sábado, 22 de junho de 2019

Não armar o povo: a melhor forma de evangélicos mostrarem que seguem Jesus

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que se orgulha de ser um imitador de Trump, o excêntrico presidente dos Estados Unidos, surpreende a cada dia com declarações que na boca de qualquer estadista produziriam calafrios. Por exemplo, quando no dia 15, em Santa Maria (RS) durante a Festa Nacional da Artilharia (Fenart), afirmou que armar a população pode evitar um golpe de Estado.

O presidente foi explícito: "Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo para que tentações não passem pela cabeça de governantes para assumir o poder da forma absoluta". Mas o presidente não defendeu durante toda a campanha a possibilidade de que cidadãos comuns pudessem estar armados para se defender da violência no país? Que salto de malabarismo é esse de dizer que é bom que os brasileiros estejam armados, como o Exército, como um antídoto e barreira contra um possível golpe de Estado dos "governantes"? Será que ele se esqueceu que é ele quem governa a nação com os outros poderes do Estado? Será que está insinuando que o Congresso ou o Supremo Tribunal Federal poderiam preparar um golpe de Estado contra ele?


Sem dúvida, Bolsonaro está decepcionado e mal-humorado pela derrota sofrida no Senado, por uma grande maioria, com a rejeição de seu decreto em favor de armar os cidadãos. E agora deve estar preocupado que o Congresso Nacional também possa derrubar esse polêmico decreto que, segundo o IBOPE, é rejeitado por 70% dos cidadãos.

São muito graves as palavras do presidente, que deseja agora que os cidadãos estejam armados para poder evitar a tentação de um golpe por parte de governantes e não do Exército, embora ele continue defendendo e justificando a ditadura brasileira. É grave porque Bolsonaro insinua a possibilidade de uma guerra civil no caso de algum dos poderes do Estado cair na tentação de dar um golpe. Golpe contra quem? Contra ele, naturalmente.

Ele parece ignorar, o presidente obcecado pelas armas, os golpes e guerras, que hoje conta com apenas 30% de consenso no país. No caso insano de que algum dos poderes, fora do Exército, tentasse um golpe de Estado, o presidente imagina que o Brasil inteiro, já armado por ele, sairia às ruas para defendê-lo sem dar lugar a uma guerra entre irmãos? Por que esse medo se, além do mais, conta com o Exército, do qual 103 de seus integrantes constituem a metade dentro do Governo?

Para aqueles que, como eu, sofreram na carne durante a infância a Guerra Civil Espanhola entre irmãos, com mais de um milhão de mortos, à qual se seguiu não uma democracia, mas uma dura ditadura de mais de 40 anos que deixou a nação dividida até hoje, causaram arrepios essas piadas do religioso presidente brasileiro, que mal começou a governar e já está insinuando fantasmas conspiratórios e querendo armar a população para o caso de um hipotético golpe contra ele.

Tomara que os congressistas evangélicos do Congresso sigam os senadores e ajudem a derrotar esse fantasma de armar os cidadãos já pensando até em uma guerra. Seria a melhor maneira de demonstrar que eles estão realmente do lado de Jesus, que quando estava para ser preso para que fosse julgado, impediu um de seus apóstolos de usar a espada para defendê-lo. "Aquele quem com ferro mata com ferro morre", disse-lhe Jesus.

Esse mesmo Jesus que cerca de um milhão de evangélicos honraram durante a Marcha de São Paulo. Quando perguntei a Gustavo, um amigo meu, diretor de uma escola de música, quantos tinham comparecido à Marcha de Jesus, em São Paulo, respondeu irônico: "Todos menos Ele". Certamente, Jesus, que disse "bem-aventurados os pacíficos", nunca estaria ao lado daqueles que pronunciam apenas palavras sombrias como armas, guerras, ódios, medos, golpes. Será que já não servem à humanidade as palavras de luz, que criam paz, harmonia, diálogo entre diferentes e ainda são capazes de trocar as armas por campos de trigo e felicidade?
Juan Arias

Imensidão do Brasil


Conspiração de silêncio

É por isso que adoro romances de espionagem. Partem de tramas tão intrincadas que, já na segunda página, nos esquecemos de como elas são improváveis. O inglês John Le Carré é o mestre do gênero. Ou era —porque, agora, temos Lula e Jair Bolsonaro.

Há dias, Adélio Bispo de Oliveira, autor da facada no candidato Bolsonaro em Juiz de Fora, em 2018, foi absolvido pelo Código de Processo Penal por ser inimputável, portador de uma doença mental. Ficará num presídio de segurança máxima, mas isso só reforçou a dúvida do ex-presidente Lula sobre se houve mesmo a facada. “Não aparece sangue…”, insinuou ele, numa entrevista.

Para Lula, o golpe em Bolsonaro deve ter sido feito com uma faca retrátil, de teatro, daí a falta de sangue. Para tornar a história plausível, armou-se previamente uma conspiração envolvendo o povo de Juiz de Fora, a equipe do hospital local, os que transportaram Bolsonaro para São Paulo, o pessoal do Albert Einstein que simulou operá-lo e os funcionários dos laboratórios que fingiram analisar suas tripas. Quem seria o cérebro por trás disso? Milhares de pessoas tomaram parte na farsa e, incrível, até hoje ninguém quebrou o pacto de silêncio.

O presidente Bolsonaro, por sua vez, também não admite a sentença. Para ele, Bispo foi apenas a mão que lhe cravou a faca. Por trás dela, haveria uma rede envolvendo o PT, o PC do B, o PSOL, o centrão, os ideólogos, sindicalistas, professores, jornalistas, cientistas de humanas, atores, cantores, índios, ecologistas, pacifistas, gays, lésbicas, praticantes de sexo urinário e idiotas em geral. Todos se articularam para que um ativista contratado o esfaqueasse entre milhares de pessoas e fosse preso ou linchado. E, para disfarçar, confiaram a tarefa a um —este, sim, reconhecidamente— idiota.

Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, os psiquiatras que examinaram Bispo também devem estar na conspiração. E louco é o Bispo.

Bolsonaro gosta de quem o adula, e ignora o risco disso

Demitido na semana passada, Carlos Alberto dos Santos Cruz caiu na desgraça de Jair Bolsonaro no dia 13 de maio, quando circularam nas redes sociais mensagens datadas de uma semana antes em que o então ministro da Secretaria de Governo se referia a um dos filhos de Bolsonaro como “desequilibrado” e a um “Fábio” como “frouxo” — alusões provavelmente a Carlos Bolsonaro e Fábio Wajngarten, o secretário de Comunicação. Na conversa, o suposto Santos Cruz também concordava quando alguém chamava Bolsonaro de covarde. Quando revelada a conversa, Santos Cruz foi a público dizer que se tratava de uma montagem e lembrou que, no horário em que teria se dado o diálogo, estava num voo a trabalho. Sugeriu, ainda, que a Polícia Federal investigasse o caso. O problema é que Bolsonaro nunca acreditou na versão de Santos Cruz. Nascia ali uma fenda na relação de anos entre o general e o capitão, que desaguou na demissão da semana passada. O episódio, entretanto, simboliza um dos traços mais marcantes do jeito Bolsonaro de governar. O presidente gosta de se cercar de quem o venera. Para ele e para seus filhos, a demonstração de apreço incondicional é fundamental. Críticas, em nenhum grau, são bem-vindas. Enfeitiçados pela ideia do “mito”, os Bolsonaros ignoram o risco que é estar cercado por quem não os contraria.


Mais que a competência, o que de fato importa para os Bolsonaros é a lealdade de quem os cerca. Quando descrevem algum ministro ou assessor de que gostam, eles são mais elogiosos com aqueles em que identificam uma paixão sem limites por Jair. Demonstrações públicas de admiração por Bolsonaro valem dois pontos no boletim da família. Na semana passada, quando ministros e assessores atacaram Lula, saindo em defesa de Bolsonaro, o presidente vibrou. Quando Filipe Martins, o assessor de Bolsonaro para Twitter (e relações internacionais), defende o chefe nas redes, a família também aplaude. Wajngarten, o secretário que Santos Cruz nunca engoliu, também é volta e meia citado pelos filhos como um empenhado assessor de Bolsonaro.

Muitos desses apoiadores percebem o valor que essa paixão cega tem para Bolsonaro e usam isso para ganhar prestígio. Santos Cruz não o fazia. Contrariou Bolsonaro em diversos episódios, a exemplo da cobrança que fez ao presidente por não ter passado por ele a nomeação de Wajngarten, seu subordinado. Gustavo Bebianno também não. O ex-presidente do PSL foi um dos que criticaram os excessos de Carlos. Bolsonaro não gostou.

O exemplo mais recente de integrante do governo implodido por questionar Bolsonaro foi Joaquim Levy. O ex-presidente do BNDES nunca abraçou o discurso de que haveria uma caixa-preta de irregularidades prestes a explodir. Aliás, nem o próprio BNDES. Na seção “Perguntas e respostas” do site oficial do BNDES, o banco é claro sobre não enviar dinheiro diretamente para nenhum governo no exterior, mas sim financiar a exportação de bens e serviços de empresas brasileiras lá fora. Levy já havia demonstrado a Bolsonaro que o discurso dele era falso também sobre a suposta prioridade dada a exportações para a Venezuela e para Cuba: o maior destino dessas operações são... os Estados Unidos. Bolsonaro não aceitava o que ouvia.

De certa maneira, Hamilton Mourão também foi vítima dessa falta de predisposição de Bolsonaro para ouvir o divergente. Ainda na campanha, o vice-presidente dissera que não seria decorativo, e Bolsonaro não deu a ele uma função no governo. Sem ser ouvido nos bastidores, Mourão passou a, publicamente, dar seus recados. Criticou a política externa, a Comunicação, a falta de propostas para a Educação. Recentemente, passou a ouvir apelos dos próprios generais para que não falasse mais publicamente. Decidiu dar um tempo nas entrevistas. Engatilhada há tempos, sua entrevista para o New York Times, veículo odiado por dez entre dez olavistas, foi adiada para um futuro ainda indefinido.

A falta de conexão com a realidade preocupa os militares que atuam no Palácio do Planalto. A Secretaria de Comunicação continua sem nenhum contrato com institutos de pesquisa que possam dar ao presidente uma medição de sua popularidade encomendada pelo governo. Bolsonaro não acredita nas grandes empresas de pesquisa, como o Ibope e o Datafolha — o termômetro em que confia é o do calor de suas bolhas no Twitter e no Facebook, sempre medido por Carlos Bolsonaro e assessores como Filipe Martins.

Os mais radicais, chamados ora de ideológicos, ora de olavistas, vêm ganhando boa parte das batalhas junto a Bolsonaro porque sabem explorar esse sentimento da família.

Vale tudo nessa hora: manter o clima de campanha, atacar PT, PSOL e todos os tons de vermelho e até alimentar a narrativa de que Bolsonaro tem um quê de enviado divino — não são incomuns, em conversas privadas com Bolsonaro, as referências à “mão divina” que o protegeu de algo pior na facada.

Percebendo isso, muitos militares e integrantes de outros grupos do governo têm escolhido em quais bolas divididas devem entrar. O curioso é que fenômeno semelhante norteou durante muito tempo a relação que Dilma Rousseff, na posição oposta a Bolsonaro no espectro ideológico, tinha com seus assessores. Dilma também não gostava de ser contrariada. Quem discordasse dela deveria estar munido de muitos dados — aos quais nem sempre a presidente prestava atenção. Deu no que deu.

A notícia ruim para Bolsonaro vem de Nicolau Maquiavel e de seu "O Príncipe", que traz um capítulo inteiro para ensinar o governante a se livrar de aduladores. “Não há outro meio de guardar-se da adulação a não ser fazendo com que os homens entendam que não o ofendem dizendo a verdade”, escreveu o florentino. Mas, no mesmo capítulo, Maquiavel também escreveu que pouco importam os bons conselhos se não há ouvidos dispostos a captá-los: “Os bons conselhos, venham de onde vierem, devem nascer da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe resultar dos bons conselhos”. Nestes quase seis meses de governo, entretanto, o reino de Bolsonaro teve mais golden shower do que prudência.
Guilherme Amado

Crise tem rosto do presidente, não dos ministros

É preciso chamar as coisas pelo nome. Jair Bolsonaro fez uma reforma ministerial. Em menos de seis meses de mandato, o capitão trocou quatro dos seus 22 ministros. Repetindo: antes de atingir a metade do primeiro ano de mandato, o presidente da República já substituiu 18% do seu time ministerial. Mexeu inclusive no pedaço fardado da equipe, que se imaginava mais estável.

Num primeiro momento, foram ao olho da rua Ricardo Vélez, da Educação; e Gustavo Bebbiano, da secretaria-geral da Presidência. Agora, caíram os generais Santos Cruz, da Secretaria de Governo; e Floriano Peixoto, que havia sucedido Bebianno na secretaria-geral e foi rebaixado para a presidência dos Correios. Incluindo-se na dança de cadeiras o presidente do BNDES, Joaquim Levy, e o segundo escalão da Esplanada, as demissões passam de 20.

Por que o governo trocou tanta gente em tão pouco tempo? O general Santos Cruz, um dos demitidos, ofereceu a melhor resposta. O governo perde tempo com "bobagens" e "fofocagem", ele disse. "É um show de besteiras. Isso tira o foco daquilo que é importante", acrescentou. De fato, o governo é pródigo na produção de crises inúteis. E Bolsonaro revelou-se um mago: as crises entram pequenas no seu gabinete e saem de lá enormes e ameaçadoras.

Bolsonaro referiu-se de forma singela à carbonização de auxiliares. Comparou certos ministros a fusíveis. Ele disse: "Para evitar queimar o presidente, eles se queimam." Quantos ministros ainda serão eletrocutados até que o presidente consiga passar uma imagem de tranquilidade?, eis a questão a ser respondida. Bolsonaro mudou a equipe. Mas continua o mesmo. Ainda não se deu conta do essencial: num governo marcado pela instabilidade, o rosto do presidente é o rosto do problema.

Pensamento do Dia


Outros tempos, a mesma patrulha ideológica

Na coluna de 7 de junho (“Reconstruindo Chico”), mencionei de passagem o Cemitério dos Mortos-Vivos, onde o cartunista Henfil enterrava simbolicamente as personalidades que, a seu ver, teriam colaborado com o regime de 64. Dos muitos zumbis que despachou para lá (bem antes de zumbis serem "fashion"), lembrei no texto os três que mais admiro: Elis Regina, Carlos Drummond e Clarice Lispector.

Nenhum deles apoiou a ditadura: tudo não passou de patrulha ideológica. À Elis, por cantar o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército, em 1972; ao Drummond e à Clarice, por supostamente serem “alienados” (uma espécie de “isentões” da época).

De alienada ou isentona Clarice não tinha nada: manifestou-se contra o arbítrio e esteve na linha de frente da Passeata dos Cem Mil. Elis já havia gravado “Dois na bossa”(com Jair Rodrigues, e repleto de canções “engajadas”); mais tarde não só participou de shows para arrecadar dinheiro para o Fundo da Greve do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo como deu voz a “O bêbado e a equilibrista”, hino informal da campanha pela anistia.


Nessa mesma época, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Glauber Rocha também foram tachados de “alienados” por acreditar na abertura democrática, mas não chegaram a ir para a cova.

Henfil se retratou parcialmente: “Eu só me arrependo de ter enterrado duas pessoas — Clarice Lispector e Elis Regina. (…) Eu não percebi o peso da minha mão.” Talvez não tenha tido tempo de tornar a mão mais leve e se redimir também pelo Drummond, o autor da “Rosa do povo” — livro anterior à ditadura e que animou muita gente na luta pela redemocratização.

O cartunista que decretava mortos em vida os artistas e intelectuais que ousassem não ser assumidamente de esquerda acabou por sepultar a si mesmo (ainda que por outros motivos) nessa necrópole virtual administrada pelo Cabôco Mamadô — suspeitíssima entidade que já havia aspirado a massa encefálica de Marília Pêra, Paulo Gracindo, Nelson Rodrigues, Bibi Ferreira, Rachel de Queiroz e outros tantos supostos simpatizantes do governo.

Na biografia desses enterrados sob sete palmos de desprezo, a passagem pelo Cemitério dos Mortos-Vivos é uma nota de rodapé. Diz muito mais a respeito daquele momento de radicalização que sobre a importância de cada um na cultura brasileira, incluindo o genial Henfil (e sua mão pesada quando o assunto envolvia política).

“Esse é tempo de partido / tempo de homens partidos”, escreveu Drummond.

“Os dias eram assim”, cantou Elis.

Os dias agora são outros, mas a patrulha é a mesma. É como estar reféns de um “feitiço do tempo”, o tempo de homens partidos num país dividido. Até o cemitério, que se imaginava fechado para todo o sempre, foi ressuscitado pelo filho do seu criador, com as exéquias de Nana Caymmi.

Nana (como Roger, do Ultraje, ocupante do jazigo ao lado), não defende ditadura ou barbárie. Apenas votou no candidato de sua preferência, como se faz em qualquer democracia. E não tem papas na língua, nem medo de desafinar o coro dos que acham que artista bom é artista de esquerda.

Em condições totalmente diversas das de 50 anos atrás, a persistência das patrulhas mostra como a polarização acaba por nos tornar bipolares — ou, pelo menos, desconexos. E dá-lhe querer combater o (suposto) fascismo com métodos fascistas, defender a liberdade de expressão na base do cala-boca. Achar que “nós” somos o lado certo da História, e “eles”, a escória. Que nossas ilegalidades são mais legais. Que nossa alma é a mais honesta; nossa causa, a mais justa, e que isso nos coloca acima da lei. A “nós”, o poder; a “eles”, o cemitério. Se Deus (ou seu equivalente humano) está conosco, quem “eles” acham que são para estar contra “nós”?

Não vamos chegar a lugar nenhum enquanto levarmos a sério o que Millôr disse com “democracia é quando eu mando em você; ditadura é quando você manda em mim”. E o artista, como qualquer cidadão, não puder escrever sobre o que bem entender, apoiar quem quiser, falar o que lhe der na telha, sem ir direto para o Céu ou para o Inferno.

O cubo, que é um sólido geométrico relativamente simples, tem seis lados. O Brasil, com toda a sua complexidade, parece condenado a ter só dois.

Sem enredo

As pessoas são capazes de fazer qualquer coisa para não admitir que suas vidas não têm significado. Não têm utilidade, melhor dizendo. Não têm enredo
Margaret Atwood

Rumo à estação 22

Entre os vários assuntos a respeito dos quais é mais fácil falar do que fazer, a interrupção de mandatos presidenciais ocupa o topo da lista. Certamente porque passamos por dois processos de impedimento em menos de trinta anos e o mundo não se acabou. Donde a banalização do tema. A ponto de hoje ter virado lugar-comum em qualquer conversa pessoal ou digital dizer de maneira peremptória que Jair Bolsonaro não termina o mandato.


Pode terminar ou não, e, nessa hipótese, esses autores terão acertado à maneira dos relógios parados que duas vezes ao dia marcam a hora certa. Não há, por enquanto, evidências nesse sentido. O desempenho insatisfatório, a ocorrência de exorbitâncias oratórias, o exercício da boçalidade explícita e a inadequação dos atributos da pessoa às exigências do cargo não estão entre os fatores em que a Constituição prevê o afastamento definitivo de presidentes da República.

Isso sob o aspecto frio da lei. No ambiente quente da política, para a interrupção de mandato também são exigidas determinadas condições que por ora não estão postas. A principal delas, a existência de pessoas ou de grupos preparados e/ou interessados em ocupar a vacância decorrente do impeachment. Tal situação não se configura no momento. Isso não quer dizer, contudo, que os pretendentes à ocupação do poder ainda que no tempo regulamentar não estejam se mexendo desde já.

Para fazer uso de uma metáfora-chavão, digamos que 2022 seja um ano que já começou. Nada de anormal, pois os arranjos eleitorais funcionam à semelhança das escolas de samba, cujos preparativos para o Carnaval seguinte se iniciam assim que as alas se dispersam na Praça da Apoteose.

Não usual, entretanto, é que as articulações com vistas à próxima disputa presidencial ocorram no campo governista, que, em tese, ainda deveria estar unido no legítimo usufruto do poder recentemente delegado pelas urnas. Pois eis que entre outras esquisitices protagonizadas pelos vencedores de 2018 está a movimentação explícita de gente até outro dia aliada a Jair Bolsonaro na direção oposta.

Há os que o fazem de modo implícito (e são até os que não eram tão aliados assim) e os que atuam de maneira explícita. No primeiro caso está Rodrigo Maia, que não perde a chance de pontuar a necessidade de a direita firmar uma agenda para o país e não faz isso voltado para a eleição estadual do Rio de Janeiro, cuja situação penosa não se mostra atrativa para candidatos a governador.

No segundo caso está o governador de São Paulo, João Doria, que na campanha foi incansável ao correr atrás de Bolsonaro e hoje circula por salões dando a entender que já abandonou aquela canoa e se prepara para comandar a própria embarcação.

O presidente pode até ficar aborrecido com a sensação de que foi usado por políticos apenas interessados na derrota do PT. Só não pode reclamar de ser tratado com leviandade política e falta de consideração pessoal porque o desrespeito, a sem-cerimônia no descarte e a inapropriada descontração têm sido as marcas de sua atuação. É a madeira que bate em Chico e por isonomia atinge Francisco.
Dora Kramer

Falta bom senso nas redes sociais? Ou tem demais?

“O bom senso”, escreveu René Descartes na abertura do "Discurso do método", “é a coisa mais bem compartilhada do mundo.” Mal poderia ele prever o que se compartilha hoje nas correntes de WhatsApp, fios do Twitter, comentários de Facebook ou grupos do Telegram. Parece haver de tudo nas redes sociais, menos um pingo de bom senso. Só que todos os que “compartilham” suas opiniões, ideias e — suspiro... — memes julgam tê-lo. Ninguém acha que tem pouco. “O que quer que alguém acredite ser questão de bom senso, acredita com certeza absoluta. Só fica espantado com o fato de que outros discordem”, diz o sociólogo canadense-australiano Duncan J. Watts em "Tudo é óbvio — Desde que você saiba a resposta". Lançado em 2011 nos Estados Unidos, o livro analisa as peças que o senso comum nos prega. Instintivo, natural, prático, o bom senso é essencial nas decisões cotidianas individuais: que roupa vestir, como pegar o metrô, quando obedecer às regras, quando ignorá-las e coisas do tipo. Mas se torna um péssimo guia para as decisões de natureza coletiva, relativas a política, Direito, economia ou cultura.

“Sempre que discutimos sobre política, economia ou a lei, usamos implicitamente nosso bom senso para extrair conclusões sobre como a sociedade será afetada”, afirma Watts. “Em nenhum desses casos raciocinamos sobre como devemos nos comportar, mas sobre como os outros se comportaram — ou se comportarão — em circunstâncias sobre as quais temos no máximo compreensão parcial.” Praticamente todas as discussões nas redes sociais padecem dessa deficiência: das cadeirinhas infantis à posse de armas, da homofobia às vacinas, da reforma da Previdência às privatizações, da intervenção na Venezuela aos vazamentos da Operação Lava Jato.

Watts é meticuloso ao despir o senso comum da aura sobrenatural de que se reveste para nos proteger das opiniões discordantes, da complexidade inerente às questões humanas e de nossa resistência para lidar com a ignorância diante de conhecimentos que não dominamos. Desmistifica os agentes racionais da economia, mostra que nem sempre penalidades inibem desvios, prova que os mesmos incentivos podem resultar em reações diferentes dependendo de fatores culturais, descreve como elementos aparentemente irrelevantes alteram decisões, constata que filtramos informações segundo nossas opiniões prévias, revela como somos presas de raciocínios circulares e de toda sorte de viés cognitivo. O principal deles é aquele que dá título ao livro: tudo parece óbvio depois que já aconteceu. Há uma diferença, bem menos óbvia, porém, entre entender o passado e usá-lo para prever o futuro.

Formado em física, doutor em sociologia e hoje pesquisador na Microsoft, Watts ficou conhecido pelo pioneirismo no estudo da disseminação de informações nas redes sociais (em sua tese, explorou a ideia célebre dos seis graus de separação entre duas pessoas). Com base em suas pesquisas, questiona o mito dos “influenciadores” digitais e analisa as razões reais do sucesso da "Mona Lisa" ou das músicas que chegam ao topo das paradas. Desvenda o enigma da violência nos protestos de rua. Mostra quanto a sorte e as circunstâncias podem ser mais relevantes que conceitos difusos como talento, genialidade ou “pessoas especiais”.

Mais que tudo, Watts faz um alerta para que ninguém julgue o próprio bom senso algo especial. É comum, diz ele, amigos e colegas aceitarem seu argumento no sentido abstrato, mas o rejeitarem quando aplicado às opiniões que abraçam com força. “É como se os erros do bom senso fossem apenas dos outros, não deles próprios.” O recado de Watts não poderia ser mais sensato: não é porque alguém discorda que é necessariamente idiota, canalha ou, para empregar o lugar-comum, “desonesto intelectualmente”. E não há nenhuma vergonha em mudar de opinião. Questão de bom senso, não parece?
Helio Gurovitz