O casal mora lá, embaixo de uma longa marquise pintada de verde, a poucos minutos do cruzamento entre a Rebouças e a Faria Lima. Naquele mesmo endereço já funcionou um supermercado de luzes escassas, com ares mofados de entreposto comercial. Hoje, com suas portas de metal bem trancadas, o imóvel não tem mais nenhuma função social ou mercantil. Só a calçada, apenas ela, encontrou uma utilidade: virou dormitório popular. Foi lá que o jovem casal fixou residência, em pacífica vizinhança com outros moradores. Os colchões perfilados, mudos e discretos se organizaram para não incomodar ninguém: tiveram o cuidado de deixar livre uma boa faixa do calçamento para que os pedestres trafeguem, sem virar a cabeça.
A moça é alta, bonita. Dos seus olhos grandes e claros, realçados pelo tom bronzeado do rosto, escorre uma sensação de paz que às vezes alcança quem passa por ali. O nariz descreve um arco pronunciado, numa ponte fina entre a testa e os lábios. Elegante e delgado, o nariz denota personalidade, mas não arrivismo. Quando ela se espreguiça sobre o cobertor bem esticado, no meio da tarde, deixa ver que está feliz. Temos algo a aprender com ela.
A moça, o marido e os vizinhos às vezes almoçam no mesmo lugar em que dormem. Conversam sobre isso e aquilo. Malas puídas fazem as vezes de mesinhas de cabeceira. Caixas de papelão desmontadas e dispostas ao lado, como divisórias, ajudam a cortar o vento e a demarcar os domínios da privacidade de cada um dos lares enfileirados.
Um dia desses estava lá, estacionada ao lado, uma viatura do Samu. Um profissional de saúde examinava a cidadã dos olhos calmos, que, naquela hora, se apertavam numa expressão de dor. Ela estava sentada na beirada de seu endereço, com os pés descalços sobre o piso público. Com as duas mãos, apertava o lado esquerdo do ventre. Duas tardes depois estava lá outra vez, com aquele ar de plenitude que só os seres humanos a quem não falta nada conseguem experimentar. Sim, temos algo a aprender com ela.
E com tantos mais. Os moradores de rua se multiplicaram por São Paulo. Na Amaral Gurgel, sob o Minhocão, há barracas reforçadas com camadas adicionais de lona plástica, ao lado de leitos ao relento. Na ligação entre a Avenida Paulista e a Doutor Arnaldo, naquele túnel avarandado que cruza por baixo a cabeceira da Consolação, as barraquinhas-dormitórios se proliferaram como numa florada. Quem passa por ali vê as rodas de conversa, que lembram as cadeiras na calçada das pequenas cidades do interior.
Emoldurada pelas luzinhas de Natal que eclodem nas fachadas das instituições financeiras, a nova ocupação urbana faz a gente pensar em presépios vivos. A metáfora é piegas, bem se sabe, mas é impositiva.
Nós somos uma cidade que gera desabrigados em escala superindustrial. Nós somos uma cidade que produz pobreza, fome e desamparo, mas não sabemos o que somos e o que fazemos. Não vemos a segregação que fabricamos. Somos uma cidade que fecha os olhos para os presépios de carne e osso e faz orações pungentes diante dos presépios de mentirinha – alguns deles caríssimos, financiados pelos bancos sobre o pavimento da Paulista.
Os moradores de rua se multiplicam na mesma proporção que os lucros dos financistas. Em 2019, o Censo da População em Situação de Rua contabilizou 24,3 mil sem-teto em São Paulo. Agora, as estimativas dão conta de 66 mil paulistanos sem casa para morar. A pandemia piorou o quadro. Dizem as estatísticas que 19 milhões de cidadãos passam fome no Brasil. As estatísticas não têm nem rosto nem coração, mas o mais perturbador é que nós, nós mesmos, os presunçosos aqui que nos gabamos de saber ler as estatísticas, parecemos não ter nem rosto, nem coração, nem responsabilidade. É como se não fosse com a gente.
Nós somos a metrópole que morrerá de insensibilidade. Nós somos a nação que morrerá de meritocracia, sem saber que os famintos e os degredados formam conosco um só corpo. Nós nunca entendemos o que isso significa, encastelados no alto de nossas petulâncias patéticas. Nós ainda estamos longe de saber que pior do que ter um colchão por domicílio é ter a ostentação como ideal de gozo.
Mas não há de ser nada, sejamos otimistas. É Natal, você sabe, então sejamos confiantes no tal do futuro melhor. Imaginemos que a cidade de São Paulo e o Brasil conseguirão atravessar este desfiladeiro de vergonha e horror e que, lá adiante, a gente possa ver o tempo que terá passado em fotografias nos livros de História. Isso na perspectiva otimista, é claro. Imaginemos a retórica que teremos de inventar para explicar o nosso desprezo cruel pelo sofrimento dos nossos iguais. Por que não fizemos nada quando podíamos ter feito tudo?
No futuro, se houver futuro, os retratos dos padecimentos que fabricamos nas ruas e nas periferias do Brasil serão tão chocantes quanto as cenas que hoje guardamos do gueto de Varsóvia. Diremos o quê? Que a culpa não era nossa? Enquanto isso, a moça bonita e seu marido talvez passem o Natal sob a marquise. Contentes, a seu modo. Sem máscara.
No escurinho do Planalto, o golpismo continua em alta. Conselheiro presidencial e crítico contumaz do STF, o general Augusto Heleno reeditou a avaliação de que a corte tenta "esticar a corda até arrebentar" e insinuou que uma reação autoritária ao tribunal é uma carta que está sempre na mesa de Jair Bolsonaro.
"Eu tenho que tomar dois Lexotan na veia por dia para não levar o presidente a tomar uma atitude mais drástica em relação às atitudes que são tomadas por esse STF", disse o ministro na formatura de um curso para agentes da Abin, na última terça-feira (14). A fala do general foi divulgada pelo site Metrópoles.
Heleno é um personagem recorrente nos sonhos antidemocráticos dos bolsonaristas. Em 2020, ele publicou uma nota em que ameaçava o STF com "consequências imprevisíveis" caso o tribunal determinasse a apreensão do celular do presidente. General da reserva, ele empresta uma coloração militar aos planos autoritários do chefe.
Na conversa com os agentes da Abin, o ministro jogou lenha no radicalismo político de Bolsonaro e seus aliados. "Um atentado ao presidente da República bem-sucedido modifica totalmente a história do Brasil", afirmou. "Tenho uma preocupação muito grande com esse 2022."
Não se deve ignorar perigos nem baixar a guarda na segurança de um presidente, mas o risco à vida do governante é a desculpa favorita de autocratas interessados em tomar medidas fora dos limites da lei.
O próprio Bolsonaro voltou a explorar, nos últimos dias, a expectativa de conflitos políticos e institucionais. Nesta quarta (15), ele criticou ministros do STF que, segundo ele, "agem contra sua pátria" e disse que vai "tomar uma decisão" se o tribunal rejeitar a tese que limita a demarcação de terras indígenas.
Em outras palavras, Bolsonaro ameaçou novamente descumprir uma decisão judicial –ou, no mínimo, retomar o confronto direto com o Supremo. A ruptura ainda é a principal ferramenta do presidente para agitar sua base radical.
Por que repetir os velhos erros, com tantos erros novos que há para cometer?
Bertrand Russell
Vale a pena meditar nesta pequena mas grande amostra de sabedoria, agora que o mundo se está a virar para a extrema-direita, esquecido do que aconteceu entre as duas grandes guerras. Não vale a pena repetir os erros cometidos e a forma de o não fazer NÃO é o apaziguamento: é ter a coragem de cortar o mal pela raiz: não permitir que se aproveitem da democracia para a destruir. Coisas que as ideologias totalitárias, de esquerda e de direita, sempre fizeram. Os ditadores vêm-nos dos longes da história, porque nos apanham desprevenidos, sempre da mesma maneira: abrimos-lhes as portas e eles entram, sem pedir licença. Damos-lhes o palco todo, porque gostamos de os ver fazer e dizer palhaçadas, e eles multiplicam-se, como cancros assanhados. Já está a acontecer de novo. E já estamos a cometer os mesmos erros que permitiram que, no passado, à esquerda e à direita, se produzissem dezenas de milhões de mortos e todo um património destruído. Visitem com frequência o aforismo de Russell, que teve a coragem de ir para a prisão, quando se opôs à primeira grande guerra, e, depois, avisou cedo contra o nazismo e o comunismo soviético. Destemido inimigo de ditadores, não o foi menos de uma América de infame promiscuidade entre políticos, militares e industriais (da guerra). Espíritos intrépidos como Russell são os heróis que verdadeiramente ficam. Os outros são mais ou menos cúmplices, por omissão, dos assassinos.Eugénio Lisboa
Há poucos dias, visitei uma mulher em uma favela de Madureira que trabalha no vasto setor informal do Brasil. O nome dela é Aline Conceição, tem 39 anos e vende café, doces e sanduíches em uma estação de BRT. Trabalha sete horas por dia, de segunda a sábado. No entanto, é pobre. Assim como todos os outros cerca de 35 milhões de brasileiros no setor informal. Eles representam cerca de 40% da população ativa e formam a espinha dorsal da sociedade, que entraria em colapso sem eles.
Antes da pandemia, os informais nunca ganharam o suficiente para ascender socialmente, mas sempre conseguiram sobreviver. Isso mudou. Pessoas como Aline Conceição correm o risco de passar fome e desnutrição.
Isso se deve à crise econômica, à alta inflação e à falta de empregos, bem como à fatal política econômica, social e sanitária do governo Bolsonaro, que mais uma vez esconde toda a sua incompetência por trás de todas as ruidosas tiradas e provocações.
Aline Conceição só já não passa fome porque recebe cestas básicas da organização católica Pastoral da Criança na favela de Campinho. Quando perguntei a ela sobre seu candidato na eleição presidencial do ano que vem, ela respondeu com uma frase só: "Durante o Lula, a gente comia carne!"
A frase contém todo o dilema dos chamados candidatos da terceira via, sobretudo Sergio Moro. Nas eleições, os temas principais serão pobreza, desemprego e fome. Em contraste com as eleições na Alemanha, por exemplo, questões futuras como mudança climática, proteção ambiental, digitalização e mobilidade não terão grande influência.
O candidato que tiver a melhor resposta para as antigas pragas brasileiras vencerá a eleição. Já parece claro que não será Sergio Moro ou João Doria. É como escreveu a revista satírica Sensacionalista: "Eles têm discutido a união de forças para perder a eleição de 2022." Embora a grande mídia do Brasil e a elite econômica de São Paulo tenham declarado os dois como seus favoritos, eles quase não têm apelo fora da engravatada classe alta urbana.
Quem quiser vencer eleições no Brasil tem que falar a língua do povo. Ele tem que entender como os brasileiros pensam, sentem, se expressam e o que os move. Imagine Sergio Moro ou João Doria no casebre de Aline Conceição na favela de Campinho, prometendo uma melhora na situação; ou visitando pequenos agricultores do sertão pernambucano ou comerciantes na feira de Manaus. Dificilmente é possível imaginar maiores abismos culturais.
Faz parte do dilema brasileiro que grande parte da classe política e da mídia do país viva completamente desligada da realidade da população. Quase ninguém nela já disse a frase ou mesmo a ouviu na família: "Não tem carne, porque é muito cara."
Embora tenha havido alguns desdobramentos promissores nas últimas eleições para trazer mais representatividade aos parlamentos brasileiros (a eleição de algumas mulheres negras em particular é animadora), basta olhar para a lista das deputadas mais jovens no Congresso em Brasília para se desesperar. Dos 40 parlamentares com menos de 35 anos, 32 são filhos, filhas, netos, sobrinhos ou sobrinhas de políticos. Parece que os assentos no parlamento são herdados. Com eles, a visão elitista e a falta de conhecimento do que significa trabalho duro e mal remunerado, privação e fome.
Em Brasília e na avenida Faria Lima, formaram-se bolhas nas quais podem florescer ideias malucas como a candidatura de um Sergio Moro. Algumas pessoas podem realmente acreditar que Moro tem alguma chance contra Lula ou Bolsonaro.
A eleição vai ficar entre os dois por um motivo simples. Eles falam a língua do povo e não têm problemas em se mover entre pessoas comuns. Mesmo aqueles que não gostam de Bolsonaro têm que admitir que ele consegue se comunicar com seus apoiadores, embora muitas vezes apelando aos piores instintos: ressentimento, intolerância, agressão, comportamentos antissociais.
Há um núcleo duro, quase sectário, de bolsonaristas no Brasil; segundo as pesquisas são cerca de 20% do eleitorado, que se identificam com esse homem. Infelizmente, nada pode ser feito a respeito até outubro, nem mesmo por Sergio Moro. Eles amam Bolsonaro por seu jeito direto, autêntico e por suas grosserias. E vão alegar que ele está ajudando os pobres com os vários auxílios que foram implementados: auxílio emergencial, Auxílio Brasil, Vale Gás.
Do outro lado está o grande narrador Lula da Silva, que, mesmo aos 76 anos, pouco perdeu de sua energia. Ele continua sendo um grande orador e pode oferecer aos brasileiros a história de sua presidência, que evoca lembranças positivas em muitos brasileiros pobres. Em virtude da sua própria biografia, Lula tem algo que Sergio Moro não pode oferecer: credibilidade e a sensação de conhecer os problemas do cidadão comum.
Dados divulgados recentemente apontam que o Brasil tem 119 milhões de pessoas com alguma privação alimentar. Desses, pelo menos 19 milhões já estão passando fome. Significa que 55% das famílias brasileiras estão em insegurança alimentar.
Nenhum candidato que não tenha uma resposta confiável ao problema precisa concorrer em outubro próximo. Sergio Moro e João Doria nem precisam se dar ao trabalho. "No tempo do Lula tinha carne" é a frase-chave das próximas eleições.