o fosso da desigualdade.
Estrategicamente, só há uma saída para reduzir o peso da criminalidade sobre a sociedade brasileira: criar um projeto estrutural e de longo prazo para combater o crime organizado, que é capaz de afetar negativamente, e de forma ampla, o exercício da cidadania, a qualidade da democracia e o desenvolvimento econômico sustentável do país. Tudo isso acontece porque o Estado foi atingido em cheio por esse fenômeno.
Há duas formas de intromissão do crime organizado na atividade estatal: enfraquecendo as políticas públicas e gerando um relacionamento promíscuo com a política. Atuando nos dois campos, as facções criminosas reduzem a capacidade governamental de enfrentá-las. De um lado, amedrontando ou aliciando pessoas para servir ou comprar serviços de suas organizações e, de outro, corrompendo policiais e políticos para garantir salvo-conduto na prática diária de seus crimes.
Mais especificamente, o crime organizado afeta as políticas públicas de quatro modos. O primeiro é interferindo na provisão de serviços básicos à população, como fazem as milícias no Rio de Janeiro, prática que está se expandindo para várias partes do país. Em determinados territórios, o Estado e/ou concessionárias estão perdendo a batalha para as facções. Esses grupos mafiosos amedrontam a população para que ela seja obrigada a gastar boa parte de sua renda para pagar fornecedores ilegais de internet, água, gás, energia elétrica e tudo o que for possível de extorquir dos mais pobres. Cidadãos de áreas periféricas têm seus direitos vilipendiados sem que nenhuma força republicana consiga estancar essa enorme violência.
O segundo modo realiza-se pelo fortalecimento de atividades econômicas ilícitas para alavancar mais riqueza e, sobretudo, lavar dinheiro. O crime organizado é uma máquina de fazer negócios ilegais travestidos de legalidade. Mais uma vez as políticas públicas estão perdendo a batalha. Neste caso, estão sendo ineficazes para garantir e estimular o crescimento das empresas e do empreendedorismo sobre bases concorrenciais justas. O quanto o crime organizado está infiltrado do pequeno ao grande negócio no Brasil? Ninguém sabe o tamanho exato, mas quando facções dominam empresas de ônibus que ganham bilhões de subsídios da Prefeitura de São Paulo ou então se expandem em diversas atividades econômicas do mundo virtual, o sinal é assustador para o capitalismo brasileiro.
As políticas públicas têm um terceiro front de fragilidade frente ao crime organizado: a questão socioambiental. O Brasil tem nesse tema um dos seus ativos econômicos e geopolíticos mais importantes. Porém, atividades ilícitas extremamente violentas, como o tráfico de drogas, o garimpo ilegal e o desmatamento, são um empecilho gigantesco, se não o maior, a uma boa política ambiental. Mas não é só a natureza que sofre aqui. A população desses locais degradados por facções criminosas é refém de uma lógica equivocada de desenvolvimento, e enquanto o crime organizado dominar o pedaço, dificilmente haverá apoio a modelos mais sustentáveis.
O ciclo de impactos do crime organizado nas políticas públicas completa-se com um quarto elemento, o mais diretamente ligado a esse processo. As facções são o principal veículo da violência e insegurança que assolam o Brasil. Há crimes individualizados ou cometidos por pequenos grupos autônomos, mas isso é bem residual no conjunto do fenômeno. Obviamente que a organização cada vez mais efetiva dessas máfias, sua capacidade em adquirir armas e usá-las, a força que têm nas prisões, além dos negócios cada vez mais rentáveis, são aspectos que ampliam o seu poder.
Esse poderio, no entanto, só foi consolidado porque parcela das forças policiais foi conquistada pela corrupção. Assim, é cada vez mais difícil, em certos territórios, saber quem é polícia e quem é bandido, para lembrar da dicotomia básica que aprendi na rua quando cresci na periferia de São Paulo. Vale reforçar que policiais não só são comprados, como também estabelecem “tributos” para pagamento dos criminosos - o “arrego” no Rio de Janeiro e a “recolha” em São Paulo.
O impacto sobre as políticas públicas ampliou-se demais nos últimos anos por uma razão mais perversa: a entrada do crime organizado na política brasileira. Os recentes episódios envolvendo a morte de Marielle e as prisões de empresários e políticos envolvidos com o PCC mostram que essa temática poderá ter nos próximos anos o mesmo lugar central na agenda pública que teve a Operação Lava-Jato na década passada. Mesmo tendo cometido uma série de erros e ilegalidades, todas para favorecer politicamente agentes do sistema de Justiça, a Lava-Jato teve como maior legado a mudança na forma de financiamento eleitoral baseada nas trocas de dinheiro privado por benefícios públicos.
Há um novo cenário hoje: o crime organizado, junto com o golpismo de lideranças bolsonaristas, constitui um grande risco à democracia brasileira. No início, esse fenômeno se circunscrevia a algumas elites políticas locais e estaduais, especialmente no Rio de Janeiro, onde políticos apoiaram as milícias em nome da ordem - gente do bolsonarismo faz parte dessa história. A capacidade de se infiltrar na política cresceu vertiginosamente nos últimos anos, inclusive substituindo com dinheiro ilícito parte do financiamento privado que a classe política detinha no passado.
Vencer o crime organizado vai exigir um grande esforço nacional, um dos maiores de nossa história. Tal como ocorreu na maior frente ampla da política brasileira, que há 40 anos, completados nesta semana, organizou a campanha das Diretas Já para acabar com a ditadura militar. Líderes sociais, empresariais, religiosos e políticos vão ter de atuar conjuntamente e publicamente gritar contra o crime organizado. Para tanto, será necessário mudar estruturalmente a política de segurança pública, o que só será possível implementando efetivamente, e não com medidas fragmentadas e esporádicas, o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, um modelo que pode integrar o governo federal aos estados por meio de pactos institucionalizados e de longo prazo.
Como lembra Renato Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a profissionalização e a adoção de modelos de gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso. Por essa linha, abandona-se o discurso demagógico que tem alimentado a discussão no Congresso Nacional. A saída para combater o crime organizado não é acabar com a “saidinha”, mas sim, um pacto amplo em torno de um SUSP efetivo. A pergunta incômoda é saber se a sociedade, policiais e políticos estão preparados para assumir essa bandeira. O medo maior é que parte do problema esteja no fato de que haja mais gente importante ligada às facções criminosas do que imaginaríamos nos nossos piores sonhos.
Computando a felicidade
Até agora, discutimos a felicidade como se esta fosse, em grande medida, produto de fatores materiais, como saúde, dieta e riqueza. Se as pessoas são mais ricas e mais saudáveis, também devem ser mais felizes. Mas isso é mesmo assim tão óbvio? Filósofos, padres e poetas refletiram sobre a natureza da felicidade durante milênios, e muitos concluíram que fatores sociais, éticos e espirituais têm tanta influência sobre nossa felicidade quanto as condições materiais. E se as pessoas nas sociedades afluentes modernas sofrem muitíssimo de alienação e carência de sentido, apesar de sua prosperidade? E se nossos ancestrais menos abastados encontravam grande contentamento na comunidade, na religião e em um vínculo com a natureza?
Nas últimas décadas, psicólogos e biólogos aceitaram o desafio de estudar cientificamente o que de fato deixa as pessoas felizes. É o dinheiro, a família, a genética ou, talvez, a moral? O primeiro passo é definir o que será medido. A definição geralmente aceita de felicidade é “bem-estar subjetivo”. A felicidade, de acordo com essa visão, é algo que sinto dentro de mim, uma sensação de prazer imediato ou de contentamento no longo prazo com o modo como minha vida avança. Se é algo sentido do lado de dentro, como pode ser medido de fora? Supostamente, podemos fazer isso pedindo que as pessoas nos digam como se sentem. Desse modo, os psicólogos e biólogos que desejam avaliar o quanto as pessoas se sentem felizes lhes dão questionários para responder e computam os resultados.
Um típico questionário sobre bem-estar subjetivo pede aos entrevistados para avaliarem em uma escala de zero a dez o quanto concordam com afirmações do tipo “Sinto-me satisfeito com minha forma de ser”, “Sinto que a vida é muito satisfatória”, “Sou otimista com relação ao futuro” e “A vida é boa”. O pesquisador, então, soma todas as respostas e calcula o nível geral de bem-estar subjetivo do entrevistado.
Tais questionários são usados para correlacionar a felicidade com vários fatores objetivos. Um estudo pode comparar mil pessoas que ganham 100 mil dólares por ano com mil pessoas que ganham 50 mil dólares por ano. Se o estudo descobrir que o primeiro grupo tem um nível médio de bem-estar subjetivo de 8,7, ao passo que o segundo grupo tem um nível médio de apenas 7,3, o pesquisador pode concluir, de maneira razoável, que há uma correlação positiva entre riqueza e bem-estar subjetivo. Dito de forma simples, dinheiro traz felicidade. O mesmo método pode ser usado para examinar se pessoas vivendo em democracias são mais felizes que pessoas vivendo em ditaduras e se os casados são mais felizes que os solteiros, divorciados ou viúvos.
Isso fornece uma base para os historiadores, que podem examinar a riqueza, a liberdade política e os índices de divórcio no passado. Se as pessoas são mais felizes em democracias e as pessoas casadas são mais felizes que as divorciadas, um historiador tem uma base para argumentar que o processo de democratização das últimas décadas contribuiu para a felicidade da humanidade, ao passo que os índices crescentes de divórcio indicam uma tendência oposta.
Essa maneira de pensar não é isenta de falhas, mas, antes de apontar algumas delas, vale considerar suas descobertas.
Uma conclusão interessante é que, de fato, o dinheiro traz felicidade. Mas só até certo ponto, e além desse ponto tem pouca significância. Para as pessoas presas na base da pirâmide econômica, mais dinheiro significa mais felicidade. Se você é uma mãe solteira brasileira que ganha 12 mil reais por ano limpando casas e de repente ganha 500 mil reais na loteria, provavelmente sentirá um aumento significativo e duradouro em seu bem-estar subjetivo. Conseguirá alimentar e vestir seus filhos sem se afundar ainda mais em dívidas. No entanto, se você é um alto executivo que ganha 250 mil reais por ano e de repente ganha 1 milhão de reais na loteria, ou se a diretoria de sua empresa de repente decide dobrar seu salário, é provável que seu aumento no bem-estar subjetivo dure apenas algumas semanas. De acordo com descobertas empíricas, é quase certo que não fará uma grande diferença no modo como você se sente no longo prazo. Você comprará um carro mais pomposo, se mudará para uma casa suntuosa, se acostumará a comer coisas mais sofisticadas e a tomar os melhores vinhos, mas logo tudo isso parecerá rotineiro e nada excepcional.
Outra descoberta interessante é que a doença diminui a felicidade no curto prazo, mas só é fonte de sofrimento no longo prazo se as condições de vida de uma pessoa se deteriorarem de forma constante ou se a doença envolver dor contínua e debilitante. As pessoas que são diagnosticadas com doenças crônicas como diabetes geralmente ficam deprimidas por um tempo, mas, se a doença não piorar, elas se ajustam à nova condição e classificam sua felicidade nos mesmos patamares que as pessoas saudáveis. Imagine que Lúcia e Lucas são gêmeos de classe média, que concordam em participar de um estudo sobre bem-estar. Ao voltar do laboratório de psicologia, o carro de Lúcia é atingido por um ônibus, deixando-a com uma série de ossos fraturados e uma perna permanentemente danificada. Enquanto a equipe de resgate a está tirando do meio das ferragens, o telefone toca e Lucas grita que acabou de ganhar 10 milhões de reais na loteria. Dois anos depois, ela estará mancando e ele estará muito mais rico, mas, quando o psicólogo aparece para um estudo de acompanhamento, ambos tendem a dar as mesmas respostas que deram na manhã daquele dia fatídico.
Família e comunidade parecem ter mais impacto na nossa felicidade do que dinheiro e saúde. Pessoas com famílias coesas que vivem em comunidades unidas que lhes dão apoio são significativamente mais felizes do que pessoas cujas famílias são disfuncionais e que nunca encontraram (ou nunca buscaram) uma comunidade da qual fazer parte. O casamento é particularmente importante. Repetidos estudos descobriram que há uma relação muito direta entre bons casamentos e nível elevado de bem-estar subjetivo e entre maus casamentos e sofrimento. Isso é verdade independentemente de condições econômicas ou mesmo físicas. Um inválido sem recursos cercado por uma esposa amorosa, uma família dedicada e uma comunidade afetuosa pode se sentir melhor do que um bilionário alienado, contanto que a pobreza do inválido não seja extrema e que sua doença não seja degenerativa nem dolorosa.
Isso levanta a possibilidade de que a melhoria gigantesca nas condições materiais dos últimos dois séculos tenha sido compensada pelo colapso da família e da comunidade. As pessoas no mundo desenvolvido contam com o Estado e o mercado para quase tudo de que necessitam: alimento, abrigo, educação, saúde, segurança. Desse modo, tornou-se possível sobreviver sem ter uma família estendida ou amigos reais. Um indivíduo que mora em uma cobertura urbana é cercado por milhares de pessoas onde quer que vá, mas possivelmente jamais visitou o apartamento vizinho e sabe muito pouco sobre seus colegas de trabalho. Até mesmo seus amigos talvez sejam apenas companheiros de bar. Hoje, muitas amizades envolvem pouco mais do que conversar e se divertir juntos.
Mas a descoberta mais importante de todas é que a felicidade não depende de condições objetivas de riqueza, saúde ou mesmo comunidade. Em vez disso, depende da correlação entre condições objetivas e expectativas subjetivas. Se você quer uma carroça e consegue uma carroça, fica contente. Se você quer uma Ferrari zero e só consegue um Fiat usado, sente que algo lhe foi negado. É por isso que ganhar na loteria tem, com o tempo, o mesmo impacto sobre a felicidade das pessoas que um acidente de carro debilitante. Quando as coisas melhoram, as expectativas inflam, e consequentemente até mesmo melhorias drásticas nas condições objetivas podem nos deixar insatisfeitos. Quando as coisas se deterioram, as expectativas diminuem, e consequentemente até mesmo com uma doença grave a pessoa pode ser tão feliz quanto era antes.
Você poderia dizer que não precisamos de um bando de psicólogos e seus questionários para descobrir isso. Profetas, poetas e filósofos perceberam, há milhares de anos, que estar satisfeito com o que você já tem é muito mais importante do que obter mais daquilo que deseja. Ainda assim, é bom quando pesquisas atuais – sustentadas por uma porção de números e gráficos – chegam à mesma conclusão a que os antigos chegaram.
Yuval Noah Harari, "Sapiens: uma breve história da humanidade"
Nas últimas décadas, psicólogos e biólogos aceitaram o desafio de estudar cientificamente o que de fato deixa as pessoas felizes. É o dinheiro, a família, a genética ou, talvez, a moral? O primeiro passo é definir o que será medido. A definição geralmente aceita de felicidade é “bem-estar subjetivo”. A felicidade, de acordo com essa visão, é algo que sinto dentro de mim, uma sensação de prazer imediato ou de contentamento no longo prazo com o modo como minha vida avança. Se é algo sentido do lado de dentro, como pode ser medido de fora? Supostamente, podemos fazer isso pedindo que as pessoas nos digam como se sentem. Desse modo, os psicólogos e biólogos que desejam avaliar o quanto as pessoas se sentem felizes lhes dão questionários para responder e computam os resultados.
Um típico questionário sobre bem-estar subjetivo pede aos entrevistados para avaliarem em uma escala de zero a dez o quanto concordam com afirmações do tipo “Sinto-me satisfeito com minha forma de ser”, “Sinto que a vida é muito satisfatória”, “Sou otimista com relação ao futuro” e “A vida é boa”. O pesquisador, então, soma todas as respostas e calcula o nível geral de bem-estar subjetivo do entrevistado.
Tais questionários são usados para correlacionar a felicidade com vários fatores objetivos. Um estudo pode comparar mil pessoas que ganham 100 mil dólares por ano com mil pessoas que ganham 50 mil dólares por ano. Se o estudo descobrir que o primeiro grupo tem um nível médio de bem-estar subjetivo de 8,7, ao passo que o segundo grupo tem um nível médio de apenas 7,3, o pesquisador pode concluir, de maneira razoável, que há uma correlação positiva entre riqueza e bem-estar subjetivo. Dito de forma simples, dinheiro traz felicidade. O mesmo método pode ser usado para examinar se pessoas vivendo em democracias são mais felizes que pessoas vivendo em ditaduras e se os casados são mais felizes que os solteiros, divorciados ou viúvos.
Isso fornece uma base para os historiadores, que podem examinar a riqueza, a liberdade política e os índices de divórcio no passado. Se as pessoas são mais felizes em democracias e as pessoas casadas são mais felizes que as divorciadas, um historiador tem uma base para argumentar que o processo de democratização das últimas décadas contribuiu para a felicidade da humanidade, ao passo que os índices crescentes de divórcio indicam uma tendência oposta.
Essa maneira de pensar não é isenta de falhas, mas, antes de apontar algumas delas, vale considerar suas descobertas.
Uma conclusão interessante é que, de fato, o dinheiro traz felicidade. Mas só até certo ponto, e além desse ponto tem pouca significância. Para as pessoas presas na base da pirâmide econômica, mais dinheiro significa mais felicidade. Se você é uma mãe solteira brasileira que ganha 12 mil reais por ano limpando casas e de repente ganha 500 mil reais na loteria, provavelmente sentirá um aumento significativo e duradouro em seu bem-estar subjetivo. Conseguirá alimentar e vestir seus filhos sem se afundar ainda mais em dívidas. No entanto, se você é um alto executivo que ganha 250 mil reais por ano e de repente ganha 1 milhão de reais na loteria, ou se a diretoria de sua empresa de repente decide dobrar seu salário, é provável que seu aumento no bem-estar subjetivo dure apenas algumas semanas. De acordo com descobertas empíricas, é quase certo que não fará uma grande diferença no modo como você se sente no longo prazo. Você comprará um carro mais pomposo, se mudará para uma casa suntuosa, se acostumará a comer coisas mais sofisticadas e a tomar os melhores vinhos, mas logo tudo isso parecerá rotineiro e nada excepcional.
Outra descoberta interessante é que a doença diminui a felicidade no curto prazo, mas só é fonte de sofrimento no longo prazo se as condições de vida de uma pessoa se deteriorarem de forma constante ou se a doença envolver dor contínua e debilitante. As pessoas que são diagnosticadas com doenças crônicas como diabetes geralmente ficam deprimidas por um tempo, mas, se a doença não piorar, elas se ajustam à nova condição e classificam sua felicidade nos mesmos patamares que as pessoas saudáveis. Imagine que Lúcia e Lucas são gêmeos de classe média, que concordam em participar de um estudo sobre bem-estar. Ao voltar do laboratório de psicologia, o carro de Lúcia é atingido por um ônibus, deixando-a com uma série de ossos fraturados e uma perna permanentemente danificada. Enquanto a equipe de resgate a está tirando do meio das ferragens, o telefone toca e Lucas grita que acabou de ganhar 10 milhões de reais na loteria. Dois anos depois, ela estará mancando e ele estará muito mais rico, mas, quando o psicólogo aparece para um estudo de acompanhamento, ambos tendem a dar as mesmas respostas que deram na manhã daquele dia fatídico.
Família e comunidade parecem ter mais impacto na nossa felicidade do que dinheiro e saúde. Pessoas com famílias coesas que vivem em comunidades unidas que lhes dão apoio são significativamente mais felizes do que pessoas cujas famílias são disfuncionais e que nunca encontraram (ou nunca buscaram) uma comunidade da qual fazer parte. O casamento é particularmente importante. Repetidos estudos descobriram que há uma relação muito direta entre bons casamentos e nível elevado de bem-estar subjetivo e entre maus casamentos e sofrimento. Isso é verdade independentemente de condições econômicas ou mesmo físicas. Um inválido sem recursos cercado por uma esposa amorosa, uma família dedicada e uma comunidade afetuosa pode se sentir melhor do que um bilionário alienado, contanto que a pobreza do inválido não seja extrema e que sua doença não seja degenerativa nem dolorosa.
Isso levanta a possibilidade de que a melhoria gigantesca nas condições materiais dos últimos dois séculos tenha sido compensada pelo colapso da família e da comunidade. As pessoas no mundo desenvolvido contam com o Estado e o mercado para quase tudo de que necessitam: alimento, abrigo, educação, saúde, segurança. Desse modo, tornou-se possível sobreviver sem ter uma família estendida ou amigos reais. Um indivíduo que mora em uma cobertura urbana é cercado por milhares de pessoas onde quer que vá, mas possivelmente jamais visitou o apartamento vizinho e sabe muito pouco sobre seus colegas de trabalho. Até mesmo seus amigos talvez sejam apenas companheiros de bar. Hoje, muitas amizades envolvem pouco mais do que conversar e se divertir juntos.
Encontramos um amigo em um bar, telefonamos para ele ou lhe enviamos um e-mail para aliviar nossa raiva sobre o que aconteceu hoje no escritório ou compartilhar nossas opiniões sobre o último escândalo político. Mas até que ponto podemos conhecer bem uma pessoa somente com base em conversas?
Diferentemente de tais companheiros de bar, os amigos na Idade da Pedra dependiam uns dos outros para sua própria sobrevivência. Os humanos viviam em comunidades solidárias, e os amigos eram pessoas com quem se caçava mamutes. Juntos, sobreviviam a longas jornadas e a invernos rigorosos.
Diferentemente de tais companheiros de bar, os amigos na Idade da Pedra dependiam uns dos outros para sua própria sobrevivência. Os humanos viviam em comunidades solidárias, e os amigos eram pessoas com quem se caçava mamutes. Juntos, sobreviviam a longas jornadas e a invernos rigorosos.
Cuidavam um do outro quando um deles ficava doente, e compartilhavam a última porção de comida em épocas de necessidade. Tais amigos conheciam uns aos outros mais intimamente do que muitos casais de nossos dias. Quantos maridos podem dizer que sabem qual será o comportamento da esposa se eles forem atacados por um mamute enfurecido? Substituir tais redes tribais precárias pela segurança das economias e dos Estados paternalistas modernos obviamente tem vantagens enormes, mas é provável que a qualidade e a profundidade das relações íntimas tenha sido afetada.
Mas a descoberta mais importante de todas é que a felicidade não depende de condições objetivas de riqueza, saúde ou mesmo comunidade. Em vez disso, depende da correlação entre condições objetivas e expectativas subjetivas. Se você quer uma carroça e consegue uma carroça, fica contente. Se você quer uma Ferrari zero e só consegue um Fiat usado, sente que algo lhe foi negado. É por isso que ganhar na loteria tem, com o tempo, o mesmo impacto sobre a felicidade das pessoas que um acidente de carro debilitante. Quando as coisas melhoram, as expectativas inflam, e consequentemente até mesmo melhorias drásticas nas condições objetivas podem nos deixar insatisfeitos. Quando as coisas se deterioram, as expectativas diminuem, e consequentemente até mesmo com uma doença grave a pessoa pode ser tão feliz quanto era antes.
Você poderia dizer que não precisamos de um bando de psicólogos e seus questionários para descobrir isso. Profetas, poetas e filósofos perceberam, há milhares de anos, que estar satisfeito com o que você já tem é muito mais importante do que obter mais daquilo que deseja. Ainda assim, é bom quando pesquisas atuais – sustentadas por uma porção de números e gráficos – chegam à mesma conclusão a que os antigos chegaram.
Yuval Noah Harari, "Sapiens: uma breve história da humanidade"
Governos para quê?
No caso da democracia, foi prometida uma resposta simples: “do povo, pelo povo e para o povo”. Será mesmo?
Ou, talvez: governos, para quem? No caso da democracia, foi prometida uma resposta simples: “do povo, pelo povo e para o povo”. Será mesmo? Tudo estaria resolvido se houvesse ao menos concordância na definição de povo.
A confusão começa com inúmeros grupos humanos sendo chamamos de ‘povos’ (indígenas, africanos, originários, tradicionais, europeus etc. etc.). Será que todos esses ‘povos’ já usufruem igualmente daquele exercício democrático de ser povo?
Como se não bastasse, no âmbito de cada um desses ‘povos’ há diversas estratificações econômicas e sociais que se apresentam de maneira muito diferente quanto ao acesso concreto às oportunidades e às garantias previstas na legislação de cada país.
Um caso claro é o das pessoas negras. Várias democracias modernas surgiram, a partir do século XVIII, convivendo com regimes escravistas. Nos EUA a abolição da escravidão só ocorreu uns cem anos após a Independência Americana. Na França a abolição foi conquistada anos após a Revolução Francesa e foi restabelecida por Bonaparte, antes de ser revogada em meados do século XIX.
Ao longo do século XX persistiu nas democracias a discriminação contra grande parte da sociedade, com a restrição ao direito de votar dos negros, mulheres, analfabetos e indígenas, por exemplo. Ainda hoje restam desigualdades profundas no acesso à educação, saúde, emprego, segurança, infraestrutura, moradia, transporte e outros serviços públicos ou privados.
Ao que parece, ao longo da história o Estado é reinventado periodicamente, em formatos que oferecem novas possibilidades de governança, adequadas às elites emergentes de cada época. A democracia prevê na sua certidão de nascimento as conexões que possibilitariam a liberdade, igualdade e soberania, ampliando a dinâmica de poder para além dos limites das cortes monarquistas.
Contudo, os retrocessos autocráticos periódicos refletem o esforço de recomposição dos desenhos originais de democracias pouco inclusivas, deixando a impressão de que os sistemas de governo não esquecem que foram projetados para viabilizarem a prosperidade e consolidarem a influência dos segmentos sociais que bancaram sua instalação.
Esse estilo “camarote vip” pode ser visto na composição do próprio Conselho de Segurança da ONU. Nesse ponto, os atuais ultraliberais e anarcocapitalistas preservam um vício de origem similar ao dos ditadores e populistas de leste a oeste do planeta. O retrocesso cíclico reflete a queda-de-braço estrutural entre o andar de cima do PIB (a quem os governos foram inventados para servir) e a base da pirâmide social (a quem os governos disseram que foram inventados para servir).
Por isso, o que Trump, Kim Jong-um, o talibã (e suas variações) têm em comum é a crença na desigualdade social enquanto chão de fábrica da concentração de riqueza, que segue sendo curiosamente, ao mesmo tempo, o principal propósito e o maior desafio dessa invenção milenar humana chamada governo.
Ou, talvez: governos, para quem? No caso da democracia, foi prometida uma resposta simples: “do povo, pelo povo e para o povo”. Será mesmo? Tudo estaria resolvido se houvesse ao menos concordância na definição de povo.
A confusão começa com inúmeros grupos humanos sendo chamamos de ‘povos’ (indígenas, africanos, originários, tradicionais, europeus etc. etc.). Será que todos esses ‘povos’ já usufruem igualmente daquele exercício democrático de ser povo?
Como se não bastasse, no âmbito de cada um desses ‘povos’ há diversas estratificações econômicas e sociais que se apresentam de maneira muito diferente quanto ao acesso concreto às oportunidades e às garantias previstas na legislação de cada país.
Um caso claro é o das pessoas negras. Várias democracias modernas surgiram, a partir do século XVIII, convivendo com regimes escravistas. Nos EUA a abolição da escravidão só ocorreu uns cem anos após a Independência Americana. Na França a abolição foi conquistada anos após a Revolução Francesa e foi restabelecida por Bonaparte, antes de ser revogada em meados do século XIX.
Ao longo do século XX persistiu nas democracias a discriminação contra grande parte da sociedade, com a restrição ao direito de votar dos negros, mulheres, analfabetos e indígenas, por exemplo. Ainda hoje restam desigualdades profundas no acesso à educação, saúde, emprego, segurança, infraestrutura, moradia, transporte e outros serviços públicos ou privados.
Ao que parece, ao longo da história o Estado é reinventado periodicamente, em formatos que oferecem novas possibilidades de governança, adequadas às elites emergentes de cada época. A democracia prevê na sua certidão de nascimento as conexões que possibilitariam a liberdade, igualdade e soberania, ampliando a dinâmica de poder para além dos limites das cortes monarquistas.
Contudo, os retrocessos autocráticos periódicos refletem o esforço de recomposição dos desenhos originais de democracias pouco inclusivas, deixando a impressão de que os sistemas de governo não esquecem que foram projetados para viabilizarem a prosperidade e consolidarem a influência dos segmentos sociais que bancaram sua instalação.
Esse estilo “camarote vip” pode ser visto na composição do próprio Conselho de Segurança da ONU. Nesse ponto, os atuais ultraliberais e anarcocapitalistas preservam um vício de origem similar ao dos ditadores e populistas de leste a oeste do planeta. O retrocesso cíclico reflete a queda-de-braço estrutural entre o andar de cima do PIB (a quem os governos foram inventados para servir) e a base da pirâmide social (a quem os governos disseram que foram inventados para servir).
Por isso, o que Trump, Kim Jong-um, o talibã (e suas variações) têm em comum é a crença na desigualdade social enquanto chão de fábrica da concentração de riqueza, que segue sendo curiosamente, ao mesmo tempo, o principal propósito e o maior desafio dessa invenção milenar humana chamada governo.
Ataques de Israel com fósforo branco no Líbano violam leis internacionais?
Nos últimos seis meses, Israel usou munições de fósforo branco na fronteira com o sul do Líbano. Por ser um gás tóxico, ele é prejudicial para os olhos e pulmões e pode causar queimaduras graves. Portanto, é rigorosamente regulamentado por leis internacionais.
Os militares israelenses afirmam que a utilização desta polêmica arma contra militantes armados em Gaza e no Líbano é legal. No entanto, grupos de direitos humanos argumentam que o seu uso deve ser investigado como um crime de guerra. Os americanos disseram que investigarão o uso de fósforo branco por Israel.
Ao utilizarem essa munição tão perto de civis, estariam as forças israelenses infringindo as leis internacionais? Ou eles estão dentro dos seus direitos, como parte da guerra?
"Ela viaja como uma névoa branca. Mas quando atinge o chão, vira pó."
Em 19 de outubro de 2023, Ali Ahmed Abu Samra, um agricultor de 48 anos do sul do Líbano, diz que se viu envolto por uma densa nuvem branca.
"Dizem que o cheiro é de alho, mas é muito pior que isso. O cheiro era insuportável. Pior que esgoto."
Ali está descrevendo um ataque com fósforo branco.
Com temperaturas que chegam a 815°C, as munições de fósforo branco são altamente inflamáveis e gravemente tóxicas.
"A água começou a escorrer dos nossos olhos", diz Ali, da aldeia de Dhayra. "Se não fosse por cobrirmos a boca e o nariz com um pedaço de pano úmido, talvez não estaríamos vivos hoje."
Desde o início da guerra em Gaza, em outubro do ano passado, a violência também aumentou ao longo da fronteira Israel-Líbano, provocando vítimas de ambos os lados e o deslocamento de milhares de pessoas.
Estreitamente alinhado com o Irã e aliado do Hamas, o grupo Hezbollah é uma das forças militares não estatais mais fortemente armadas do mundo.
Realizando ataques quase diários, os foguetes e drones dos combatentes do Hezbollah foram recebidos com ataques aéreos e artilharia pesada pelas Forças de Defesa de Israel (FDI, na sigla em inglês). Inclusive com o uso de fósforo branco.
Quando o fósforo branco é liberado, ele reage com o oxigênio para criar uma espessa cortina de fumaça. Isso fornece cobertura quase instantânea para as tropas no terreno, obscurecendo a linha de visão do inimigo.
A fumaça é altamente eficaz e uma tática militar legal sob certas condições. Contudo, no direito internacional, é responsabilidade de todas as partes proteger os civis durante os conflitos armados.
Os militares israelenses afirmam que a utilização desta polêmica arma contra militantes armados em Gaza e no Líbano é legal. No entanto, grupos de direitos humanos argumentam que o seu uso deve ser investigado como um crime de guerra. Os americanos disseram que investigarão o uso de fósforo branco por Israel.
Ao utilizarem essa munição tão perto de civis, estariam as forças israelenses infringindo as leis internacionais? Ou eles estão dentro dos seus direitos, como parte da guerra?
"Ela viaja como uma névoa branca. Mas quando atinge o chão, vira pó."
Em 19 de outubro de 2023, Ali Ahmed Abu Samra, um agricultor de 48 anos do sul do Líbano, diz que se viu envolto por uma densa nuvem branca.
"Dizem que o cheiro é de alho, mas é muito pior que isso. O cheiro era insuportável. Pior que esgoto."
Ali está descrevendo um ataque com fósforo branco.
Com temperaturas que chegam a 815°C, as munições de fósforo branco são altamente inflamáveis e gravemente tóxicas.
"A água começou a escorrer dos nossos olhos", diz Ali, da aldeia de Dhayra. "Se não fosse por cobrirmos a boca e o nariz com um pedaço de pano úmido, talvez não estaríamos vivos hoje."
Desde o início da guerra em Gaza, em outubro do ano passado, a violência também aumentou ao longo da fronteira Israel-Líbano, provocando vítimas de ambos os lados e o deslocamento de milhares de pessoas.
Estreitamente alinhado com o Irã e aliado do Hamas, o grupo Hezbollah é uma das forças militares não estatais mais fortemente armadas do mundo.
Realizando ataques quase diários, os foguetes e drones dos combatentes do Hezbollah foram recebidos com ataques aéreos e artilharia pesada pelas Forças de Defesa de Israel (FDI, na sigla em inglês). Inclusive com o uso de fósforo branco.
Quando o fósforo branco é liberado, ele reage com o oxigênio para criar uma espessa cortina de fumaça. Isso fornece cobertura quase instantânea para as tropas no terreno, obscurecendo a linha de visão do inimigo.
A fumaça é altamente eficaz e uma tática militar legal sob certas condições. Contudo, no direito internacional, é responsabilidade de todas as partes proteger os civis durante os conflitos armados.
Ataque de fósforo branco na aldeia de Aita Al Shaab |
O fósforo branco foi utilizado pela maioria dos principais exércitos do mundo no século passado. A União Soviética o usou extensivamente durante a Segunda Guerra Mundial, de acordo com a CIA (serviço de inteligência dos EUA). Os Estados Unidos admitiram utilizá-lo no Iraque em 2004, e na Síria e no Iraque contra o Estado Islâmico em 2017. Israel também relatou ter utilizado o produto químico durante uma ofensiva entre 2008 e 2009 em Gaza. Mas depois que a ONU disse que os militares israelenses eram "sistematicamente imprudentes", as FDI em 2013 disseram que a tática seria "removida do serviço ativo".
Os combatentes do Hezbollah se deslocam em pequenas unidades de duas a quatro pessoas. Usando a floresta como cobertura, eles frequentemente disparam mísseis e foguetes através da fronteira, em direção ao exército israelense estacionado do outro lado.
Envolvê-los em fumaça pode ser uma forma de os israelenses agirem contra esses ataques.
Nos dias em que a aldeia de Ali foi atingida, entre 10 e 19 de outubro, ele diz que não havia grupos armados na área.
"Se o Hezbollah estivesse lá, as pessoas teriam dito para eles saírem porque não queriam morrer", diz Ali. "Não havia Hezbollah."
A BBC não conseguiu verificar de forma independente a presença ou ausência de quaisquer grupos armados em Dhayra nos dias que antecederam os ataques.
O primeiro a chegar ao local em Dhayra foi o socorrista médico voluntário, Khaled Qraitem.
"Começamos a evacuar as pessoas que perderam a consciência", diz Khaled.
Mas enquanto tentava alcançar as pessoas, diz ele, a sua equipe de resgate foi atacada.
"Dispararam três projéteis contra nós", diz Khaled. "Ou para nos impedir de resgatar pessoas ou para criar uma atmosfera de medo."
Khalid lembra de ter transferido pelo menos nove pessoas para o Hospital Italiano na cidade de Tiro, incluindo seu próprio pai, Ibrahim.
Aos 65 anos, Ibrahim ficou três dias hospitalizado devido a graves dificuldades respiratórias. Seu médico, Mohammad Mustafa, diz que tratou muitos pacientes expostos ao fósforo branco.
"Os pacientes chegam com sinais de asfixia grave, sudorese profusa, vômitos crônicos e batimentos cardíacos irregulares", diz Mustafa.
"Eles cheiram a alho. Os resultados do exame de sangue confirmaram a exposição ao fósforo branco."
Quando encontramos Ibrahim, três meses depois, seus olhos ainda estavam vermelhos. A pele de seus braços e pés estava coberta de erupções cutâneas e descamação. Ele diz que os médicos lhe disseram que tudo foi provocado pelo fósforo branco.
"Desde a década de 1970 vivemos uma guerra", diz Ibrahim. "Mas nada como isso, com explosões caindo tão perto de nossas casas."
Ibrahim diz que um projétil caiu a seis metros de seu carro enquanto ele tentava fugir. Havia drones de vigilância das FDI no alto, diz ele.
"Eles conseguiam nos ver", diz Ibrahim. "Eles estavam atirando de forma imprudente."
A Anistia Internacional afirma que o ataque a Dhayra "deve ser investigado como um crime de guerra porque foi um ataque indiscriminado que feriu pelo menos nove civis e danificou bens civis e, portanto, foi ilegal".
Em resposta a testemunhas que disseram que o fósforo branco estava sendo usado "de forma imprudente" e em áreas povoadas, a FDI disse à BBC: "As diretrizes das FDI exigem que as bombas de fumaça que contêm fósforo branco não sejam utilizadas em áreas densamente povoadas, com certas exceções. Estas são diretrizes operacionais que são confidenciais e não podem ser divulgadas."
Imediatamente após o ataque à aldeia de Ali, começaram a aparecer relatos na internet.
Inicialmente, o Exército Israelense negou o uso de munições de fósforo branco. Mais tarde, porém, admitiu que as estava usando, mas "dentro das leis internacionais".
A BBC conseguiu verificar de forma independente a utilização de fósforo branco em Dhayra, bem como em três outras aldeias ao longo da fronteira, nos últimos seis meses.
Em Kfar Kila, a BBC analisou um fragmento de uma bomba que caiu entre duas casas de civis. A análise foi conduzida por um renomado professor de química. Por questões de segurança, ele pediu para permanecer anônimo.
Usando máscara de gás e equipamento de proteção pessoal completo, o professor examina vários pontos escuros e pegajosos na borda interna do fragmento de metal.
"Isso faz parte de um obus de 155 mm. A marcação M825A1 indica que é uma munição de fósforo branco. É feita nos Estados Unidos", ele diz.
Ele acende um isqueiro nos pedaços pegajosos, que imediatamente pegam fogo.
"Imagine tentar remover esse material de suas roupas enquanto ele está queimando e grudando em sua pele."
Mesmo depois de 30 dias, diz ele, restos de fósforo branco ainda podem pegar fogo.
O socorrista Khaled Qraitem acusa Israel de usar deliberadamente fósforo branco para afastar as pessoas das áreas de fronteira.
"Tínhamos uma bela vida rural", diz ele. "Começaram a bombardear as áreas florestais com fósforo com o propósito de queimar as oliveiras e os pomares de abacate."
Em resposta às alegações de Khaled, as FDI responderam:
"As FDI rejeitam completamente qualquer alegação de que bombas de cortina de fumaça sejam usadas para afastar civis da fronteira no Líbano."
O fósforo branco não é definido como arma química e até o termo "arma incendiária" é controverso.
Ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre Armas Convencionais (CCW), existem restrições às armas concebidas principalmente para iniciar incêndios ou queimar pessoas.
No entanto, a maioria dos países concorda, incluindo Israel, que se o fósforo branco for usado principalmente para criar cortinas de fumaça e não incêndios (mesmo que ocorram acidentalmente), então a lei sobre armas incendiárias já não se aplica.
No entanto, a organização Human Rights Watch (HRW) discorda e diz que há "lacunas" na CCW.
"A convenção [CCW] contém lacunas, particularmente relacionadas com a sua definição de armas incendiárias", afirma o pesquisador da HRW, Ramzi Kaiss.
"Mas, ao abrigo do Direito Internacional Humanitário (DIH), todas as partes no conflito devem tomar precauções viáveis para evitar danos aos civis. Principalmente ao usar munições com fósforo branco."
Para estabelecer se Israel violou o DIH, o advogado independente e especialista em questões militares Bill Boothby diz que um dos problemas é o "choque das provas".
"Os israelenses dizem que o seu objetivo era criar uma cortina de fumaça", diz Boothby.
"Os moradores dizem que não houve propósito para a criação de uma cortina de fumaça porque não havia militantes. Era esse realmente o motivo pelo qual o fósforo branco estava sendo usado? Saber a resposta para isso envolveria saber o que se passava nas mentes daqueles que estavam decidindo o ataque."
"Proporcionalidade" também é fundamental, diz Boothby. Qualquer dano causado não pode ser excessivo em relação aos ganhos militares esperados.
"Estamos falando da necessidade de estabelecer que os ferimentos civis esperados e os danos a bens civis eram excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta que previam obter antes do ataque."
Novamente seria preciso saber o que se passava nas mentes daqueles que decidiram o ataque e qual era o seu alvo.
Questionados sobre qual era o seu alvo em Dhayra, as FDI responderam à BBC: "Estas são diretivas operacionais que são confidenciais e não podem ser divulgadas".
Os combatentes do Hezbollah se deslocam em pequenas unidades de duas a quatro pessoas. Usando a floresta como cobertura, eles frequentemente disparam mísseis e foguetes através da fronteira, em direção ao exército israelense estacionado do outro lado.
Envolvê-los em fumaça pode ser uma forma de os israelenses agirem contra esses ataques.
Nos dias em que a aldeia de Ali foi atingida, entre 10 e 19 de outubro, ele diz que não havia grupos armados na área.
"Se o Hezbollah estivesse lá, as pessoas teriam dito para eles saírem porque não queriam morrer", diz Ali. "Não havia Hezbollah."
A BBC não conseguiu verificar de forma independente a presença ou ausência de quaisquer grupos armados em Dhayra nos dias que antecederam os ataques.
O primeiro a chegar ao local em Dhayra foi o socorrista médico voluntário, Khaled Qraitem.
"Começamos a evacuar as pessoas que perderam a consciência", diz Khaled.
Mas enquanto tentava alcançar as pessoas, diz ele, a sua equipe de resgate foi atacada.
"Dispararam três projéteis contra nós", diz Khaled. "Ou para nos impedir de resgatar pessoas ou para criar uma atmosfera de medo."
Khalid lembra de ter transferido pelo menos nove pessoas para o Hospital Italiano na cidade de Tiro, incluindo seu próprio pai, Ibrahim.
Aos 65 anos, Ibrahim ficou três dias hospitalizado devido a graves dificuldades respiratórias. Seu médico, Mohammad Mustafa, diz que tratou muitos pacientes expostos ao fósforo branco.
"Os pacientes chegam com sinais de asfixia grave, sudorese profusa, vômitos crônicos e batimentos cardíacos irregulares", diz Mustafa.
"Eles cheiram a alho. Os resultados do exame de sangue confirmaram a exposição ao fósforo branco."
Quando encontramos Ibrahim, três meses depois, seus olhos ainda estavam vermelhos. A pele de seus braços e pés estava coberta de erupções cutâneas e descamação. Ele diz que os médicos lhe disseram que tudo foi provocado pelo fósforo branco.
"Desde a década de 1970 vivemos uma guerra", diz Ibrahim. "Mas nada como isso, com explosões caindo tão perto de nossas casas."
Ibrahim diz que um projétil caiu a seis metros de seu carro enquanto ele tentava fugir. Havia drones de vigilância das FDI no alto, diz ele.
"Eles conseguiam nos ver", diz Ibrahim. "Eles estavam atirando de forma imprudente."
A Anistia Internacional afirma que o ataque a Dhayra "deve ser investigado como um crime de guerra porque foi um ataque indiscriminado que feriu pelo menos nove civis e danificou bens civis e, portanto, foi ilegal".
Em resposta a testemunhas que disseram que o fósforo branco estava sendo usado "de forma imprudente" e em áreas povoadas, a FDI disse à BBC: "As diretrizes das FDI exigem que as bombas de fumaça que contêm fósforo branco não sejam utilizadas em áreas densamente povoadas, com certas exceções. Estas são diretrizes operacionais que são confidenciais e não podem ser divulgadas."
Imediatamente após o ataque à aldeia de Ali, começaram a aparecer relatos na internet.
Inicialmente, o Exército Israelense negou o uso de munições de fósforo branco. Mais tarde, porém, admitiu que as estava usando, mas "dentro das leis internacionais".
A BBC conseguiu verificar de forma independente a utilização de fósforo branco em Dhayra, bem como em três outras aldeias ao longo da fronteira, nos últimos seis meses.
Em Kfar Kila, a BBC analisou um fragmento de uma bomba que caiu entre duas casas de civis. A análise foi conduzida por um renomado professor de química. Por questões de segurança, ele pediu para permanecer anônimo.
Usando máscara de gás e equipamento de proteção pessoal completo, o professor examina vários pontos escuros e pegajosos na borda interna do fragmento de metal.
"Isso faz parte de um obus de 155 mm. A marcação M825A1 indica que é uma munição de fósforo branco. É feita nos Estados Unidos", ele diz.
Ele acende um isqueiro nos pedaços pegajosos, que imediatamente pegam fogo.
"Imagine tentar remover esse material de suas roupas enquanto ele está queimando e grudando em sua pele."
Mesmo depois de 30 dias, diz ele, restos de fósforo branco ainda podem pegar fogo.
O socorrista Khaled Qraitem acusa Israel de usar deliberadamente fósforo branco para afastar as pessoas das áreas de fronteira.
"Tínhamos uma bela vida rural", diz ele. "Começaram a bombardear as áreas florestais com fósforo com o propósito de queimar as oliveiras e os pomares de abacate."
Em resposta às alegações de Khaled, as FDI responderam:
"As FDI rejeitam completamente qualquer alegação de que bombas de cortina de fumaça sejam usadas para afastar civis da fronteira no Líbano."
O fósforo branco não é definido como arma química e até o termo "arma incendiária" é controverso.
Ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre Armas Convencionais (CCW), existem restrições às armas concebidas principalmente para iniciar incêndios ou queimar pessoas.
No entanto, a maioria dos países concorda, incluindo Israel, que se o fósforo branco for usado principalmente para criar cortinas de fumaça e não incêndios (mesmo que ocorram acidentalmente), então a lei sobre armas incendiárias já não se aplica.
No entanto, a organização Human Rights Watch (HRW) discorda e diz que há "lacunas" na CCW.
"A convenção [CCW] contém lacunas, particularmente relacionadas com a sua definição de armas incendiárias", afirma o pesquisador da HRW, Ramzi Kaiss.
"Mas, ao abrigo do Direito Internacional Humanitário (DIH), todas as partes no conflito devem tomar precauções viáveis para evitar danos aos civis. Principalmente ao usar munições com fósforo branco."
Para estabelecer se Israel violou o DIH, o advogado independente e especialista em questões militares Bill Boothby diz que um dos problemas é o "choque das provas".
"Os israelenses dizem que o seu objetivo era criar uma cortina de fumaça", diz Boothby.
"Os moradores dizem que não houve propósito para a criação de uma cortina de fumaça porque não havia militantes. Era esse realmente o motivo pelo qual o fósforo branco estava sendo usado? Saber a resposta para isso envolveria saber o que se passava nas mentes daqueles que estavam decidindo o ataque."
"Proporcionalidade" também é fundamental, diz Boothby. Qualquer dano causado não pode ser excessivo em relação aos ganhos militares esperados.
"Estamos falando da necessidade de estabelecer que os ferimentos civis esperados e os danos a bens civis eram excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta que previam obter antes do ataque."
Novamente seria preciso saber o que se passava nas mentes daqueles que decidiram o ataque e qual era o seu alvo.
Questionados sobre qual era o seu alvo em Dhayra, as FDI responderam à BBC: "Estas são diretivas operacionais que são confidenciais e não podem ser divulgadas".
Resignação jamais!
Tivemos liberdade para torturar, para matar, para assassinar, e tivemos liberdade para lutar, para seguir em frente, para tentar manter a dignidade. É aterrador o uso que se pode fazer de uma palavra. O importante é que haja presença de um senso de responsabilidade cívica, de dignidade pessoal, de respeito coletivo; se se mantém, se se constrói, se não se aceita cair na resignação, na apatia, na indiferença, isso pode ser uma simples semente para que algo mude. Mas eu estou muito consciente de que isso, por sua vez, não significa muito
José Saramago, "As palavras de Saramago"
José Saramago, "As palavras de Saramago"
Sinuca de bico
A natureza responde conforme a tratamos: semeie ventos e colha tempestades! Como os danos que lhe causamos são enormes e crescentes, suas respostas são cada vez mais severas. Tratamos muito mal também nossos semelhantes: 70% da espécie vive em desnecessária pobreza, com menos de US$10,00/dia! Esses dois resultados precisam ser revertidos, alterando aquilo que os causam: a busca permanente de “mais”! Mais poder! Mais dinheiro! Mais vendas! Mais consumo! Mais viagens! E, como resultado, menos água! Como será viver sem água?
Vimos a recente seca recorde na Amazônia. A Espanha sofre outra, inédita. Na Catalunha há campanhas intensas para que as pessoas poupem água (se o serviço de água for privado, tal tipo de campanha ocorrerá? Alguém imagina a Coca-Cola, grande consumidora de água, defendendo a redução do seu consumo?) Lá, mais de 6 milhões de pessoas sofrem restrições de consumo; os jardins não mais são molhados, as fontes estão secas, os chuveiros nas praias e piscinas fechados, hotéis encheram piscinas com água do mar e os fazendeiros, que não mais podem irrigar suas plantações, deverão reduzir em 50% o uso de água para seus rebanhos, sob pena de multas. Na Andaluzia, a seca já dura 8 anos, com danos à produção de azeite. Em 2023, a seca na Espanha ficou entre os dez mais caros desastres climáticos no mundo. Como será viver sem água?
Desde 1990, a área do Brasil coberta por água diminuiu 15% e, mantida a busca por “mais”, continuará a cair! Essa alarmante situação não mereceu atenção da imprensa, das redes sociais, dos nossos governantes! E nada de política pública capaz de impedir o agravamento do quadro. Reverter essa tendência horripilante exige políticas que implicarão sacrifícios no curto prazo, em especial dos mais ricos, para que os filhos e netos de todos nós tenham chance de viver, dentro de 20 ou 30 anos, sem sofrer respostas ainda mais drásticas da mãe natureza.
Essa desatenção dos políticos com o longo prazo não é apenas brasileira. Ela resulta de um sistema de eleições periódicas que dá mais chances aos mais ricos e induz os eleitos a se preocuparem, acima de tudo, com sua reeleição, ou seja, com o curto prazo! Não se trata, claro, de acabar com as eleições, mas de mudar as regras do jogo, tornando-o mais, muito mais democrático! Mas, como mudar tais regras nesse sentido, se elas são definidas pelos eleitos, (quase sempre) ricos, focados na próxima eleição e desejosos, cada vez mais, em mudar as regras em seu favor?
Triste situação da democracia ocidental! Como sair dessa sinuca? Não apoiar demagogos que prometem o impossível, o paraíso no curto prazo, mas sim quem diga verdades, defina objetivos viáveis e claros, aponte ganhos e perdas, hoje e amanhã, e traduza em linguagem motivadora as medidas necessárias para trilhar esse novo caminho. Alguém à vista com tais qualidades?
Vimos a recente seca recorde na Amazônia. A Espanha sofre outra, inédita. Na Catalunha há campanhas intensas para que as pessoas poupem água (se o serviço de água for privado, tal tipo de campanha ocorrerá? Alguém imagina a Coca-Cola, grande consumidora de água, defendendo a redução do seu consumo?) Lá, mais de 6 milhões de pessoas sofrem restrições de consumo; os jardins não mais são molhados, as fontes estão secas, os chuveiros nas praias e piscinas fechados, hotéis encheram piscinas com água do mar e os fazendeiros, que não mais podem irrigar suas plantações, deverão reduzir em 50% o uso de água para seus rebanhos, sob pena de multas. Na Andaluzia, a seca já dura 8 anos, com danos à produção de azeite. Em 2023, a seca na Espanha ficou entre os dez mais caros desastres climáticos no mundo. Como será viver sem água?
Desde 1990, a área do Brasil coberta por água diminuiu 15% e, mantida a busca por “mais”, continuará a cair! Essa alarmante situação não mereceu atenção da imprensa, das redes sociais, dos nossos governantes! E nada de política pública capaz de impedir o agravamento do quadro. Reverter essa tendência horripilante exige políticas que implicarão sacrifícios no curto prazo, em especial dos mais ricos, para que os filhos e netos de todos nós tenham chance de viver, dentro de 20 ou 30 anos, sem sofrer respostas ainda mais drásticas da mãe natureza.
Essa desatenção dos políticos com o longo prazo não é apenas brasileira. Ela resulta de um sistema de eleições periódicas que dá mais chances aos mais ricos e induz os eleitos a se preocuparem, acima de tudo, com sua reeleição, ou seja, com o curto prazo! Não se trata, claro, de acabar com as eleições, mas de mudar as regras do jogo, tornando-o mais, muito mais democrático! Mas, como mudar tais regras nesse sentido, se elas são definidas pelos eleitos, (quase sempre) ricos, focados na próxima eleição e desejosos, cada vez mais, em mudar as regras em seu favor?
Triste situação da democracia ocidental! Como sair dessa sinuca? Não apoiar demagogos que prometem o impossível, o paraíso no curto prazo, mas sim quem diga verdades, defina objetivos viáveis e claros, aponte ganhos e perdas, hoje e amanhã, e traduza em linguagem motivadora as medidas necessárias para trilhar esse novo caminho. Alguém à vista com tais qualidades?
A ideologia dos videogames de Elon Musk
O ataque de Elon Musk ao juiz do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes aponta para um mundo horrível. Temos o óbvio, um bilionário intervindo no Judiciário de outro país. Mas isto, embora nojento, não é novo. Desde que o capitalismo existiu, pessoas como Elon Musk tiveram um enorme poder sobre governos, parlamentos e sistemas judiciários. Desta vez, Musk acusou um juiz de ser um “ditador” e pediu a sua “demissão” por “censurar” perfis no Twitter. A ação mobilizou a extrema direita internacional em torno da causa do ex-presidente Jair Bolsonaro, cada vez mais próximo da prisão . O magistrado, por sua vez, respondeu publicamente à provocação. Tanto que a imprensa se refere ao episódio como “o confronto entre Musk e Moraes”, como se fosse um duelo entre os dois. Mas a democracia não deveria ser uma questão de indivíduos, que é exatamente o que as redes sociais exigem. Ao atacar pessoalmente um magistrado brasileiro, Musk reduz o seu ataque à democracia a uma disputa entre avatares. É assustador que o nosso presente e o nosso futuro estejam nas mãos de uma trama de videogame e que aqueles que nos representam não estejam preparados para enfrentá-los.
A estratégia de Elon Musk de comprar o Twitter para ter uma realidade própria — onde (quase) todos jogam — é o que melhor mostra a sua visão de mundo. Se olharmos para o que poderíamos chamar de bilionários clássicos, a geração anterior a Silicon Valley, eles eram cínicos. Eles sabiam quem eram e por que fizeram o que fizeram. A novidade de uma figura como Elon Musk é que ele representa esta época específica . Musk acredita que é um visionário, que é mais inteligente que todos, que faz mais que qualquer um e, acima de tudo, que é um herói. Na luta do bem contra o mal, ele sem dúvida acredita que é bom. Muitos afirmam que ele é motivado apenas pelo lucro. É pior: ele é motivado a acreditar que é um deus humano no meio de uma espécie em extinção que só ele e sua visão superior podem salvar.
Só dá para entender a carreira de Elon Musk, suas bravatas e suas andanças com a lógica dos videogames. Há aspectos chocantes na biografia escrita por Walter Isaacson. As pessoas são jogadores descartáveis e, com exceção da família, qualquer ser humano nada mais é do que um inseto que, se zumbir desafinado, é esmagado. Mas o episódio mais emblemático é que, em plena pandemia de Covid-19, recusou fechar a sua fábrica da Tesla em Fremont, na Califórnia , e chegou a um acordo com o governo local para mantê-la aberta. Isto num país que se orgulha de ser a democracia mais forte do mundo (ou orgulhava-se, até ao episódio do assalto ao Capitólio).
É possível que Elon Musk pense que Donald Trump e Jair Bolsonaro são lixo, mas lixo que serve temporariamente aos seus propósitos: a “liberdade” de fazerem o que quiserem, sem se preocuparem com os limites impostos pelos governos ou instituições. A diferença com seus antecessores é que não existe dar e receber, apenas superação e eliminação. O videogame é diferente dos jogos de poder clássicos.
Elon Musk não é de extrema direita, Elon Musk é apenas do partido de Elon Musk. Se ele é pior que um Rothschild ou um Rockefeller, é difícil saber. Mas o poder destrutivo do homem que planeia salvar a humanidade levando-a – uma parte muito pequena – para Marte nos seus foguetões é muito maior. A única maneira de enfrentá-lo é fazer o oposto do que fez o ministro do Supremo Tribunal Federal. Personificar a democracia, colocando-se como um vigilante para enfrentar o malvado bilionário, é fazer o jogo de Musk. E neste jogo ele é imbatível. Num mundo de avatares, a única maneira de resistir é fazendo algo que os avatares não entendem: comunidade.
A estratégia de Elon Musk de comprar o Twitter para ter uma realidade própria — onde (quase) todos jogam — é o que melhor mostra a sua visão de mundo. Se olharmos para o que poderíamos chamar de bilionários clássicos, a geração anterior a Silicon Valley, eles eram cínicos. Eles sabiam quem eram e por que fizeram o que fizeram. A novidade de uma figura como Elon Musk é que ele representa esta época específica . Musk acredita que é um visionário, que é mais inteligente que todos, que faz mais que qualquer um e, acima de tudo, que é um herói. Na luta do bem contra o mal, ele sem dúvida acredita que é bom. Muitos afirmam que ele é motivado apenas pelo lucro. É pior: ele é motivado a acreditar que é um deus humano no meio de uma espécie em extinção que só ele e sua visão superior podem salvar.
Só dá para entender a carreira de Elon Musk, suas bravatas e suas andanças com a lógica dos videogames. Há aspectos chocantes na biografia escrita por Walter Isaacson. As pessoas são jogadores descartáveis e, com exceção da família, qualquer ser humano nada mais é do que um inseto que, se zumbir desafinado, é esmagado. Mas o episódio mais emblemático é que, em plena pandemia de Covid-19, recusou fechar a sua fábrica da Tesla em Fremont, na Califórnia , e chegou a um acordo com o governo local para mantê-la aberta. Isto num país que se orgulha de ser a democracia mais forte do mundo (ou orgulhava-se, até ao episódio do assalto ao Capitólio).
É possível que Elon Musk pense que Donald Trump e Jair Bolsonaro são lixo, mas lixo que serve temporariamente aos seus propósitos: a “liberdade” de fazerem o que quiserem, sem se preocuparem com os limites impostos pelos governos ou instituições. A diferença com seus antecessores é que não existe dar e receber, apenas superação e eliminação. O videogame é diferente dos jogos de poder clássicos.
Elon Musk não é de extrema direita, Elon Musk é apenas do partido de Elon Musk. Se ele é pior que um Rothschild ou um Rockefeller, é difícil saber. Mas o poder destrutivo do homem que planeia salvar a humanidade levando-a – uma parte muito pequena – para Marte nos seus foguetões é muito maior. A única maneira de enfrentá-lo é fazer o oposto do que fez o ministro do Supremo Tribunal Federal. Personificar a democracia, colocando-se como um vigilante para enfrentar o malvado bilionário, é fazer o jogo de Musk. E neste jogo ele é imbatível. Num mundo de avatares, a única maneira de resistir é fazendo algo que os avatares não entendem: comunidade.
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