sábado, 22 de julho de 2023

Pensamento do Dia

 


Tolerar os intolerantes?

Terminei a coluna anterior enaltecendo a tolerância, e alguns leitores me recriminaram por não ter levado em conta o paradoxo da tolerância. A referência aqui é ao filósofo Karl Popper, que escreveu: "Tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos tolerância ilimitada até mesmo para aqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e a tolerância junto com eles".


A passagem é muito citada, mas raramente em seu devido contexto. Uma boa providência é conferir a frase seguinte à supramencionada, que reza: "Com essa formulação, eu não insinuo, por exemplo, que devemos sempre suprimir o enunciado de filosofias intolerantes; contanto que possamos combatê-las por meio de argumentos racionais e mantê-las sob controle pela opinião pública, a supressão seria certamente insensata".

Mais importante, os dois trechos constam de uma nota de rodapé de "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos", obra que pode ser descrita como um louvor à democracia liberal e, portanto, à tolerância e à liberdade de expressão.

No fundo, Popper diz o óbvio. Afirma que a democracia precisa defender-se, recorrendo até à força, se necessário, daqueles que tentam suprimi-la. A questão difícil, para a qual não há solução sem considerar a situação política do momento, é quando se torna necessário adotar a força ou a censura, que devem ser sempre a "ultima ratio", nunca a primeira opção.

A democracia brasileira esteve sob risco no governo anterior, o que, a meu ver, justificou decisões menos ortodoxas do STF. Mas o perigo é cadente. E não dá para viver uma exceção eterna. Numa daquelas reviravoltas bem ao gosto dos filósofos, acho que dá até para dizer que são os intolerantes que vencem se conseguem fazer com que a democracia abra mão da tolerância e das liberdades.

Como se perdem as causas

O pior que pode acontecer a uma causa justa é cair em mãos erradas. E, no entanto, nada mais comum do que raposas se voluntariarem, desinteressadamente, para tomar conta de galinheiros.

Não há bem maior para a sociedade do que o cidadão de bem. É aquela pessoa honesta, com princípios éticos, cumpridora dos seus deveres. Mas repare em quem levanta a bandeira da defesa dessa brava gente: há grandes chances de encontrar, como na nossa História recente, alguém ligado a esquemas de corrupção, apologia da violência, desdém pelo próximo.


O politicamente correto — questão de avanço civilizacional, de respeito às diferenças e à dignidade da pessoa humana — foi parar nas garras de canceladores, censores, intolerantes — que só não queimam livros porque pega mal. Mas interditam o debate, restringem a livre circulação de ideias, aniquilam reputações (vai uma Revolução Cultural chinesa aí?).

Autodeclarados antifascistas se valem de métodos clássicos do fascismo. Desumanizam os adversários, com o cuidado de mudar os verbos — trocam “eliminar” por “extirpar” — e quase ninguém nota (ou finge não notar).

Não raro a tutela dos valores cristãos está a cargo de pedófilos (ou dos que os acobertam) e aproveitadores (devotos do “templo é dinheiro”, do “vinde a mim os dízimos”). Com espantosa frequência, descobrem-se predadores e charlatães travestidos de líderes espirituais.

Fanáticos tomam para si a defesa dos direitos animais (e dane-se o bicho-homem), da pauta ambiental (e dá-lhe vandalizar obras de arte, pichar patrimônio público). Só o que conseguem é criar um clima ruim para os que efetivamente se importam com o planeta e seus habitantes — independentemente de reino, classe, família, gênero ou espécie.

Dois bons exemplos desse tipo de perversão foram notícia por estes dias.

O ex-deputado Jean Wyllys, inúmeras vezes vítima de homofobia, retornou ao Brasil, e uma das suas primeiras manifestações foi homofóbica. No que deveria ser uma crítica às escolas cívico-militares, dispensou os argumentos e partiu para a ofensa. Dezenove governadores decidiram manter esse tipo de instituição: o único atacado foi Eduardo Leite, por sua orientação sexual. A mensagem era clara: homossexuais seriam seres privados de discernimento e reféns de alguma parafilia. À exceção, claro, dos que partilhem da mesma ideologia do acusador.

Na seara racial, a treta coube a Itamar Vieira Junior, autor de “Torto arado” (mais de 400 mil exemplares vendidos).

Uma das premissas do movimento antirracista é estabelecer que não existe superioridade racial (o ideal seria provar que não existem raças, mas aí era querer demais). Há militantes, entretanto, que se empenham em caracterizar africanos e seus descendentes como pessoas diferenciadas, que não podem ser alvo de críticas senão por parte dos seus iguais (na cor). Sobrou para José Eduardo Agualusa, que alertou Itamar sobre essa armadilha, em delicado artigo publicado no GLOBO.

Reflexão virou whitesplaining; chegada de novas vozes ao debate, pacto de branquitude. Como se uma avaliação pudesse ser reduzida à cor da pele de quem a faz e de quem a recebe.

Millôr alertava sobre duvidar de todo idealista que lucra com o seu ideal. Deveríamos nos precaver é dos que deturpam o ideal alheio.

A democracia e seu equilíbrio

Não é difícil entender por que a democracia corre riscos. Nossa época é de transição. Estão a mudar o modo de produção, a organização do trabalho, os empregos, as formas de comunicação. Algumas mudanças já se sedimentaram, como no terreno da produção e circulação de informações, turbinadas pelas redes e pelas modalidades várias de autocomunicação de massas. A vida social sofre os espasmos dessas modificações: se desorganiza, se fragmenta, converte-se num território de indivíduos soltos que problematizam a participação política e despejam demandas no espaço público, exigindo sempre mais investimentos e direitos.



Como regime, a democracia está hoje submetida à desconfiança dos cidadãos, insatisfeitos com as respostas que obtêm dos governos. Está, também, sendo maltratada pelas correntes de extrema direita, que a violentam e a descaracterizam, e pelos populistas de variados tipos, que pouco se preocupam com fortalecê-la e protegê-la, ávidos que são pelos aplausos das multidões. Os grandes interesses econômicos, por sua vez, além de explorar a população, buscam manipular os institutos democráticos. Os personagens centrais da democracia representativa – os partidos, os parlamentares, os governantes – nem sempre vão além de proclamações em favor da democracia, deixando de adotar medidas que a blindem contra os ataques dos que a desprezam e a façam funcionar de maneira efetiva.


Apesar disso, a democracia continua respirando como valor. Vista como um sistema dedicado a viabilizar a participação política em condições de igualdade mínima – mediante o voto –, de liberdade, de direitos humanos e de vigência plena do Estado de Direito, a democracia permanece como horizonte ético e moral do mundo contemporâneo. Em nossas sociedades, a democracia é uma condição de possibilidade: sem ela, os cidadãos não são incentivados a defender sua privacidade em consonância com a pluralidade social. Deixam de interagir com os diversos pedaços da sociedade, que necessitam de procedimentos democráticos para se reaproximarem. A democratização do social vibra em todos os espaços organizados: nas escolas, nas famílias, nas empresas, nos esportes, na cultura, na política. Só freia sua marcha impetuosa diante das organizações fundamentalistas e de hierarquia rígida.

Há uma crise de autoridade por toda parte e a violência se esparrama, travando a recomposição social, que necessita de diálogo, temperança, paciência e serenidade argumentativa. É falsa a ideia de que autocratas obtêm submissão e obediência. Em sociedades complexas como as nossas, o máximo que conseguem é usar a intimidação e a ameaça para convencer parte da população a segui-los vida afora. Reprimem e estigmatizam os que a eles se opõem, num esforço para isolá-los do conjunto social. Autocracias populistas podem se reproduzir por longos períodos, caírem ao menor tropeço de seus líderes ou serem sugadas por crises não administradas. Em qualquer um dos casos, produzem estragos na política e no convívio social, deixando marcas que ferem a democracia e o Estado de Direito.

Nos regimes democráticos, combinam-se o conflito e o consenso, a liberdade e a ordem. A desobediência civil faz parte de suas regras, assim como o protesto e a luta social. O que conta são os procedimentos: pressionar, denunciar, reivindicar, mas não perder de vista o diálogo, a negociação e a civilidade.

O diálogo, afinal, é a trava de sustentação da democracia. É ele que garante a consideração das diversas opiniões e das demandas mais justas e emergenciais. Em vez da razão instrumental e da razão dos mais fortes, o diálogo instala a razão reflexiva, valorizadora do pensamento crítico, da ponderação e da análise dos argumentos. Com isso, desnuda as tentativas de fazer com que o poder possa tudo, como se estivesse à margem de considerações éticas ou morais. A razão reflexiva também facilita a navegação no mar de informações e desinformações com que temos de lidar, ajudando a que cada um consiga separar o lixo e neutralizar os ruídos tóxicos.

A democracia vigora sempre em equilíbrio dinâmico, que precisa ser continuamente alimentado. Está sempre em construção, não é um sistema perfeito. Quando o equilíbrio falta, o conflito se converte em guerra ou polarização paralisante, os interesses ficam exacerbados, como se não quisessem ou não soubessem se recompor. Crises se sucedem sem solução, criando condições para a emergência de lideranças autoritárias, salvadores da pátria, tida como ameaçada. É neste ponto que estacionamos hoje.

O equilíbrio requerido pela democracia não deriva somente de boas instituições e de governantes bem-intencionados. A prevalência do diálogo não é uma conquista de intelectuais ou de políticos falastrões: é algo que precisa se enraizar na vida social, modelar corações e mentes, infiltrar-se nas famílias, nas escolas, na cultura, na corrente sanguínea de cada cidadão. Ou seja, é algo que depende de educação, de práticas reflexivas e de empenho cívico.

A ideologia do descaso

As escolas cívico-militares não surgiram apenas do desejo militarista de governo recente, elas respondem ao fracasso histórico da educação de base no Brasil. Apesar das deformações pedagógicas que carregam para a formação dos alunos, se apresentam como alternativa a um sistema escolar sem qualidade, ineficiente e injusto. Não seria uma proposta imaginada se o sistema tradicional oferecesse aulas no horário certo, sem paralisações, nem violências, com bom funcionamento, respeito e reconhecimento aos professores, manutenção eficiente, banheiros limpos, e os alunos sentindo aprender para o futuro. A militarização da gestão pode limitar o espírito crítico necessário em uma boa formação, mas o que se ouve de alguns dos pais é que nessas escolas “pelo menos nossos filhos têm aulas regularmente”.


A prática das últimas décadas — sem compromisso com a qualidade, às vezes irresponsável na adoção de metodologias da moda sem comprovação científica — quebrou princípios necessários à aprendizagem. Pontualidade e respeito não ensinam, mas sem eles não se aprende. A militarização da gestão é vista pela população como tentativa de corrigir o caos que impera no setor público. Foi adotada por desvio ideológico de governo militarista, mas surgiu porque as escolas brasileiras parecem caricatura de uma escolinha do professor Raimundo. Se as outras escolas estivessem funcionando bem, as chamadas cívico-militares não seriam aplaudidas.

O MEC deveria analisar onde erramos ao longo de décadas e por que perdemos a guerra da educação de base. Igno­rar a falência é um desvio tão ideológico quanto achar que as escolas cívico-militares resolveriam o problema. São duas vertentes da permanente ideologia de descaso à educação de qualidade: uma com viés militarista, outra civilista, ambas se recusando à ambição de educação com qualidade para todos, independentemente da renda. Ideologia obscurantista que não acredita no potencial brasileiro para ter educação de base com a máxima qualidade e ideologia segregacionista de que no Brasil não seria possível assegurar, aos filhos dos mais pobres, escolas com a mesma qualidade assegurada aos filhos dos mais ricos. Ideologia que federaliza o ensino superior, mas deixa a educação pública de base entregue aos municípios pobres e desiguais, mantendo a educação privada financiada pelas famílias, com subsídios da União.

Acabar com a minúscula experiência federal cívico-militar pode barrar uma anomalia pedagógica, mas não vai melhorar a qualidade geral da caótica rede pública com mais de 150.000 escolas administradas por quase 6.000 municípios, nem reduzir a desigualdade conforme a renda do aluno. O MEC perdeu a oportunidade de analisar as razões do surgimento das escolas cívico-militares, de entender onde erraram quando estiveram antes no poder e deixou de apresentar sua proposta de reformas para o futuro: um novo e robusto sistema nacional de qualidade para todos. Pena que depois de quatro anos de ideologização do MEC, parece que esta é uma maldição que continua, substituindo a crença na disciplina militar pela tolerância com caos civil: o mesmo descaso com a falta de qualidade e com a aceitação da desigualdade.