sexta-feira, 19 de abril de 2024

Computando a felicidade

Até agora, discutimos a felicidade como se esta fosse, em grande medida, produto de fatores materiais, como saúde, dieta e riqueza. Se as pessoas são mais ricas e mais saudáveis, também devem ser mais felizes. Mas isso é mesmo assim tão óbvio? Filósofos, padres e poetas refletiram sobre a natureza da felicidade durante milênios, e muitos concluíram que fatores sociais, éticos e espirituais têm tanta influência sobre nossa felicidade quanto as condições materiais. E se as pessoas nas sociedades afluentes modernas sofrem muitíssimo de alienação e carência de sentido, apesar de sua prosperidade? E se nossos ancestrais menos abastados encontravam grande contentamento na comunidade, na religião e em um vínculo com a natureza?


Nas últimas décadas, psicólogos e biólogos aceitaram o desafio de estudar cientificamente o que de fato deixa as pessoas felizes. É o dinheiro, a família, a genética ou, talvez, a moral? O primeiro passo é definir o que será medido. A definição geralmente aceita de felicidade é “bem-estar subjetivo”. A felicidade, de acordo com essa visão, é algo que sinto dentro de mim, uma sensação de prazer imediato ou de contentamento no longo prazo com o modo como minha vida avança. Se é algo sentido do lado de dentro, como pode ser medido de fora? Supostamente, podemos fazer isso pedindo que as pessoas nos digam como se sentem. Desse modo, os psicólogos e biólogos que desejam avaliar o quanto as pessoas se sentem felizes lhes dão questionários para responder e computam os resultados.

Um típico questionário sobre bem-estar subjetivo pede aos entrevistados para avaliarem em uma escala de zero a dez o quanto concordam com afirmações do tipo “Sinto-me satisfeito com minha forma de ser”, “Sinto que a vida é muito satisfatória”, “Sou otimista com relação ao futuro” e “A vida é boa”. O pesquisador, então, soma todas as respostas e calcula o nível geral de bem-estar subjetivo do entrevistado.

Tais questionários são usados para correlacionar a felicidade com vários fatores objetivos. Um estudo pode comparar mil pessoas que ganham 100 mil dólares por ano com mil pessoas que ganham 50 mil dólares por ano. Se o estudo descobrir que o primeiro grupo tem um nível médio de bem-estar subjetivo de 8,7, ao passo que o segundo grupo tem um nível médio de apenas 7,3, o pesquisador pode concluir, de maneira razoável, que há uma correlação positiva entre riqueza e bem-estar subjetivo. Dito de forma simples, dinheiro traz felicidade. O mesmo método pode ser usado para examinar se pessoas vivendo em democracias são mais felizes que pessoas vivendo em ditaduras e se os casados são mais felizes que os solteiros, divorciados ou viúvos.

Isso fornece uma base para os historiadores, que podem examinar a riqueza, a liberdade política e os índices de divórcio no passado. Se as pessoas são mais felizes em democracias e as pessoas casadas são mais felizes que as divorciadas, um historiador tem uma base para argumentar que o processo de democratização das últimas décadas contribuiu para a felicidade da humanidade, ao passo que os índices crescentes de divórcio indicam uma tendência oposta.

Essa maneira de pensar não é isenta de falhas, mas, antes de apontar algumas delas, vale considerar suas descobertas.

Uma conclusão interessante é que, de fato, o dinheiro traz felicidade. Mas só até certo ponto, e além desse ponto tem pouca significância. Para as pessoas presas na base da pirâmide econômica, mais dinheiro significa mais felicidade. Se você é uma mãe solteira brasileira que ganha 12 mil reais por ano limpando casas e de repente ganha 500 mil reais na loteria, provavelmente sentirá um aumento significativo e duradouro em seu bem-estar subjetivo. Conseguirá alimentar e vestir seus filhos sem se afundar ainda mais em dívidas. No entanto, se você é um alto executivo que ganha 250 mil reais por ano e de repente ganha 1 milhão de reais na loteria, ou se a diretoria de sua empresa de repente decide dobrar seu salário, é provável que seu aumento no bem-estar subjetivo dure apenas algumas semanas. De acordo com descobertas empíricas, é quase certo que não fará uma grande diferença no modo como você se sente no longo prazo. Você comprará um carro mais pomposo, se mudará para uma casa suntuosa, se acostumará a comer coisas mais sofisticadas e a tomar os melhores vinhos, mas logo tudo isso parecerá rotineiro e nada excepcional.

Outra descoberta interessante é que a doença diminui a felicidade no curto prazo, mas só é fonte de sofrimento no longo prazo se as condições de vida de uma pessoa se deteriorarem de forma constante ou se a doença envolver dor contínua e debilitante. As pessoas que são diagnosticadas com doenças crônicas como diabetes geralmente ficam deprimidas por um tempo, mas, se a doença não piorar, elas se ajustam à nova condição e classificam sua felicidade nos mesmos patamares que as pessoas saudáveis. Imagine que Lúcia e Lucas são gêmeos de classe média, que concordam em participar de um estudo sobre bem-estar. Ao voltar do laboratório de psicologia, o carro de Lúcia é atingido por um ônibus, deixando-a com uma série de ossos fraturados e uma perna permanentemente danificada. Enquanto a equipe de resgate a está tirando do meio das ferragens, o telefone toca e Lucas grita que acabou de ganhar 10 milhões de reais na loteria. Dois anos depois, ela estará mancando e ele estará muito mais rico, mas, quando o psicólogo aparece para um estudo de acompanhamento, ambos tendem a dar as mesmas respostas que deram na manhã daquele dia fatídico.

Família e comunidade parecem ter mais impacto na nossa felicidade do que dinheiro e saúde. Pessoas com famílias coesas que vivem em comunidades unidas que lhes dão apoio são significativamente mais felizes do que pessoas cujas famílias são disfuncionais e que nunca encontraram (ou nunca buscaram) uma comunidade da qual fazer parte. O casamento é particularmente importante. Repetidos estudos descobriram que há uma relação muito direta entre bons casamentos e nível elevado de bem-estar subjetivo e entre maus casamentos e sofrimento. Isso é verdade independentemente de condições econômicas ou mesmo físicas. Um inválido sem recursos cercado por uma esposa amorosa, uma família dedicada e uma comunidade afetuosa pode se sentir melhor do que um bilionário alienado, contanto que a pobreza do inválido não seja extrema e que sua doença não seja degenerativa nem dolorosa.

Isso levanta a possibilidade de que a melhoria gigantesca nas condições materiais dos últimos dois séculos tenha sido compensada pelo colapso da família e da comunidade. As pessoas no mundo desenvolvido contam com o Estado e o mercado para quase tudo de que necessitam: alimento, abrigo, educação, saúde, segurança. Desse modo, tornou-se possível sobreviver sem ter uma família estendida ou amigos reais. Um indivíduo que mora em uma cobertura urbana é cercado por milhares de pessoas onde quer que vá, mas possivelmente jamais visitou o apartamento vizinho e sabe muito pouco sobre seus colegas de trabalho. Até mesmo seus amigos talvez sejam apenas companheiros de bar. Hoje, muitas amizades envolvem pouco mais do que conversar e se divertir juntos.

Encontramos um amigo em um bar, telefonamos para ele ou lhe enviamos um e-mail para aliviar nossa raiva sobre o que aconteceu hoje no escritório ou compartilhar nossas opiniões sobre o último escândalo político. Mas até que ponto podemos conhecer bem uma pessoa somente com base em conversas?
Diferentemente de tais companheiros de bar, os amigos na Idade da Pedra dependiam uns dos outros para sua própria sobrevivência. Os humanos viviam em comunidades solidárias, e os amigos eram pessoas com quem se caçava mamutes. Juntos, sobreviviam a longas jornadas e a invernos rigorosos.

Cuidavam um do outro quando um deles ficava doente, e compartilhavam a última porção de comida em épocas de necessidade. Tais amigos conheciam uns aos outros mais intimamente do que muitos casais de nossos dias. Quantos maridos podem dizer que sabem qual será o comportamento da esposa se eles forem atacados por um mamute enfurecido? Substituir tais redes tribais precárias pela segurança das economias e dos Estados paternalistas modernos obviamente tem vantagens enormes, mas é provável que a qualidade e a profundidade das relações íntimas tenha sido afetada.

Mas a descoberta mais importante de todas é que a felicidade não depende de condições objetivas de riqueza, saúde ou mesmo comunidade. Em vez disso, depende da correlação entre condições objetivas e expectativas subjetivas. Se você quer uma carroça e consegue uma carroça, fica contente. Se você quer uma Ferrari zero e só consegue um Fiat usado, sente que algo lhe foi negado. É por isso que ganhar na loteria tem, com o tempo, o mesmo impacto sobre a felicidade das pessoas que um acidente de carro debilitante. Quando as coisas melhoram, as expectativas inflam, e consequentemente até mesmo melhorias drásticas nas condições objetivas podem nos deixar insatisfeitos. Quando as coisas se deterioram, as expectativas diminuem, e consequentemente até mesmo com uma doença grave a pessoa pode ser tão feliz quanto era antes.

Você poderia dizer que não precisamos de um bando de psicólogos e seus questionários para descobrir isso. Profetas, poetas e filósofos perceberam, há milhares de anos, que estar satisfeito com o que você já tem é muito mais importante do que obter mais daquilo que deseja. Ainda assim, é bom quando pesquisas atuais – sustentadas por uma porção de números e gráficos – chegam à mesma conclusão a que os antigos chegaram.

Yuval Noah Harari, "Sapiens: uma breve história da humanidade"

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