segunda-feira, 6 de março de 2023

Brasil da média

 


Foram dois presentes contrabandeados. Bolsonaro recebeu o dele

Bolsonaro coleciona tiros disparados no próprio pé. No caso das joias contrabandeadas da Arábia Saudita em outubro de 2021, o que poderia ter sido apenas mais um tiro foram dois, agora se sabe.

O governo daquele país mandou por intermédio do almirante Bento Albuquerque, ministro das Minas e Energia, duas caixas com presentes para Bolsonaro e a primeira-dama Michelle.

Se a intenção inicial fosse respeitar a lei, os presentes teriam sido declarados à alfândega de Guarulhos quando o ministro desembarcou de volta, mas não foram. Chegaram escondidos.

O presente de Michelle (um conjunto de joias e um relógio avaliado em 16,5 milhões de reais) foi trazido dentro de uma sacola por um ajudante de ordem do ministro, e apreendido.


O presente de Bolsonaro (relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário, todos da marca suíça Chopard) escapou à vigilância dos agentes da alfândega e entrou ilegalmente no país.

A identidade do portador do presente para Bolsonaro não foi revelada. O valor do presente, tampouco. O que se conta é que o presente só foi entregue a Bolsonaro em novembro último.

Quer dizer: ficou mais de um ano guardado no Ministério das Minas e Energia enquanto Bolsonaro fazia tentativas para reaver a caixa com as joias de Michelle; foram 8 tentativas sem sucesso.

O assessor especial do Ministério de Minas e Energia Antônio Carlos Ramos de Barros Mello entregou pessoalmente o presente de Bolsonaro ao Palácio do Planalto no dia 29 de novembro.

Segundo Mello, tão logo o presente deu entrada no ministério, a Receita Federal e a Presidência da República foram informadas e consultadas a respeito. Que fim deveria ser dado ao presente?

Mello explica:

“Foi entregue ao Planalto porque demorou-se muito nesse processo para dizer quem vai receber, quem não vai, onde vai ficar, onde não vai ficar. Só não podia ficar no ministério”.

Se eram presentes normais, deveriam ter sido declarados à chegada, e incorporados ao acervo da Presidência da República. O casal Bolsonaro poderia até usá-los, mas não ficar com eles.

Neste sábado, após evento nos Estados Unidos, Bolsonaro disse que não pediu nem recebeu qualquer tipo de presente em joias do governo da Arábia Saudita:

“Estou sendo crucificado no Brasil por um presente que não pedi e nem recebi. Vi em alguns jornais de forma maldosa dizendo que eu tentei trazer joias ilegais para o Brasil. Não existe isso”.

Pode não ter pedido, mas recebeu o seu com atraso de mais de um ano. Michelle foi que não recebeu o dela. Bolsonaro está a construir uma narrativa para não ser acusado por mais um crime.

País dos esquecidos


Ser esquecido é o destino natural de todo brasileiro que comete o equívoco de morrer
Ruy Castro, no discurso de posse na ABL

A insurreição da extrema-direita

As ações históricas mais expressivas são feitas por quem sequer tem ideia do que está fazendo. Foi impossível deixar de pensar nisso ao ver a imagem do manifestante que entrou no Palácio do Planalto e achou por bem esfaquear, com uma violência tanto mais impactante porque displicente, a tela As Mulatas, de Di Cavalcanti. Seria fácil dizer que se trata de simples vandalismo, cometido por uma pessoa tão brutalizada que é incapaz de perceber o valor de um quadro “de 8 milhões de reais”, como se disse à época. Mas a verdade é que conflitos sociais reais acabam sempre por encontrar suas imagens e significações, a despeito da intenção dos seus agentes. O que o manifestante queria fazer ou acreditava estar fazendo tem pouca importância, pois não foi exatamente ele quem agiu, mas toda uma estrutura por meio dele. E, como costumava dizer Jacques Lacan, há momentos em que as estruturas descem às ruas.

É possível olhar para tudo que ocorreu em Brasília em 8 de janeiro e agir como se fosse a expressão irracional da violência das massas. Mas o que aconteceu – e provavelmente se repetirá mais à frente – não foi de fato “irracional”. Foi, na verdade, um acontecimento várias vezes previsto e anunciado: uma certa repetição do que se viu na invasão do Capitólio, em Washington. Durante muito tempo se destacou um lugar para esse acontecimento na racionalidade das lutas políticas atuais no Brasil. A questão é que essa racionalidade mudou, embora muitos prefiram não admiti-lo.

O desejo de não enxergar é tão forte que, depois das imagens muito vistas do 8 de janeiro, seguiram-se imagens não vistas, como a que registrou o que ocorreu na Praça dos Três Poderes, em 31 de janeiro passado, terça-feira. Na tarde desse dia, um senhor de 58 anos, cuja identidade não foi divulgada, ateou fogo no próprio corpo gritando palavras de ordem contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o ministro Alexandre de Moraes. O homem morreu no dia 2 de fevereiro, e a maioria da imprensa preferiu não noticiar o caso. Decisão questionável, pois apenas reforça o desconhecimento da opinião pública a respeito do momento em que efetivamente nos encontramos, marcado pela força de engajamento e sacrifício da extrema direita.


A melhor maneira de não resolver um problema é ignorar sistematicamente sua real extensão e profundidade. Mas quem segue os fatos políticos das últimas décadas se lembrará de como a Primavera Árabe começou. Em dezembro de 2010, em uma pequena cidade no interior da Tunísia, um homem se autoimolou como forma desesperada de protesto contra as extorsões que sofria da polícia e do governo local. “Isso é mera analogia sem real poder explanatório”, dirão alguns. Eu gostaria, porém, de insistir no contrário. Essa repetição com os sinais invertidos demonstra que estamos outra vez diante de uma dinâmica insurrecional, mas agora capitaneada pela extrema direita.

Nesses últimos meses, uma parte do país foi pega de surpresa pela insistência, a abnegação e o entusiasmo com que pessoas de extrema direita se mobilizaram. Achar que essa dinâmica foi rompida apenas por que agora se fez algumas prisões é simplesmente tomar nossos desejos por realidade. Vimos algo muito parecido em 2021, na sequência dos eventos ocorridos em Sete de Setembro, quando Bolsonaro fez ataques ao STF e estimulou discursos incendiários: ocorreram prisões e declarações de que o então presidente havia “ultrapassado os limites”, desarticulando com isso a sua base popular. No entanto, o que ocorreu foi outra coisa. A mobilização da extrema direita não retraiu, não arrefeceu, não acabou. Ou seja, não se deve agora, em absoluto, descartar a hipótese de que o Brasil se tornou o laboratório de uma nova fase da extrema direita mundial, a saber, justamente, a fase insurrecional.

Nesse contexto, “fase insurrecional” significa que a extrema direita mundial tenderá, cada vez mais, a operar como força ofensiva anti-institucional de longa duração. Força essa que pode se expressar em grandes mobilizações populares, em ações diretas, em formas de recusa explícita das autoridades constituídas. Ou seja, toda uma gramática de luta que até pouco tempo atrás caracterizava a esquerda revolucionária agora está migrando para a extrema direita, como se estivéssemos em um mundo invertido.

Melhor aceitar isso do que continuar com explicações “deficitárias” a respeito do bolsonarismo, como se fez à exaustão nos últimos anos. Explicações deficitárias são aquelas que colocam a causa dos fenômenos em pretensas deficiências dos agentes, como dizer que o bolsonarismo é resultado do ressentimento (deficiência psicológica), do obscurantismo e das fake news (deficiências cognitivas), do ódio (deficiência moral). Explicações dessa natureza servem mais para corroborar a crença do analista em sua pretensa superioridade moral e intelectual do que para auxiliar na compreensão efetiva de um fenômeno sociopolítico de inegável complexidade.

Não deixa de ser significativo que a extrema direita descreva a esquerda brasileira recorrendo aos mesmos termos. Aos olhos da extrema direita, a esquerda é obscurantista, ideologicamente cega, ressentida e marcada pelo ódio. O que mostra o caráter eminentemente estratégico desses “conceitos analíticos”. Eles são peças de um embate retórico e, no máximo, descrevem efeitos, não causas. Ninguém passa meses tomando chuva diante de um quartel movido pelo ressentimento, mas porque acredita fazer parte de um movimento real de ruptura e transformação que irá “passar o país a limpo” e reconstruir a história brasileira, o que exige sacrifício. Há um sistema positivo de motivações movendo essas pessoas que precisa ser analisado enquanto tal.

Este texto começou com uma digressão sobre as facadas contra uma tela de Di Cavalcanti que parece ter ficado perdida no primeiro parágrafo. Na verdade, era uma maneira de introduzir o verdadeiro argumento do artigo: em todo processo de insurreição popular ocorre a afirmação de que o povo representado pelo poder não é o povo real. Para os insurgentes, o povo real é aquele que destrói as representações do poder.

Por isso, nunca houve insurreição popular sem derrubada de estátuas, profanação de espaços públicos, degradação de patrimônio histórico e artístico. O poder público não é apenas um conjunto de aparatos de controle e legislação. É um conjunto de sistemas estéticos de apresentação do povo. É a gestão contínua de toda uma série de hinos, canções “populares”, espaços arquitetônicos, pinturas, imagens, poemas, romances que visam não exatamente a “representar” um povo, mas a construí-lo. E não há país melhor para demonstrar como isso funciona do que o Brasil.

De certa forma, o Brasil é uma construção estética. Se toda nação mobiliza, em alguma escala, tal dimensão para se constituir como povo, é fato que o Brasil moderno é impensável se não for visto também assim. Não é possível compreender os desejos de modernização e desenvolvimento no país sem articulá-los a um processo amplo de construção e modernização estética do próprio povo. O ápice disso é a criação de Brasília. Como dizia o crítico de arte Mário Pedrosa, na época da fundação da capital federal (e é bom que se leia isso reparando em seu tom de utopia concreta), “edificar a cidade nova é a maior obra de arte que se possa fazer no século”. Há que se acrescentar que quem constrói uma cidade não constrói apenas uma urbis: constrói também seus habitantes.

Como toda insurreição popular é, entre outras coisas, um processo de desautorização estética, o manifestante que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti ignorou não apenas este trabalho, como se indispôs contra as linhas curvas de Oscar Niemeyer, os murais de Athos Bulcão e o paisagismo de Burle Marx. Com seu gesto, ele queria dizer, como outros já disseram em vários momentos da história: “Esse povo representado pelas obras modernistas de Brasília não é o povo real. O povo está em outro lugar.”

Vale a pena refletir sobre isso com vagar. Porque é possível imaginar que algumas pessoas tenham dito: “Toda destruição popular de signos do poder tem algo de liberador. Não é possível criticar quem fez o que fez em Brasília em 8 de janeiro.” Mas essa posição resulta de um equívoco duplo. O primeiro consiste em acreditar que toda destruição é igual. O segundo, e ainda pior, que toda construção também é igual.

Comecemos pelo segundo erro. Como disse anteriormente, o Brasil “moderno” é uma ideia artística. A construção nacional tem entre seus eixos fundamentais o uso da modernização estética como força de redefinição do espaço, do tempo e do território. O Brasil entrou para a história como o único país do mundo (junto com a União Soviética), onde o modernismo se tornou um verdadeiro projeto de Estado. O que levou o arquiteto Lucio Costa, que fez o Plano Piloto de Brasília, a anunciar que, com a construção da capital, estava surgindo “uma nova era política, na qual a arte retomaria mais uma vez o controle da técnica”.

A ideia de construção estética de um povo, ou de fundação de um povo a partir de forças de produção simbólica e unificação social próprias a certas experiências artísticas, remete ao começo do século xix europeu. Todo professor de filosofia, classe na qual me incluo, conhece o sentido histórico de textos como A Educação Estética do Homem (1795), de Friedrich Schiller, e O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão (1796-7, de autoria incerta, é atribuído a Hegel, Schelling e Hölderlin). São textos que defendem a tarefa histórica de uso das artes como dispositivo de emancipação política e social. E não por acaso foram animados pelas transformações globais impulsionadas pela Revolução Francesa.

Uma das consequências de uma revolução popular é a crença de que podem emergir novas dinâmicas de constituição do povo, possibilitando a modificação estrutural da sensibilidade e da imaginação. Uma sociedade liberada da reprodução material de tradições e mitos fundadores pode mobilizar a experiência estética como solo de criação social de novas formas. Algo dessa crença orientou o desenvolvimento do modernismo em certos países de constituição nacional tardia, como o Brasil. Animado por um processo que não foi uma revolução social, mas uma “revolução pelo alto”, a partir de 1930, o Brasil utilizou o horizonte utópico do modernismo para impulsionar a formação de um Estado nacional propulsor de uma modernização “ambígua”.

O adjetivo “ambígua” não foi usado por acaso. Poder algum se associa à força construtiva de experiências estéticas autônomas sem que isso traga acordos instáveis e difíceis de controlar. O modernismo brasileiro não foi uma emulação do Estado. Ele se realizou como uma estética da conciliação nacional, em que a aspiração vanguardista de “criar um povo que falta” se encontrava com os desejos de modernização conservadora e de progresso do Estado populista brasileiro a partir da era Vargas. Para que essa conciliação funcionasse, foram necessários muitos apagamentos e silenciamentos. Pois, para criar um povo que falta, se faz necessário negar um povo que já existe, é preciso jogar na invisibilidade esse povo que não se adequa à geometria estelar e à amplidão do vão livre arquitetônico que o modernismo brasileiro consagrou.

Por outro lado, essa modernização – e aí está seu traço ambíguo – exige que não nos apoiemos mais no solo, no território, na tradição, nas formas já constituídas de vida. Ela pede um empuxo de criação e invenção que, como eu disse, nenhum poder consegue controlar muito bem. Imbuído desse espírito do modernismo brasileiro, Celso Furtado falava de uma improvável “fantasia organizada”, uma das mais belas expressões para se referir à utopia estética nacional. Algo não muito distante do que disse Lucio Costa, ao declarar que, com Brasília, havia construído uma cidade capaz de aliar “trabalho ordenado e devaneio”. De fato, o processo é contraditório, mas essa contradição é real. Triste o tempo em que o pensamento crítico não conhece mais contradições reais.

A pessoa que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti dentro do Palácio do Planalto agiu contra os dois lados da contradição. Ela recusou a conciliação prometida pela representação oficial do povo, dizendo com isso que há uma irreconciliação ativa, que esse não é o povo real. Mas não parou aí. Seu gesto incluiu ainda uma segunda intenção, que consiste em também não aceitar o empuxo de criação e ruptura que a construção modernista do povo expressou no Brasil. Esse segundo gesto inconsciente, mas brutalmente real por ser inconsciente, nos lembra do primeiro equívoco que mencionei antes: o de acreditar que toda destruição é igual. Há destruições que são a condição para se criar o que ainda não foi visto. E há destruições que apenas negam aquilo que ainda guarda a força silenciosa de criação de novas configurações sociais. Nesse caso, por meio da negação, busca operar uma restauração

Esse segundo gesto do agressor da tela de Di Cavalcanti só pode ser compreendido em sua real intenção se entendermos que o bolsonarismo não é simplesmente “a destruição da cultura”. É a encarnação de um embate centenário que atravessa a história do Brasil e consiste em tentar destituir um projeto de construção estética do povo em nome de outro, pretensamente mais popular e que não seja a expressão das “elites culturais globalistas”. O movimento será sempre este: o de construir esteticamente um povo, mas destruindo outro. No mesmo espaço.

Quando Bolsonaro perdeu as eleições e deixou os palácios da Alvorada e do Planalto, não foram poucos os que fizeram troça das “obras de arte” de gosto duvidoso recebidas pelo ex-presidente e empacotadas para sua mudança, como uma motocicleta esculpida em madeira, esculturas feitas de cartuchos de balas e quadros em que ele aparece ao lado de Jesus Cristo. As redes sociais se deleitaram com tamanha miséria estética. Eram trabalhos de cunho artesanal ou feitos por autodidatas que celebravam o próprio Bolsonaro. No entanto, qualquer pessoa familiarizada com o integralismo brasileiro não deixaria de reconhecer neles elementos estéticos do movimento, com sua mescla de formas populares, “poesia ingênua e sentimental” e referências religiosas e patrióticas.

De fato, o integralismo, ou seja, o fascismo brasileiro, foi inicialmente uma outra construção estética do povo – contraposta à do projeto modernista que predominou. O que não poderia ser diferente, se lembrarmos que o fundador do integralismo, Plínio Salgado (1895-1975), além de exercer a atividade política, foi escritor e participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e dos embates internos do modernismo brasileiro, tendo redigido seus próprios manifestos artísticos, como o do Movimento Verde-Amarelo, de 1926. A estética integralista celebrou outra forma de conciliação nacional, ainda mais violenta – e muito menos ambígua –, entre a acumulação capitalista primitiva, de cunho extrativista, a religião, a tradição e o extermínio indígena.

Como é um modernismo cortado de sua raiz de ruptura formal, mas que preserva seu desejo de autonomia do presente, o integralismo adequa a tradição às exigências de desenvolvimento predatório capitalista, que não verte lágrimas por aquilo que destrói. Ele é a expressão de um povo que estaria conciliado com a violência do progresso colonial e extrativista, do empreendedorismo capitalista, com a ordem atual da sensibilidade, que não questiona o que socialmente aparece como “natural”, as hierarquias “naturalmente” dadas (como as que constituem a família burguesa e o poder teológico-político). Muitos desses elementos serão atualizados nessa “estética da produção agrária exportadora” que sela a associação entre a indústria cultural brasileira e o bolsonarismo. Basta lembrar, por exemplo, a dicotomia construída por Plínio Salgado entre os tupis, que na concepção dele se permitiriam dizimar “pacificamente” para viver no sangue de cada brasileiro, e os tapuias, cujo ímpeto guerreiro e hostil à assimilação os levou ao completo apagamento.

Tudo isso indica um fenômeno que é importante não esquecer. Se há algo que a estetização política produzida pelo fascismo compreendeu é que não há insurreição popular sem reconstrução estética do povo. Há uma dimensão profunda dos embates políticos que são embates estéticos – entre formas distintas de afecções e circulação da experiência sensível. De certo modo, involuntariamente – como é involuntário todo verdadeiro ato político –, o manifestante que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti disse exatamente isso.

Joias das arábias

A sabedoria popular recomenda não mexer no mau cheiro sob pena de piorar o fedor. O caso das joias das arábias, presente do príncipe saudita para o casal Bolsonaro, comprova o dito. Quanto mais se sabe da espantosa história apurada pelo Estadão, mais complicada fica a posição do ex. Bolsonaro, que não vê ilegalidade no mimo, jamais escondeu sua preferência pelos sauditas nas negociações envolvendo a Petrobras, até para a privatização da estatal brasileira. Uma relação que além da “afinidade” com o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman envolve bilhões de dólares.

As joias – um conjunto de anel, colar, brincos e relógio masculino de diamantes – foram apreendidas no dia 29 de outubro de 2021, pela Receita Federal em Guarulhos. Estavam na mochila do assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que, em entrevista gravada pelos repórteres, afirmou se tratar de presentes para o ex e sua mulher Michelle. Albuquerque retornava de uma viagem oficial ao reino de bin Salman, com quem Bolsonaro falara dias antes.


À época, o Palácio do Planalto confirmou as sucessivas conversas telefônicas com o xeique – três em menos de dois meses – e a disposição do saudita de investir pesado nos leilões de petróleo brasileiro. Dois meses depois, o fundo Mubadala, do vizinho Emirados Árabes, arrematou, pela metade do preço, a refinaria Landulpho Alves (Rlam), localizada em São Francisco do Conde, na Bahia. A Rlam tinha sido avaliada entre R$ 17 e R$ 21 bilhões pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) e foi vendida por R$ 10,1 bilhões. Al Saud, príncipe herdeiro dos Emirados, é amigo do peito do saudita bin Salman e seus países têm vários negócios petrolíferos casados.

As relações de Bolsonaro com bin Salman começaram em 2019, quando o ex visitou o Oriente Médio. “Estou apaixonado pela Arábia Saudita”, disse, ao avaliar a viagem e anunciar que o xeique destinaria ao Brasil US$ 10 bilhões do fundo soberano de seu país. O herdeiro teria ainda convidado o Brasil a integrar a Opep, seleto clube dos produtores de petróleo que, na prática, determina o preço do óleo bruto no mercado internacional.

Nem os bilhões de dólares prometidos nem a inserção do Brasil na Opep se materializaram, mas bin Salman continuou prestigiado pelo ex-presidente, que o tratava como “um irmão”. O então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, apostava nos sauditas em privatizações e leilões de refinarias. Até a venda da Petrobras estava incluída nas especulações.

Confeccionado pela Chopard, uma das mais exclusivas e luxuosas joalherias do mundo, o presente avaliado em R$ 16,5 milhões nem fez cócegas na fortuna de US$ 1,4 trilhão de bin Salman, mas teve o efeito contrário ao pretendido pelo príncipe saudita. Deu e continua dando trabalho ao seu “irmão” brasileiro.

A história é toda cabeluda. Por maior que seja o contorcionismo que agora os ex-assessores de Bolsonaro e ele próprio tentam fazer, não há explicações plausíveis para o presente. Muito menos de ele ter sido acomodado em uma mochila de um assessor como peças que os viajantes tentam passar sem chamar atenção da aduana.

Mais esquisita ainda é a alegação de que ninguém na comitiva, a começar pelo ex-ministro que a chefiava, sabia do conteúdo das caixas que carregavam, o que dificulta – e muito – alterar a narrativa para um presente oficial. Pior: como justificar a insistência de Bolsonaro para recuperar as joias? Se eram do Estado, por que não declará-las previamente? E por que teriam de passar por uma “análise”, como aponta um documento apresentado pelo ex-chefe da Secretaria de Comunicação de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, na tentativa de defender seu chefe? Ora, se era necessário avaliar se “deveriam ser incorporadas ao acervo privado do presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”, no mínimo pairavam dúvidas sobre o destino do presente.

O episódio agora será investigado pela Polícia Federal, que, se espera, conseguirá destrinchar o caso e as várias interrogações dele, incluindo as eventuais transações tenebrosas do ex com o reino saudita. Por hora, cabem todos os elogios aos funcionários da Receita que não se dobraram às investidas de Bolsonaro para liberar a preciosa carga.