quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Naturalização do horror

Em 1934, o embaixador José Jobim (assassinado pela ditadura, no Rio, em 1979) publicou o livro “ Hitler e os comediantes” (Editora Cruzeiro do Sul). Descreve a ascensão do líder nazista recém-eleito, e a reação do povo alemão diante de seus abusos. Não se acreditava que ele haveria de implantar um regime de terror. “Ele não gosta de judeus”, diziam, “mas isso não deve ser motivo de preocupações. Os judeus são poderosos no mundo das finanças, e Hitler não é louco de fustigá-los”. E sabemos todos que deu no que deu.

Estou convencido de que Bolsonaro sabe o que quer e tem projeto de longo prazo para o Brasil. Adota uma estratégia bem arquitetada. Enumero 10 táticas mais óbvias:


1. Despolitizar o discurso político e impregná-lo de moralismo. Jamais ele demonstra preocupação com saúde, desemprego, desigualdade social. Seu foco não é o atacado, é o varejo: vídeo com “golden shower”; filme da “Bruna Surfistinha”; kit gay (que nunca existiu); proteção da moral familiar etc. Isso toca o povão, mais sensível à moralidade que à racionalidade, aos costumes que às propostas políticas. Como disse um evangélico, “votei em Bolsonaro porque o PT iria fazer nossos filhos virarem gays”.

2. Apropriar-se do Cristianismo e convencer a opinião pública de que ele foi ungido por Deus para consertar o Brasil. Seu nome completo é Jair Messias Bolsonaro. Messias em hebraico significa "ungido". E ele se acredita predestinado. Hoje, 1/3 da programação televisiva brasileira é ocupado por Igrejas Evangélicas pentecostais ou neopentecostais. Todas pró-Bolsonaro. Em troca, ele reforça os privilégios delas, como isenção de impostos e multiplicação das concessões de rádio e TV.

3. Sobrepor o seu discurso, desprovido de fundamentos científicos, aos dados consolidados das ciências, como na proibição de figurar o termo "gênero" nos documentos oficiais e dar ouvidos a quem defende que a Terra é plana.

4. Afrouxar leis que possam imprimir no cidadão comum a sensação de que “agora, sou mais livre”, como dirigir sem habilitação; reduzir os radares; desobrigar o uso de cadeirinha para bebês etc.

5. Privatizar o sistema de segurança pública. Melhor do que gastar com forças policiais e ampliação de cadeias é possibilitar, a cada cidadão “de bem”, a posse e o porte de armas, e o direito de atirar em qualquer suspeito. E, sem escrúpulos, ao ser perguntado o que tinha a declarar diante do massacre de 57 presos (sob a guarda do Estado) no presídio de Altamira, respondeu: “Pergunta às vítimas”.

6. Desobstruir todas as vias que possam dificultar o aumento do lucro dos grandes grupos econômicos que o apoiam, como o agronegócio: isenção de impostos; subsídios a rodo; suspensão de multas; desativação do Ibama; diferençar “trabalho análogo à escravidão” de trabalho escravo e permitir a sua prática; sinal verde para o desmatamento e invasão de terras indígenas. Estes são considerados párias improdutivos, que ocupam despropositadamente 13% do território nacional, e impedem que sejam exploradas as riquezas ali contidas, como água, minerais preciosos e vegetais de interesse das indústrias de produtos farmacêuticos e cosméticos.

7. Aprofundar a linha divisória entre os que o apoiam e os que o criticam. Demonizar a esquerda e os ambientalistas, ameaçar com novas leis e decretos a liberdade de expressão que desgasta o governo (The Intercept Brasil), incutir a xenofobia no sentimento nacional.

8. Alinhamento acrítico e de vassalagem à direita internacional, em especial a Donald Trump, e modificar completamente os princípios de isonomia, independência e soberania que, há décadas, regem a diplomacia brasileira.

9. Naturalizar os efeitos catastróficos da desigualdade social e do desequilíbrio ambiental, de modo a se isentar de atacar as causas.

10. Enfim, deslegitimar todos os discursos que não se coadunam ao dele. Michel Foucault, em “A ordem do discurso” (2007), alerta para os sistemas de exclusão dos discursos: censura; segregação da loucura; e vontade de verdade. O discurso do poder se julga dono da verdade. Não por acaso, na campanha eleitoral, Bolsonaro adotou, como aforismo, o versículo bíblico “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8, 32). A verdade é ele, e seus filhos. Seu discurso é sempre impositivo, de quem não admite ser criticado.

Na campanha eleitoral, a empresa BS Studios, de Brasília, criou o jogo eletrônico Bolsomito 2K18. No game, o jogador, no papel de Bolsonaro, acumulava pontos à medida que assassinava militantes LGBTs, feministas e do MST. Na página no Steam, a descrição do jogo: "Derrote os males do comunismo nesse game politicamente incorreto, e seja o herói que vai livrar uma nação da miséria. Esteja preparado para enfrentar os mais diferentes tipos de inimigos que pretendem instaurar uma ditadura ideológica criminosa no país. Muita porrada e boas risadas.” Diante da reação contrária, a Justiça obrigou a empresa a retirar o jogo do ar.

Mas o governo é real. Dissemina o horror e enxerga em quem se opõe a ele o fantasma do comunismo.
Frei Betto 

Gente fora do mapa

Serra Pelada anos 1980 (Sebastião Salgado)

Combater a pobreza ou os mais ricos?

A Folha vem fazendo uma ótima série de reportagens sobre o tema da desigualdade e da pobreza. Uma das melhores foi com o Prêmio Nobel James Heckman.

Ele provocou: “Por que deveria ser uma preocupação para mim se outra pessoa ganha muito mais do que eu?”. Seu argumento é direto: se eu tenho uma vida digna, a questão se torna a inveja, “que não é bom motivo para nada”.

Heckman expressa uma visão cética em relação a todo o barulho atual em torno do tema da desigualdade. O maior cético de todos talvez seja Harry Frankfurt, o filósofo de Princeton. Sua questão: qual é mesmo a relevância da assimetria de renda entre uma família de classe média, com acesso a todos os bens fundamentais, e os mais ricos? Vamos supor que estejamos lidando com sociedades abertas e economias de mercado. Qual é mesmo o incômodo moral que produz esta diferença de renda?

Se não houver incômodo, ou ele for difícil de explicar, a conclusão parece óbvia: o que nos incomoda e causa indignação moral não é o fato de que alguém passe suas férias no litoral paulista, enquanto os vizinhos alugam uma temporada no Savoy, em Londres. O que incomoda é a pobreza. A miséria.


O fato de que, à despeito do enorme avanço civilizatório que assistimos, nas últimas décadas, ainda resta um contingente expressivo de pessoas que foram deixadas para trás.

Há um raciocínio intuitivo aí. Vamos supor que você esteja prestes a vir ao mundo e recebe duas opções: viver na Índia dos anos 1980 ou na Índia atual. Na primeira opção, sua chance de crescer em uma família miserável é de 50%. Na segunda opção, seu risco caiu a menos de 15%, mas a desigualdade econômica cresceu. O que você escolheria?

O mesmo raciocínio vale para o caso chinês. No ano da morte de Mao, sua chance de crescer na pobreza era superior a 90%. Em alguns anos, segundo o governo chinês, esta hipótese será praticamente nula. Mas você terá que conviver com esses malditos bilionários que não param de se reproduzir.

Não parece haver muitas dúvidas sobre qual seria a escolha da maioria das pessoas. Este, aliás, é um aspecto intrigante do discurso que prioriza a desigualdade em relação à pobreza: ele é contraintuitivo, na vida real das pessoas, mas é politicamente mobilizador.

No mundo da retórica, sempre poderíamos desejar que tudo fosse diferente, que os chineses mais ricos controlassem 32% e não 40% da renda, e coisas assim. Cada um criar sua própria engenharia social. Ela funcionaria? Teria sido possível retirar quase 1 bilhão de pessoas da miséria, nestes dois países, com políticas de igualdade econômica? A imaginação é o limite, nessa resposta.

Este sempre foi, para mim, um ponto curioso da retórica da desigualdade. Thomas Piketty, o grande guru do tema, nos últimos anos, diz que “a partir de um certo ponto” a desigualdade é injusta e compromete valores democráticos. Mas qual seria, exatamente, este ponto?

Se a desigualdade é, de fato, um problema ético, qual seria a diferença de renda ou número de bilionários que deveria despertar nosso senso moral? Haveria algum padrão racional para isto? Os filósofos deveriam definir essas coisas?

Ronald Dworkin observou que, em geral, quando falamos em desigualdade, tendemos a mencionar, logo em seguida, temas relacionados à pobreza. Vai aí um sinal. É isto que, ao final do dia, nos incomoda de um ponto de vista moral.

O problema é que o tema do combate à pobreza é politicamente morno. É sempre mais fácil conseguir uma manchete ou fazer uma passeata contra os barões de Wall Street ou a favor de sobretaxas aos mais ricos do que fazer uma discussão séria sobre como reduzir a pobreza.

Exatamente a discussão que James Heckman propõe: “Em vez de falar do capitalista rico espremendo o pobre trabalhador, estou falando do pobre trabalhador aprimorando suas condições”.

Este é o debate. Ele é menos sexy do que o tema da desigualdade precisamente por não se tratar de uma retórica de combate. É um tema difícil, que diz respeito à imensa legião de cidadãos que vivem à margem e não tem voz no mercado político.

Nas duas décadas entre 1990 e 2010, a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha da miséria caiu de 36% para 16%. Isso aconteceu a partir de uma nova dinâmica de abertura econômica e revolução tecnológica que, por óbvio, produziu resultados desiguais.

O ponto é saber como se pode capacitar mais e mais pessoas para integrar esta dinâmica. Não é tão fácil nem tão divertido todo o barulho em torno da desigualdade, mas é o que precisa ser feito.

Nau dos insensatos

Pegamos um país quebrado moral, ética e economicamente, mas se Deus quiser nós conseguiremos entregá-lo muito melhor para quem nos suceder em 2026
Jair Bolsonaro

O poder cínico

Com um abano para o filósofo alemão Immanuel Kant, esta crônica poderia ter o mesmo título da sua obra mais importante, “Crítica da razão pura”, com uma única mudança: em vez de “razão pura”, “puro cinismo”. Immanuel Kant escreveu sobre os limites do conhecimento humano, sobre física versus metafísica, sobre o saber intuitivo e o saber empírico. Se eu quisesse aproveitar seu título, não precisaria ir a esferas tão altas para minha crítica nada filosófica, bastaria ler os jornais do dia. Quando o presidente Bolsonaro substitui quatro membros da Comissão da Verdade por quatro membros escolhidos por, notoriamente, não terem o menor interesse em esclarecer os crimes da ditadura, e justifica a mudança porque o governo agora é de direita, e a direita, deduz-se, não quer saber de verdade, chegamos a um grau de cinismo destilado, puro cinismo, que deixa para trás todas as suas manifestações anteriores. A direita tem todo o direito, conquistado nas urnas, de querer mudar a História, esquecer as vítimas da ditadura e os desaparecidos e não falar mais nisto. Só o que se pede ao presidente e aos generais que, cargo a cargo, vão ocupando o poder é que na sua tentativa de apagar o passado de uma vez por todas tenham um pouco de pudor, gente. Ainda tem mães procurando filhos que desapareceram.

Mas eu tinha decidido não praticar mais o que se poderia chamar de jornalismo reativo, que consiste em apenas esperar a última do Bolsonaro e reagir. Como não passa semana sem que ele apronte uma, nunca haveria o risco de faltar assunto, só o risco de encher o saco do leitor. Que teria razão em reclamar: não basta ter o Bolsonaro no Planalto todos os dias, ainda temos que aguentá-lo dominando o noticiário, os comentários, as opiniões, os prós e os contras dos jornais e das revistas, todos os dias e todas as semanas? Resolvi dar uma folga aos meus 17 leitores. Prometo não citar o nome do Bolsonaro nem que ele nomeie o Queiroz como conselheiro da embaixada brasileira em Washington. Só não sei por quanto tempo vou conseguir me controlar.
Luis Fernando Verissimo

A crueldade de um presidente da República

O presidente Jair Bolsonaro sempre proferiu palavras extremamente ofensivas à memória de mortos e desaparecidos políticos e a seus familiares. Porém, uma vez eleito presidente da República, ele precisaria se conscientizar de que o cargo impõe deveres e não lhe dá o direito de ofender cidadãos e cidadãs, mesmo aqueles que não fazem parte do público que o elegeu.

O seu comportamento nos últimos dias demonstra cabalmente que ele não compreende o caráter republicano do seu cargo, que significa que ele deve governar um país e não para seus eleitores. Ele não assimilou sequer que esse país tem uma Constituição sobre a qual jurou, tem leis e condenações nacionais e internacionais que ele deve cumprir.

Infelizmente, o presidente continua se comportando como um militar de baixa patente, mau e alinhado com a defesa dos crimes praticados por agentes dos porões.


A crueldade da ofensa que Bolsonaro lançou à família Santa Cruz para satisfazer seu desejo de humilhar o presidente de uma das mais importantes instituições brasileiras é típica do comportamento desses agentes e não de um presidente da República. O que ele disse foi uma “contrainformação”, ou seja, uma versão que serve para confundir e manter as famílias das vítimas sob tensão e com receio de reagir para evitar que a reputação de seus entes queridos seja assassinada também. Com isso, a contrainformação desvia o foco das verdadeiras responsabilidades, dificulta as investigações e garante a impunidade.

A dificuldade de Bolsonaro em agir conforme o seu cargo exige é tanta que ele sequer teve o cuidado de dar um verniz de razoabilidade para a versão que ele disse ter “intuído” de sua experiência naquele período. O que ele disse sobre a AP (movimento chamado inicialmente de Ação Popular) ser “sanguinária” não tem o menor fundamento, principalmente no contexto de fatos ocorridos a partir dos anos 70.

O golpe de 1964 foi materializado com a colocação nas ruas de tanques do Exército, com canhões prontos para disparo. Esses tanques passavam entre as pessoas civis que transitavam pelas ruas, inclusive idosos e crianças. As manifestações estudantis de protesto contra o governo que depôs ilegalmente o então presidente eleito, que fervilharam em todo o país nesses anos de 64 e 65, foram combatidas por soldados armados que não hesitaram em atirar nos rostos, peitos e mãos de jovens desarmados.

Data deste período a instituição de movimentos de resistência armada contra a ditadura militar. Dezenas de jovens dispostos a dar a vida pelo país estavam convencidos de que precisavam aprender a usar armas e bombas para mostrar que poderiam derrubar aquele governo como ele mesmo havia feito com o governo anterior. Certa ou errada essa decisão, e ainda que tenham cometido crimes com essa intenção, esse tipo de atividade não é considerada terrorismo e sim resistência.

O terrorismo se caracteriza pela prática de atos criminosos que visam prejudicar, impedir a atuação de um governo legítimo. Não era este o cenário de 1964, portanto, as atividades de protesto contra aquele governo, mesmo ilícitas, não podem ser classificadas como terroristas.

O que é classificado como terrorismo, foi o terrorismo de Estado praticado pelas forças oficiais de segurança, pois, em resposta aos movimentos armados que chegaram a obter a libertação de presos políticos, a violência da ditadura recrudesceu a partir de 1969. A ordem era desmantelar e exterminar os movimentos de resistência mediante a intensificação dos crimes de perseguição, tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados.

Em 1970, portanto, grande parte daqueles jovens idealistas já havia sido morta, estava presa ou banida do país. Outros jovens, que ainda eram crianças e adolescentes em 1964, vieram se somar aos que restaram, mas estavam todos acuados. Debatiam entre si sobre como dar continuidade à resistência e foram se dividindo. Alguns insistiram na luta armada e clandestina, mas a maioria optou por manter uma atividade de resistência civil, com a divulgação de panfletos, jornais e conscientização da população sobre a gravidade do que se passava. Este foi o caso da AP que, pelo menos a partir de 1972, tornou-se a APML (Ação Popular Marxista-Leninista). Por isso, seus integrantes são historicamente tidos como intelectuais e não afeitos ao embate corporal.

Logo, é absolutamente inverossímil que, em 1974, quando morreu Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, a AP ou APML seja tratada como violenta. Nesse caso, a crueldade das palavras que o presidente Bolsonaro proferiu sobre os integrantes da AP tem nome e é calúnia. O fato, a critério dos ofendidos, pode dar ensejo a mais um pedido de explicações perante o STF e, eventualmente, a uma queixa-crime.

A exoneração sumária de pessoas que ocupavam funções de uma maneira que o incomodou, como ocorreu com a minha exoneração e a do diretor do INPE, por outro lado, não pode ser classificada como cruel. Somos pessoas com muitos anos de experiência profissional e, para nós, é possível aceitar o fato sem nos deixar atingir emocionalmente. Mas o mesmo não ocorre com as pessoas que tinham nesses espaços suas poucas esperanças de que estado brasileiro continuaria cumprindo suas funções.

As exonerações sumárias efetivadas por Bolsonaro foram cruéis com as pessoas e comunidades que dependiam desses órgãos, que hoje se sentem expostas e apreensivas. No caso da Comissão sobre Mortos, temos recebido todos os dias manifestações sofridas de familiares preocupados com a preservação de restos mortais, de amostras genéticas e com o uso indevido de seus dados íntimos e privados. Para dizer o mínimo, é cristalino que estes atos vingativos do presidente da República são incompatíveis com o princípio da moralidade administrativa, cuja defesa pode ser feita em ações civis e até em ações populares.

A bondade não é um requisito escrito para que alguém possa governar um país, mas é exigido de qualquer servidor público que aja com lealdade, urbanidade, ética, respeito às leis e instituições e até que se apresente dignamente vestido em público. A crueldade demonstrada por Jair Bolsonaro no episódio relativo a Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira revela o descumprimento de todos esses deveres.

Eugênia Augusta Gonzaga, Procuradora Regional da República e ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Um presidente terrivelmente estúpido

Está na hora de pararmos de nos referir a Jair Messias Bolsonaro como representante do baixo clero da Câmara dos Deputados, acidentalmente eleito presidente da República.

O baixo clero merece respeito. Não abusa de palavrões para se expressar, nem destila tanto ódio. Na verdade, Bolsonaro está mais para sub do sub do baixo clero. Ou não?

Que tal um presidente capaz de aproveitar uma entrevista coletiva à imprensa para dizer com todas as letras e aos gritos:

A imprensa tem que entender que eu ganhei. Eu, Johnny Bravo, Jair Bolsonaro, ganhou, porra! Ganhou, porra!

Na mesma ocasião, voltou a atacar os governadores do Nordeste, empenhados em fazer da região uma “nova Cuba”. Ameaçou de à revelia deles só liberar dinheiro para prefeituras amigas.

Não perdeu a chance de espancar “a esquerda canalha”, o alvo preferencial de suas críticas sempre que sobe em um palanque. É onde se sente à vontade. É onde gostaria de sempre estar.

E, é claro, exibiu-se como o néscio que é ao justificar mais uma vez com argumentos toscos a promoção do seu filho Eduardo para embaixador do Brasil em Washington: “Indicado para embaixada tem que ser filho de alguém, por que não meu?”

"Faz muito tempo que Eduardo deseja morar nos Estados Unidos, segundo Bolsonaro. É amigo da família do presidente Donald Trump, repetiu. E a embaixada “é um cartão de visitas”.

Bastaria tamanhas idiotices para preencher um único dia de trabalho, mas não. Ele tinha mais a oferecer sem constrangimento. Até porque não sabe distinguir o que é sensato do que é estúpido.

“Os caras vão morrer na rua igual barata, porra” – anunciou a respeito do projeto que remeterá ao Congresso para livrar de punições policiais e militares que matarem bandidos.

Outra vez negou que brasileiros passem fome. Disse que a vida dos patrões é tão dura ou pior do que a vida dos empregados. E tachou de mentirosos os dados oficiais sobre o desmatamento na Amazônia.

Sem dar-se conta, por ignorância, da fragilidade do seu raciocínio, defendeu a legalização de garimpos por faltarem ao Estado condições de remover os garimpeiros das áreas que eles invadiram.

A ser assim, por que não renunciar ao combate ao crime organizado uma vez que ele só faz crescer por toda parte e o Estado revela-se até aqui incompetente para enfrentá-lo? Como é parvo!

Na semana passada, Bolsonaro foi intimado pelo Supremo Tribunal Federal a explicar o que quis dizer quando atacou o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, morto pela ditadura.

Ontem, foi intimado novamente pelo Supremo a explicar por que sugeriu que a ex-presidente Dilma Rousseff pegou em armas para derrubar a ditadura. Ela não pegou. Bolsonaro mentiu, para variar.

"Vamos parar com essa bobagem, a campanha acabou para a imprensa. Eu ganhei! A imprensa tem que entender que eu ganhei. Eu, Johnny Bravo, Jair Bolsonaro, ganhou, porra! Ganhou, porra!" (Jair Bolsonaro, presidente da República do Brasil)

Brasil pinta mais verde


'Alguns assassinatos' para salvar o Brasil?

Bolsonaro terá que matar gente se quiser salvar o Brasil? É o que parece ter sugerido na sexta-feira passada, 2 de agosto, o filósofo Olavo de Carvalho em um dúbio tuíte no qual afirmava que, para fazer funcionar “essa porcaria” que é o Brasil, seria preciso dispor de “muito dinheiro e alguns assassinatos”. Quem? Quantos? Neste campo do terror, o astrólogo e filósofo de internet, assessor intelectual de Bolsonaro, de sua família e do núcleo duro do bolsonarismo, costuma ser generoso.

Em dezembro passado, entrevistado por Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quartely, referindo-se à afirmação de Bolsonaro de que o erro da ditadura foi “torturar em vez de matar”, respondeu que não só estava de acordo como também teria sido necessário assassinar na ocasião os 20.000 comunistas do país, “à vista da miséria que haviam criado”. Mais ainda, com a macabra receita de executar os 20.000 comunistas que segundo ele havia na época no Brasil, hoje o país não teria 70.000 homicídios por ano.


Olavo, que se autoproclama filósofo, parece entretanto ignorar o grande filósofo grego Aristóteles, aluno do Platão, quando expõe sua famosa doutrina sobre a lógica, já que atribuir os homicídios de hoje aos comunistas do tempo da ditadura é, mais que um silogismo, um puro e grosseiro sofisma. Representa uma ofensa à lógica, além de uma atrocidade moral.

Bolsonaro, doutrinado por Olavo, hasteou durante sua campanha eleitoral três bandeiras: a luta contra a velha política, a luta contra a corrupção com apoio à Lava Jato e a luta contra violência, com seu lema de que bandido bom é bandido morto.

Das três bandeiras, duas já estão se esfarrapando. Logo começou a transparecer, de fato, que Bolsonaro e sua família haviam até então agido dentro da mais velha das políticas, o nepotismo, ao ter nomeado, como descobriu o jornal O Globo, 102 assessores, todos familiares, e usá-los como disfarce para financiar suas campanhas com parte de seus salários, o que levou seu filho Flavio, senador, à beira de um processo criminal.

O Presidente, que tinha deixado que seus seguidores pedissem nas manifestações o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, hoje é unha e carne com seu presidente, Dias Toffoli, que com uma decisão mais do que discutível interrompeu as investigações de corrupção que pesam sobre seu filho.

Sua luta contra a velha política já ficou sepultada em nome de sua conveniência pessoal, assim como sua segunda bandeira da luta contra a corrupção, que o levou a escolher como ministro da Justiça o herói da Lava Jato, o juiz Sérgio Moro. Um troféu que, entretanto, já começou a abandonar e a deixar na sarjeta. Já não lhe serve mais. Melhor, aliás, não tocar no assunto da corrupção, da qual também sua própria família apareceu doente.

Resta a última bandeira, a da luta contra a criminalidade. Essa ele nunca vai abandonar, já que sua personalidade e idiossincrasia estão compostas de violência, de armas e de morte aos bandidos, dando todas as garantias de impunidade a policias estimulados a atirarem na cabeça para matar.

O romancista espanhol Julio Llamazares, na sexta-feira passada —o mesmo dia em que Olavo oferecia “alguns assassinatos” como receita a Bolsonaro—, escreveu em sua coluna neste jornal, referindo-se aos que hoje acolhem na Espanha como heróis os ex-terroristas do ETA, que “qualquer recriminação moral lhes parecerá interessada e ridícula, da mesma maneira que os dirigentes nazistas achavam a piedade uma fraqueza”. E cita Homero, o grande poeta épico da Grécia Antiga, autor da Ilíada e da Odisseia, que há 2.600 anos escreveu: “Não há nada, entre o que respira e anda sobre a terra, que seja mais lamentável que o homem”. E um escritor moderno, o argentino Ernesto Sábato, em sua obra Sobre Heróis e Tumbas, escreve algo que parece uma fotografia das angústias do Brasil atual presidido pelo radical e extremista, amigo da morte, Jair Bolsonaro: “Que confusão é tudo, que difícil é viver e compreender”.

Tomara que os governantes de hoje não tornem tudo ainda mais difícil achando que a melhor solução, ao estilo Olavo, seja assassinar para salvar “essa porcaria do Brasil”, o que além de ser mentira é uma ofensa a um grande país que mereceria ser governado por alguém com sentimentos humanos capazes de perceber a dor das vítimas que a intolerância, o desamor e a sede de vingança vão deixando pelo caminho.

Alguma vez você já ouviu o presidente Bolsonaro pronunciar a palavra “pobres” e mostrar empatia e compromisso de redenção para a grande massa de esquecidos que são os que, com seu trabalho e sua dor anônima, fazem que não morra totalmente a esperança de dias melhores, sem que precisemos continuar colocando flores aos pés das vítimas inocentes?

O 'dono' da embaixada

Eduardo, coitado, ele não tem a menor condição. Ele sequer sabe o papel de um embaixador. Ele não tem ideia. Eu convivi de perto com o Eduardo, ele não tem noções básicas de negociação, é um garoto, um menino, um surfista que teve um mandato por causa do pai, depois surfou de novo a onda do pai, na conquista do segundo mandato, mas é um rapaz completamente inexperiente. O nível acadêmico dele é bem iniciante, ele não tem condições
Gustavo Bebianno, ex-ministro da Secretaria-Geral de Bolsonaro

Bolsoland não é aqui

Ao dar de presente uma disneylândia customizada para o seu terceiro filho, enviando aos Estados Unidos como embaixador quem por lá passou como autodeclarado hamburgueiro, o presidente Jair Bolsonaro está promovendo a volta por cima de um ente querido e dando consequência a um capricho. O da transgressão deliberada à ética, à carreira diplomática e à condução da política externa de um país da importância do Brasil. Isso, no entanto, não tira pedaço, por enquanto.

Pois a tarefa de manter as relações políticas e comerciais funcionando em alto nível, entre o Brasil e os Estados Unidos, não tem nada a ver com a configuração desse modelo de representação pessoal do presidente do país no exterior. Lateralmente, e fora dos holofotes, terá que funcionar uma força tarefa profissional para representar o país e levar a cabo a empreitada. Diplomatas de carreira foram preteridos, mas podem agora atuar como conselheiros e secretários convocados a agir.

Há vários à disposição, inclusive autênticos representantes da direita internacional que o novo candidato a embaixador preza.

São todos da mesma estirpe. O príncipe pode ficar em usufruto do trono mas com retaguarda garantida. Sua presença, bem como a alegada amizade entre as famílias presidenciais, a admiração e o deslumbramento que o presidente brasileiro nutre por Donald Trump, a quem imita até no caminhar, estão distantes dos compromissos, sucessos ou fracassos da jornada diplomática.

O que haverá ali, se for aprovado o candidato, e deve ser pois não há nada mais "fake" do que as sabatinas do Senado, é uma convivência que se exercitará porque a confluência dos astros eleitorais colocou as duas luas alinhadas no período. Mas, a cada um, a sua vocação. Passado o fenômeno, cessa o fato. Criou-se uma situação artificial: se Trump não for reeleito, fica o embaixador brasileiro e o pai presidente com a missão de se reciclarem politicamente com rapidez. Também, se a proximidade deixar de ser necessária para Donald Trump, o espetáculo se desmanchará a olho nu.

Não são almas gêmeas cujos destinos estão amarrados: Trump tem partido, para começar, e um país, com tudo resolvido, para governar. Bolsonaro tem uma devastação á sua frente e nenhuma condição objetiva, nem mesmo vontade, de reconstituir o cenário.

Porém, enquanto as crianças descem a montanha russa e praticam o tiro, Trump joga War em um tabuleiro do tamanho do mundo. Os profissionais precisam atuar para não deixar o Brasil distrair-se, inebriado pelo status, e começar assim a perder vantagens que já conquistou.

Não é de agora a boa relação pessoal entre dirigentes dos dois países. É uma aproximação ideológica e de simpatia que se repete. Luiz Inácio Lula da Silva já foi "o cara" para um presidente americano; Fernando Henrique Cardoso foi comensal de Camp David de outro e, por seu intermédio, afagado em Downing Street.

O Brasil tem charme. Mas o que existe mesmo é a preocupação do governo americano de não perder completamente o controle sobre as decisões desse país de visceral para sua geopolítica.

O secretário de Comércio Wilbur Ross fez, semana passada, uma viagem de imersão empresarial ao Brasil, em clara aragem do terreno para os Bolsonaro. Vazou algumas sensações, não mais que isso.

Não existe acordo comercial em negociação, insinuado por ele. O que Ross deixou transparecer foi a preocupação do governo americano com o acordo do Mercosul com a União Europeia, firmado depois de 20 anos de negociação. Os Estados Unidos têm acordo com muitos países da América do Sul, menos com o Mercosul, e o Brasil tem 50% desse mercado.

O Brasil quer, claro, o acordo com os Estados Unidos, mas precisa preparar sua economia. E nada sai antes de cinco anos, portanto, o horizonte é de mais de um governo, mesmo que comece a negociar agora.

Há, ainda, entre os interesses imediatos, a preocupação com a Venezuela e o não alinhamento da política do Brasil aos Estados Unidos, agravado pelo apoio da China a Maduro. Há, também, o interesse e a preocupação dos Estados Unidos em não perder a guerra tecnológica para a qual mapeia sua força no mundo.

As relações políticas e comerciais precisam ser conduzidas por profissionais. Se a relação pessoal for fugaz, por perda de posto ou de gosto, os países permanecem íntegros.

Atenção redobrada, porém, porque o presidente americano está acostumado a se deixar adular sem retribuição. A lembrança da "relação carnal" com os Estados Unidos instituída pelo governo Carlos Menem, na Argentina, não pode inspirar a diplomacia brasileira, ao contrário. É risco garantido.

O Brasil, é fato, entregou mais do que recebeu dos EUA desde a chegada de Bolsonaro ao poder. Houve liberalização unilateral de vistos, cota ampliada das toneladas para o trigo, pleito antigo, entre outras facilidades de comércio. Alinhou-se aos americanos em fóruns multilaterais sobre temas de costumes - ambos os presidentes são "terrivelmente" conservadores nesse quesito.

Os americanos, que nunca entenderam bem porque o Brasil queria tanto entrar numa instituição com a qual não gastam adrenalina, a OCDE, acabaram por dar o apoio, mas o preço foi alto, exigiram em troca a perda do status de tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento na OMC. Isso sim, uma vantagem entregue na bacia das almas.

Fora o fato, notório, de que Trump, aculturado no meio empresarial do jogo bruto, parece não ter grande admiração por aduladores que cedem com facilidade. Os que o conhecem de perto destacam: ele pode não gostar de Kim Jong Un (Coreia do Norte), mas já disse várias vezes que o respeita. Esperar para ver até quando suportará uma relação governamental melíflua. Trump não quer se mostrar isolado, e não está, mas custa a crer que contará Bolsonaro na sua companhia.

Quem será a força dominante do século 21? Quem dominará a tecnologia 5G? Quem dará o lance definitivo na OMC? São questões que permearam a visita de Ross. A China está no calcanhar dos Estados Unidos e já faz a ultrapassagem em assuntos do futuro que se jogam agora. O Brasil não é desprezível nesse jogo, mas precisa se levar a sério para pedir respeito.

Pequeno glossário útil

Nas últimas semanas, certas expressões do passado foram usadas para definir as insanidades diárias de Jair Bolsonaro. Algumas, muito populares em seu tempo, podem necessitar de explicação para os leitores de hoje. Exemplos:

"Bolsonaro está transformando o Brasil num grande Febeapá." Febeapá era a sigla de Festival de Besteira que Assola o País, instituição criada pelo colunista Stanislaw Ponte Preta, em 1964. Referia-se aos militares da ditadura, que mandaram recolher nas livrarias o romance "A Capital", de Eça de Queirós, pensando que era o "O Capital", de Karl Marx, e proibiram o Balé Bolshoi de se apresentar no Teatro Municipal por ser russo, donde comunista. Mas Bolsonaro não fará isto, porque nunca leu um livro e não sabe o que é o Balé Bolshoi.


"Bolsonaro é um Napoleão de hospício." O Napoleão de hospício foi criado por Nelson Rodrigues e, segundo Nelson, era o verdadeiro Napoleão —porque nunca teria um Waterloo. Mas Bolsonaro terá o seu Waterloo. Não demora a fazer algo realmente tão grave, comprometendo a estabilidade do país, que terão de pedir a camisa-de-força.

"Bolsonaro governa como se estivesse na Gaiola de Ouro." A Gaiola de Ouro é o velho apelido da Câmara dos Vereadores do Rio, famosa pelos atos que Bolsonaro diz combater. Em 1987, seus 39 felizes vereadores admitiram 485 servidores sem concurso, para lhes servir café e abaná-los, e, em 1988, pode crer, nada menos que outros 10 mil. Bolsonaro fez parte dela, como vereador, de 1989 a 1991.

Certamente foi lá a sua escola para que, segundo o jornal O Globo, dos 286 assessores nomeados por ele e os filhos nos últimos 28 anos em seus mandatos, 102 fossem pais, mães, irmãos, avós, tios, primos, maridos, mulheres, ex-mulheres, sogros, genros, noras, cunhados e enteadas uns dos outros. Por que não? É a família acima de tudo, você sabe. Principalmente as dos amigos.

Ruy Castro

Pensamento do Dia


Câmara evita lipoaspiração de R$ 460 bi na Reforma

A densa maioria que se formou na Câmara em torno da emenda constitucional da reforma da Previdência bloqueou as oito tentativas de modificar o texto aprovado em primeiro turno no mês passado. Na votação do segundo turno, evitou-se que a proposta fosse lipoaspirada em cerca de R$ 460 bilhões. Algo que reduziria a economia que o governo pretende obter nos próximos dez anos de R$ 933,5 bilhões para apenas R$ 473,5 bilhões.

O trabalho da Câmara foi encerrado às 22h desta quarta-feira. A cena final foi marcada por uma coreografia que resume bem o que se passou durante a tramitação da proposta. Formulador da reforma, o ministro Paulo Guedes, da Economia, entrou no plenário da Câmara, escalou os degraus que levam à Mesa diretora e abraçou o presidente da Casa, Rodrigo Maia, principal articulador da costura política que levou à formação da maioria reformista.

Há dois meses, irritado com mudanças que conspiravam contra sua pretensão de obter uma reforma que assegurasse a economia emblemática de pelo menos R$ 1 trilhão em dez anos, Paulo Guedes zangou-se: "Abortaram a Nova Previdência", ele disse. O abraço do ministro no presidente da Câmara foi uma espécie de reconhecimento de que o parto realizado pelos deputados terminou saindo melhor do que a encomenda — apesar do custo embutido na distribuição de emendas orçamentárias.


O patriotismo reformista custará ao Tesouro, até dezembro, algo como R$ 40 milhões por voto. Nas palavras de um dos patriotas, a verba destina-se a custear nas bases eleitorais dos parlamentares obras e projetos capazes de atenuar eventuais desgastes políticos. Considerando-se que o Congresso já foi movido a mensalões e petrolões, a relação custo-benefício é, agora, mais favorável.

Nesta quinta-feira, a emenda da reforma segue para o Senado. Começa um novo ciclo de articulações. Para não perder o hábito, Jair Bolsonaro injetou no processo um ruído indesejável: a indicação do filho Eduardo Bolsonaro para o posto de embaixador do Brasil em Washington. Quando formalizada, a escolha do Zero Três terá de ser referendada pelo Senado, em tramitação simultânea com a reforma previdenciária. Estima-se que o governo prevalecerá nos dois casos. Mas o custo deve aumentar.

Prodígio dos contrários

Temos o prodígio de ser ao contrário do que proclamamos e do que deveríamos ser
Orestes Barbosa, "Bambambã!" (1923)

Ditadura do Supremo em plena democracia indica que Brasil é altamente criativo

Nenhum estrangeiro consegue entender o Brasil. Muitos já tentaram. Andaram por aqui aos bandos e passaram a ser chamados de “brazilianistas”. Produziram teses, escreveram artigos, publicaram livros, mas acabaram desistindo, porque não há como explicar o que acontece no Brasil. A esse respeito, o atual momento político é revelador. Tudo indica que houve um pacto tácito entre os Três Poderes, em acordo não assinado que visa a garantir a impunidade das elites dirigentes.

No exterior, quem poderá acreditar que exista algo assim num país importante como o Brasil, o quinto maior em população e território, que oscila entre a oitava e a nona economia do mundo, dependendo do humor da cotação do dólar.

É como dizia o cineasta Orson Welles, que veio ao Brasil fazer o filme “It’s All True” (“É Tudo Verdade”) e constatou que “os brasileiros são o povo mais feliz do mundo”. Ele brincou o carnaval de 1942, com muito uísque, anfetamina e lança-perfume, e concluiu: “Quatro dias de felicidade no ano é uma coisa que nem todos conseguem”. Meses depois, caiu na real, acabou desistindo do filme voltou para a matriz USA, porque não conseguia entender nada aqui na filial.

Os brasileiros são assim mesmo, é tudo verdade. Nesse exato momento, vive-se sob a ditadura do Supremo, que praticamente desativou o Coaf, único órgão do país para identificar lavagem de dinheiro, sonegação e outros crimes financeiros. Em nossa matriz USA, existem 22 órgãos desse tipo, que funcionam a todo vapor e colocam na cadeia até sonegadores de impostos, como o famoso ator Wesley Snipes. Aqui na filial Brazil, isso é impensável. Os artistas pegam recursos públicos para custear suas produções, embolsam o dinheiro e fica tudo por isso mesmo, jamais se viu um ator na cadeia por esse tipo de crime.

O jornalista americano Glenn Greenwald aproveitou a experiência negativa de Welles e está se dando bem. Levou 13 anos estudando o país, arranjou um marido, montou uma família e abriu um negócio de futuro – o The Intercept Brasil, um órgão de imprensa legitimamente autorizado a publicar informações obtidas de maneira ilegal.

Esses dados obtidos pelo The Intercept mediante interceptação telefônica estão sendo usados em prol de um movimento destinado a destruir a maior operação contra o crime já desfechada no mundo. O objetivo claro do complô é soltar bandidos como Lula, Dirceu, Cunha etc., além de evitar a prisão de outros enriquecidos ilicitamente às custas de recursos públicos, como Temer, Aécio, Padilha, Renan, Jucá, Moreira, Barbalho e tutti quanti, numa manobra confusa e com adesão de outros órgãos de imprensa que se dizem sérios, e não há analista estrangeiro que possa entender uma maluquice dessas.

Ao mesmo tempo, a Suprema Côrte brasileira desmonta tudo o que se conhece em Direito nos demais países, ao abrir um inquérito totalmente ilegal, sem participação do Ministério Público, em flagrante inconstitucionalidade, com os ministros mandando imobilizar o único órgão público que funcionava no país para coibir lavagem de dinheiro, corrupção e movimentação financeira de grandes facções criminosas.

O mais intrigante é que dois ministros do Supremo tenham sido apanhados na malha fina desse órgão público, junto com suas mulheres, e ao contrário do que ocorre nos outros países, ao invés de se defenderem das acusações de operações bancárias atípicas, eles simplesmente dão um jeito de paralisar as investigações, afastar os auditores e pedir a demissão do dirigente do órgão público por excesso de zelo funcional, digamos assim, e quem é que vai entender um país como esse?

Nem Freud explicaria, mesmo assessorado por Nise da Silveira, Helio Pelegrino e Eduardo Mascarenhas.

Teoria das baratas de Bolsonaro realça diferença entre civilização e barbárie

Um policial de folga que tenha o terrível azar de ser descoberto por bandidos durante um assalto, e que esteja rendido ou sem condições de reação, tem grandes chances de acabar torturado e assassinado.

Logo, soa plausível a muita gente que criminosos dominados sejam mortos. Não lhes ocorre que são nessas situações que a civilização se distingue claramente da barbárie, o certo se contrapõe ao errado.


É compreensível a alguém que se depare com um crime atroz ter ganas mortais contra o agressor. Jamais o Estado, sob pena de se igualar aos facínoras. Ao puni-lo de acordo com a lei, demonstra a superioridade e a evolução da civilização através dos séculos. Não se defende —parafraseando o poeta Jair Bolsonaro— que a polícia enfrente o crimesoltando pombinhas brancas. É obviamente lícito que, como recurso capital, policiais matem agressores em combate ou que representem iminente ameaça à vida de quem quer que seja.

O problema é que parte dos trogloditas que fazem arminhas com as mãos quer é execução pura e simples. Bala na nuca. "Os caras vão morrer na rua igual barata, pô, e tem que ser assim", disse Bolsonaro ao defender, novamente, o vale tudo policial.

É de pensamentos assim que surgiram as milícias, os esquadrões da morte —grupos elogiados por Bolsonaro em sua carreira— e toda sorte de quadrilhas armadas e fardadas a serviço de nada mais nada menos que ela mesmo, a bandidagem.

Criminosos já morrem como baratas em ruas e presídios, em números crescentes, e alguém tem se sentido mais confiante para andar pelas ruas das metrópoles do país?

Ideias e ações que destoem da sua primária concepção de segurança pública devem acordar na cabeça presidencial o mesmo macaquinho tocador de pratos que habita o cérebro de Homer Simpson. Em momentos assim, a falta de gente como Clóvis Rossi fica mais evidente. "Desrespeito à vida é sempre injustificável, sob pena de se implantar a lei de talião e, de olho por olho em olho por olho, acabarmos todos cegos."