domingo, 17 de fevereiro de 2019

Pensamento do Dia


Autocombustão

O governo Jair Bolsonaro já estava paralisado sem nem ter começado. A expectativa era de que essa letargia cessaria com a alta do presidente da República após duas semanas de internação. Mas a prioridade de Bolsonaro e família ao deixar o hospital não era a reforma da Previdência, mas incinerar um aliado nas redes sociais, sem se dar conta de que a chama poderia voltar e chamuscar o próprio governo.

A semana terminou com Gustavo Bebianno ainda pendurado ao cargo por um fio. Parece que Bolsonaro vai demiti-lo oficialmente na segunda-feira, mas não é bom cravar nada. Afinal, o presidente chamou o seu secretário-geral da Presidência de mentiroso enquanto ainda estava no hospital, deixou o filho brincar de fritá-lo no Twitter, deu ordem para mantê-lo no cargo e, depois, o demitiu verbalmente. Mas nada está formalizado. Este, aliás, não é um governo que se atenha a formalidades.

Num show de horrores digno de programa de barraco familiar vespertino, Carlos Bolsonaro deixa vazar áudios privativos do presidente e o ministro atingido replica fazendo vazar conversas suas com o mesmo presidente. Eis a “nova era” da comunicação direta com o povo. Um coquetel perigoso de despreparo, arrogância, autoritarismo e ingenuidade leva os Bolsonaros a jurarem que estão revolucionando a forma de fazer política e se comunicar, mas se esquecem de que as armas que usam para aniquilar inimigos (mesmo aqueles que eram amigos até ontem) podem se voltar contra eles. Afinal, se não há privacidade assegurada, vale tudo na selva das redes sociais.


Quem mais tem a perder com isso é quem tem mandato. No caso, o presidente, que insiste em brincar no Twitter ou bancar o sujeito bonachão que se deixa fotografar de chinelo e camiseta pirata de time de futebol enquanto arbitra o futuro dos brasileiros na questão mais relevante de seu governo.

Acontece que o teatro do caos vai cansando mesmo aqueles que votaram nele. Sim, porque o coquetel demoníaco a que me referi faz com que o clã tuiteiro viva a ilusão de que o patriarca foi eleito única e exclusivamente pelas redes sociais, quando muitos apenas taparam o nariz e apertaram o 17 achando que era menos pior que o 13 do PT, que levou o País à bancarrota.

Bolsonaro foi eleito por 57.797.456 de pessoas. Menos que os 58.151.241 que votaram em Fernando Haddad, em branco ou nulo. Quando se somam a esse contingente de votos contra ele os 31.371.704 que se abstiveram, tem-se um número que deveria ser eloquente para qualquer mandatário sensato ver que precisa mostrar serviço sob pena de ver a popularidade ruir.

Agora, paralelamente à apresentação de um texto que mexe diretamente com a vida das pessoas, como é a reforma da Previdência, tem-se a encenação de uma ópera bufa da demissão de alguém que sabe tudo da vida da família Bolsonaro. O presidente parece não se lembrar de que Bebianno, antes de ministro do palácio e coordenador da campanha, foi seu advogado! Conhece, portanto, o histórico patrimonial da família, as relações de amizade, as entranhas dos gabinetes de todos e os acordos que foram feitos para o desembarque da tropa bolsonarista no PSL, que era e continua sendo uma legenda de aluguel nas mãos de Luciano Bivar.

O poder que tem alguém com esse nível de acesso, humilhado reiteradamente e com uma clara disposição de não ter a reputação destruída, é imprevisível. A frase dita a mim por Bebianno dá uma pista do que está por vir: “O que eles que chamam de inferno, eu chamo de lar”. A citação não é de nenhum filósofo. Como uma boa metáfora da era Bolsonaro, ela é o slogan do segundo filme da série Rambo, que retrata um militar expurgado, armado até os dentes e disposto a tudo para se vingar.

Perigo no Planalto

Perdi a confiança no Jair. Tenho vergonha de ter acreditado nele. É uma pessoa louca, um perigo para o Brasil
Gustavo Bebianno, (ex) Secretario-Geral da Presidência

Brumas de uma tragédia ao sol

A tragédia dos resíduos de Brumadinho terá sido apenas um acidente brutal? Ou um crime articulado pela insânia da cobiça, em que a irresponsabilidade empresarial e a burocracia fiscalizatória se aliaram e inventaram a fantasia dos papéis?

Tal qual no horror de 2015 em Mariana, a realidade virou acessório. Os licenciamentos “estavam em dia”, mas as licenças não consultaram o mundo real. Nem mesmo o infortúnio nos despertou.


Simular que catástrofes são acidentes é grosseiro e nos faz cúmplices da catástrofe renovada. Conhecíamos o perigo das “barragens a montante”, proibidas noutros países, mas nada fizemos. Três anos e meio depois do horror da lama ácida esterilizando terras férteis de Minas e Espírito Santo e transformando o Rio Doce em amargo fel quase sem vida, tudo se repetiu.

Tal qual a extração de petróleo, a mineração é atividade destrutiva. Dilacera a natureza (e, assim, a vida), mas deixamos assim... Nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, descreveu a dor pela transformação de sua mineira Itabira natal em crateras que viravam montanhas: “Por isto sou triste, ... de ferro./ Noventa por cento de ferro nas calçadas/ oitenta por cento de ferro nas almas/ ... mas como dói”.

Tão só no terceiro trimestre de 2018, a Vale teve lucro líquido de R$ 5,8 bilhões, que o presidente da empresa, Fabio Schvartsman, festejou como fruto da “otimização dos níveis de produção”. Calou-se, porém, sobre os “níveis” de respeito à natureza, como se a natureza não fosse o núcleo do lucro. O “homem de preto” (tradução de seu sobrenome em alemão) ignorou o que não devia esquecer.

Seguimos com a mentalidade extrativista dos séculos 17 e 18, furando o solo a esmo. Primeiro foi o ouro. Agora, o minério de ferro e suas cicatrizes colossais, que transformam áreas de exploração em quilométricas e profundas crateras estéreis, onde nem erva daninha brota.

Logo, as “barragens” - o descartado, que se faz resíduo ácido se acumula como montanha que, ao se romper, devasta tudo. Os corpos despedaçados de Brumadinho (alguns, só amontoados de vísceras) mostram a fúria.

Somente na chacina de Canudos, no século 19, morreram (ou “desapareceram”), em um só dia e de uma só vez, tantos ou mais do que agora. Milhares, narrou Euclides da Cunha neste jornal, em 1897. As fotografias de Flávio de Barros das esfarrapadas 400 mulheres e crianças “jagunças-prisioneiras” testemunharam os sobreviventes. Neste 2019 não chegam a dez os resgatados com vida.

Hoje, 122 anos depois, já não se tratou de “operação militar” contra gente pobre que queria amar seu Deus e se governar à sua maneira. Mas o desprezo pela vida se agravou, destruiu o meio ambiente e esterilizou terras, rios e riachos.

Uma das maiores empresas do País cometeu o horror em nome do desenvolvimento econômico. As exportações fazem da Vale um de nossos símbolos mundo afora, e isso já a obrigaria a ter amor à terra da qual extrai tanta riqueza. Mas, após a catástrofe, uma das primeiras iniciativas foi contratar o “marqueteiro” Nizan Guanaes, que transforma absurdos em hábitos, como o tal de “adoro pizza com guaraná”...

Onde está a responsabilidade empresarial?
A mineração, concessão do Estado, não dá “direito” a devastar. O que seria de um jornal que mentisse e inventasse - como as “redes sociais” -, só por agradar e ter lucro, não para informar e analisar?

Em tudo, a responsabilidade deve começar pelo empresário. É impossível criar um “Estado policial-fiscalizatório”, que vigie cada atividade - mineradora, abatedouro de frango, poço de petróleo ou floresta nativa.

Hoje, nossa mastodôntica engrenagem estatal se destina ao quase nada ou a ser corrompida. Presente em tudo com formulários e carimbos, é alheia ao fundamental. A parafernália burocrática ocupa espaços, mas pouco deixa para a realidade. No caso da mineração, o governo federal tem apenas 35 fiscais destinados às 790 barragens de resíduos espalhadas pelo País. O número ridículo desnuda tudo.

Por isso, a tragédia de Brumadinho vai além das centenas de mortos e “desaparecidos”. Ou da devastação de terras férteis e rios. O terrível é nossa cumplicidade (direta ou indireta) num crime articulado pela irresponsabilidade empresarial e pelo descaso dos governantes.

A cobiça foi ponto de partida e de chegada. A mineração é mais destrutiva do que o desmatamento. Podemos replantar árvores, mas... e os devastadores resíduos? Vemos a natureza como traste incômodo, não como suporte da vida no planeta, obra sagrada a preservar.

No Senado e Câmara dos Deputados, morreram nas gavetas todos os projetos de lei que ampliavam exigências sobre as barragens. Em 2014, a Vale e mineradoras menores financiaram a eleição de 145 deputados estaduais, 101 deputados federais e 10 senadores de 27 partidos, do PSL ao PCdoB, do MDB ao PT, PSDB, PP, DEM, PDT e rabichos de menor porte, e assim colheram o fruto do plantio milionário...

Na legislatura da Câmara concluída em 31 de janeiro, a Vale investiu mais de R$ 82 milhões na “bancada da lama”, liderada pelo deputado Leonardo Quintão, do MDB de Minas. Tudo passava por ele. Não reeleito, hoje está na Casa Civil, em Brasília, como um dos conselheiros do presidente Bolsonaro.

Na campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro - o eleito - prometeu afrouxar as leis ambientais e acabar com “a indústria das multas”, como ele inventou de chamar as punições. Mas as multas são só virtuais. Desde 2015 a Vale acumula R$ 389 milhões em multas, sem ter pago um centavo. Recursos judiciais sem fim livram sempre os infratores. Ainda pensará em “afrouxar”?

Seguiremos escondidos na bruma, sem ver o sol que a tragédia de Brumadinho mostra agora?

As estrepolias de 'Juca e Chico'

Bem, sou antiga mesmo. E como tal, trago para vocês "Juca e Chico - História de Dois Meninos em Sete Travessuras", (Max und Moritz, Eine Bubengeschichte in sieben Streichen), título do livro infantil publicado em 4 de abril de 1865 pelo humorista, poeta e desenhista alemão, Wilhelm Busch, que narra as astuciosas aventuras de dois irmãos.

Traduzido em 1915 para o português pelo nosso Príncipe dos Poetas, Olavo Bilac, a edição respeitou as ilustrações do próprio Busch.. “Max und Moritz”, aqui chamados de “Juca e Chico” foi, durante mais de um século, um dos mais vendidos livros infantis em todo o mundo.

Considerado o pai das histórias em quadrinhos, publicado em mais de 300 línguas, “Juca e Chico” é tido também como inspirador das também extraordinárias aventuras de “Os Sobrinhos do Capitão” (Die katzenjammer kids, de Rudolph Dirks).

Busch baseou-se em travessuras das quais participou e também valeu-se de relatos que ouviu. Quando uma vez lhe perguntaram sobre a veracidade das histórias, respondeu: "A maior parte é inventada, mas algumas coisas realmente aconteceram. O fato de que travessuras maldosas não têm um bom final com certeza é o que há de verdade nela”.

Quer saber como começam as aventuras dos dois capetas? Aqui copio o prólogo:

"Não têm conta as aventuras,
As peças, as travessuras
Dos meninos mal criados;
Destes dois endiabrados,
Um é Chico; o outro é o Juca:
Põem toda a gente maluca,
Não querem ouvir conselhos
Estes travessos fedelhos!
Certo é que, para a maldade,
Nunca faz falta a vontade
Andar pela rua à toa,
Caçoar de uma pessoa,
Dar nos bichos, roubar frutas,
Armar brigas e disputas,
Rir dos homens respeitáveis,
São coisas mais agradáveis,
Que ir à escola ou ouvir missa
Antes a troça e a preguiça!
Mas nem sempre a vadiação
Acaba sem punição
Lede esta história: e, depois,Vereis a sorte dos dois."


As peraltices: 1) levados, matam as galinhas do quintal da viúva Bolte; 2) pescam, pela chaminé da cozinha, as galinhas que estavam assando e a viúva culpa o cachorro, que leva uma surra; 3) o alfaiate precisa atravessar um riacho quando quer ir ao centro. Os meninos serram uma das taboas da ponte e tchibum, lá vai o alfaiate água abaixo 4) sabendo que o professor estava na escola, vão à sua casa e enchem de pólvora seu cachimbo. Coitado do professor, fica com o rosto e os cabelos queimados; 5) enchem a cama do tio com besouros. Pobre tio, acorda no meio da noite com um besouro passeando em seu nariz; 6) os meninos invadem a padaria, ficam enfarinhados e caem no pote de massa. O padeiro pensa que são biscoitos e os coloca no forno. Saem assados, mas espertos conseguem escapar, roendo a casca aos bocados; 7) já no moinho do fazendeiro Mecke a sorte não lhes sorri. Querem roubar grãos e abrem furos nos sacos. Mecke percebe a astúcia e os deixa no saco que vai colocar no moinho. Resultado: os meninos viram grãos que são devorados pelos patos da fazenda.

Você, Leitor, ficou triste? Pois saiba que ninguém na aldeia se apiedou dos garotos. Como prova o epílogo, que copio:

"Na vila; ninguém chorou.
Recordando as suas aves,
Murmurou a viúva Chaves:
“Eu logo vi” ; O alfaiate,
Dando a uma calça o remate,
Suspirou: “Fez-se justiça!”
O mestre ajudando à missa,
Sentenciou: “A maldade
Não tem o fim da bondade”
O bom tio Frederico
Disse: “Meu Juca! Meu Chico!
A vadiação não faz a lei
Bem que eu vos aconselhei!”
“Bem feito!” disse o padeiro;
E, indiferente, o moleiro:
“Eu cá fiz o meu serviço,
Não tenho nada com isso
Em suma, por toda a vila,
Livre de dois e tranquila,
Reinou a paz afinal
Mais nada. Ponto final!


Pois é. Aos traquinas, um conselho. Parem de aprontar. Lembrem-se que nem sempre, como disse Wilhelm Busch, a vadiação acaba sem punição.

Gente fora do mapa


A militarização do governo

A queda estrondosa do ministro Gustavo Bebianno e a confirmação de que o Brasil vive a era da “filhocracia” reforçam uma tendência clara: quanto mais o presidente Jair Bolsonaro tropeça nos próprios pés, mais os militares se aprumam, ganham poder e se infiltram em todos os setores do governo, não mais apenas em áreas fortes do Exército, como a infraestrutura, mas até em política externa, educação e meio ambiente.

Ao anunciar nesta semana o fim da Superintendência do Ibama no DF e a substituição de exatamente todos os demais 26 superintendentes estaduais, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem um objetivo muito claro: substituir pelo menos 20 deles por militares.


“Não se pode brincar com isso, os superintendentes é que concedem licenças e alvarás e eu não sou obrigado a conhecer gente confiável em todos os Estados, no Amapá, no Acre, em tantos lugares em que nunca fui”, diz Salles.

Ele pediu ajuda ao Ministério da Defesa e aos generais do entorno de Bolsonaro para sugerir nomes. Como os militares têm boa formação e se aposentam cedo, como coronéis e capitães, não é difícil encontrar mão de obra. Eles, aliás, já ocupam cargos-chave no ministério de Salles, inclusive a chefia de gabinete.

No caso da Educação, houve até quem sonhasse em ter um general no MEC, mas a ideia não vingou porque a reação poderia ser de surpresa, primeiro, e de confronto, depois. Mas o que não falta no governo é gente enaltecendo os colégios e institutos militares, que de fato são de excelência, e articulando um processo de longo prazo para militarizar o ensino público.

A experiência-piloto pode ser no Distrito Federal, onde o governador Ibaneis Rocha criou por portaria a “gestão compartilhada” das escolas, entre as secretarias da Educação e da Segurança, e assim empurrar policiais militares e bombeiros da reserva para 40 escolas até o fim do ano. Isso implica “mais disciplina”, com Hino Nacional todo dia, alunos de fardas e marchando.

Assustados com a violência que grassa no DF – quanto mais violenta a região, mais violenta a escola –, pais e mães até se animam com a ideia, mas os pedagogos, assustados, argumentam que “militarização” das escolas é muito diferente de policiamento ostensivo para garantir a segurança de alunos e professores.

Aliás, fica uma dúvida: se o presidente da República pode usar chinelo e camiseta de time de futebol em reunião com ministros, com foto distribuída publicamente, por que alunos têm de vestir fardas, as meninas precisam andar de coque e os meninos de cabelo curto?

Os generais que cercam (em vários sentidos) Bolsonaro no Planalto também têm posições muito claras sobre política externa e agem para o fim das maluquices e a volta do pragmatismo. Se combatem a “esquerdização” do Itamaraty após a era Lula, eles também não gostaram dos excessos do chanceler Ernesto Araújo para o outro lado e trataram de reequilibrar as coisas.

Enquanto recebiam representantes da China e do mundo árabe para amenizar o mal-estar causado pelo novo governo, também amansavam o próprio Araújo, que foi escolhido por Eduardo Bolsonaro, o 02 do presidente, e agora parou de escrever aquelas excentricidades. Ele parece bem mais razoável ao vivo do que por escrito.

Por fim, foram os generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno e Santos Cruz que se investiram de uma função política ao tentar – inutilmente, aliás – apagar o incêndio que está torrando o ministro Gustavo Bebianno, um dos dois únicos civis com algum poder no Planalto de Bolsonaro. O outro é Onyx Lorenzoni. Ele que se cuide, enquanto Paulo Guedes, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre se blindam da crise e tocam o que interessa: a reforma da Previdência e a recuperação da economia.

Mãos sujas

O Lula era um covarde e terceirizava o trabalho sujo. O Bolsonaro está fazendo isso com as próprias mãos. Quem tem a caneta não precisa de subterfúgios para demitir ninguém, não precisa humilhar um ministro publicamente 
Romeu Tuma Jr, ex-secretário nacional de Justiça  no governo Lula

OIT alerta para precarização do emprego em nível mundial

O emprego se recupera no mundo. Os 172 milhões de desempregados que existiam em 2018 equivalem a 5% da população ativa, a taxa mais baixa em uma década, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mas, apesar dessa melhora, a deterioração na qualidade de trabalho preocupa.

“A prevalência de contratos temporários de curta duração pode exacerbar a sensação de insegurança dos trabalhadores, aumentando a volatilidade de seus rendimentos e frustrando suas carreiras profissionais. Os indícios sugerem que a taxa de pobreza cresce quanto menor for a duração dos contratos”, diz o relatório publicado na quarta-feira pela entidade.


“Depois de se estabilizar entre 2014 e 2016, a incidência do trabalho temporário volta a crescer de na Europa”, informa o relatório. “A percentagem de trabalhadores temporários sobre o total está aumentando especialmente na Espanha, onde em 2017 alcançou 26,8%, percentual mais alto desde 2008”. A Espanha fez uma reforma trabalhista em 2012 que mudou as relações de trabalho no país e serviu de inspiração para a reforma proposta pelo Governo Michel Temer.

A agência da ONU que reúne Governos, empregadores e trabalhadores de 187 países aborda assim um fenômeno já conhecido: a recuperação do emprego na Espanha dos últimos anos ocorreu, como já havia sido visto antes durante a febre da construção civil, com prioridade para os contratos de pior qualidade.

Do total de contratos temporários de trabalho na Espanha em 2017, em torno de 60% tinham uma duração de até seis meses. Esse percentual está à frente, por exemplo, dos da Croácia, Itália, Bélgica e Finlândia, todos eles com mais de 50% de contratos muito curtos sobre o total dos temporários. No extremo oposto ficam Alemanha, Holanda, Dinamarca e Áustria, onde o peso dos contratos de até seis meses é inferior a 25% do total de temporários. Na Alemanha e Dinamarca, os empregos com mais de um ano de duração representam mais da metade dos temporários, enquanto na Espanha rondam os 10%.

A definição da OIT de emprego temporário corresponde a acordos de emprego contratual baseados em projeto ou tarefa de duração limitada. Inclui também o trabalho intermitente, que pode até ser informal, mas envolve um número fixo de horas, dias ou semanas.O relatório não apresentou dados sobre trabalhos temporários na América Latina.
Emprego em meio período

“Não é surpreendente que os países onde a duração média dos contratos é relativamente curta sejam mais propensos a registrar percentuais altos de emprego temporário involuntário”, aponta o relatório. Como exemplo negativo volta a aparecer a Espanha, onde 85% dos empregados temporários estão nessa situação por não terem encontrado um trabalho por definitivo. Países como a Bélgica, Grécia e Itália registraram uma percentagem também alta, acima de 75%. Pelo contrário, mais de 90% dos trabalhadores temporários austríacos o são por vontade própria, um índice que na Alemanha fica em 85%.

A OIT também considera que parte do emprego em tempo parcial se explica por decisões pessoais – seja porque o trabalhador deseja passar mais tempo em família, ou porque estuda, ou está num período de experiência numa empresa – ou então por circunstâncias trabalhistas de seu país, incapaz de oferecer ao trabalhador uma jornada completa.

A variável geográfica não foi a única analisada pela OIT. A disparidade de gênerofica clara ao quantificar os diferentes motivos apresentados por homens e mulheres para optar por um contrato em tempo parcial. No caso das mulheres, 34% têm contratos de poucas horas para poderem dedicar mais tempo a responsabilidades familiares, como o cuidado dos filhos, enquanto entre os homens esse percentual cai para 16%. “Uma vez mais, estes resultados salientam a importância de políticas públicas voltadas para atenuar a carga das responsabilidades familiares que frequentemente impedem as mulheres de participarem 100% do mercado de trabalho”, diz o relatório da OIT.

A agência da ONU volta sua atenção também para a evolução dos salários. E conclui que as remunerações em 52 países ricos estão desde 2000 sofrendo crescimentos reais muito reduzidos, sempre abaixo de 2%. Em 2016 cresceram 1,2%, e em 2017, 0,8%. Essa expansão anêmica pode ser atribuída à baixa inflação na França e na Alemanha e “à queda dos salários reais” na Espanha, Itália e Japão. “Apesar disso, dados publicados recentemente sugerem que o crescimento nominal dos salários pode estar ganhando força em alguns países”, acrescenta o texto. Como contraponto, a OIT cita três países da UE onde a queda do desemprego em 2018 foi especialmente importante: Grécia, com uma redução de 2.3 pontos percentuais, Portugal (2.0) e Espanha (1.7).

Os três filhotes

Se tivesse senso de institucionalidade ou mesmo um pouco mais de juízo, Jair Bolsonaro deserdaria seus três filhos envolvidos com a política. O governo ainda não completou dois meses, mas seus rebentos, cada um à sua maneira, já deram indícios de que vão criar problemas para o pai e o país.


O primogênito, o senador Flávio Bolsonaro, embora seja o mais moderado dos três, converteu-se ele próprio no centro da primeira crise enfrentada pela nova administração. Seu envolvimento com Queiroz e as milícias tende a tornar-se uma assombração permanente a pairar sobre a Presidência.

Carlos, o vereador, a quem o próprio pai apelidou de “pit bull”, tem o hábito de jogar gasolina nas questões em que se mete, como acabamos de ver na fritura de Gustavo Bebianno. Além disso, Carlos anda armado ao lado do presidente e, aparentemente, tem acesso a suas senhas nas redes sociais. É incrível que um governo tão densamente povoado por militares admita tal nível de riscos de segurança.

Há, por fim, o deputado federal Eduardo, aquele que gosta de despachar cabos e soldados para fechar o Supremo. A crer nas notícias de bastidores, é o responsável pela indicação de alguns dos personagens teletransportados diretamente da “twilight zone” para a Esplanada dos Ministérios. Na realidade paralela em que esses espécimes habitam, o mundo é dominado por comunistas com o propósito de criar um governo global e destruir a família.

Apesar das dores de cabeça que os três filhotes já causaram e ainda causarão, é improvável que Bolsonaro venha a afastá-los. O problema de fundo é o descompasso entre a nossa programação biológica original (que nos faz proteger filhos e parentes) e o ambiente moderno em que vivemos (que exige do presidente uma impessoalidade institucional). Basicamente, estamos diante de uma armadilha evolutiva, o que significa que a natureza tende a prevalecer sobre o bom senso.

A nova bandeira do Brasil?


Febejapá new age

O Febejapá (Festival de Barbaridades Judiciais que Assolam o País) entrou na fase new age e adquiriu dupla personalidade. A primeira é a face mais embrutecida, do “tiro, porrada e bomba” com um toque de "Bíblia". A segunda vem com polimento, dissimulação e eufemismos. De um lado, a magistocracia hardcore, com esteroides; de outro, a magistocracia softcore, com o mesmo DNA, mas menos atrevida e ostensiva. Ambas têm representantes prototípicos.

A ala carioca do Febejapá fornece as três encarnações mais acabadas da hardcore. A primeira é a desembargadora Marília Castro Neves, guerreira contra o politicamente correto. Sua obra em redes sociais já afirmou que Zumbi dos Palmares é um “mito inventado” que “estimula racismo”, debochou de professora portadora de síndrome de Down, declarou que Marielle “estava engajada com bandidos” e que Jean Wyllys merecia uma “execução profilática”. Indagada, disse que foi brincadeira e acusou o “mau humor da esquerda”.


Marcelo Bretas e Wilson Witzel (ex-juiz, ainda embebido no éthos magistocrático) completam o trio. A performance de Bretas está nas redes sociais, que considera um espaço privado onde exerce liberdade de expressão. Ali, ironiza quem critica seu auxílio-moradia, curte postagens de Jair Bolsonaro, festeja o novo governo — que entende ser marcado por ministros técnicos no lugar dos ideológicos —, divulga fotos de seu treino na academia militar com fuzil e na academia de ginástica com camiseta regata. Afirmou dias atrás que a ação policial goza de “presunção de legitimidade” até que se prove o contrário e que, “em situação de legítima defesa, o policial tem o DIREITO DE MATAR o agressor”. Foi assim, em caixa-alta, sem nenhuma qualificação sobre o tipo de agressão ou a proporcionalidade da reação, como quer a doutrina penal moderna.

O “direito de matar”, em caixa-alta, soa como música para Witzel. Amigo de Bretas, foram juntos num jato da FAB à posse de Bolsonaro. Pouco importa que, durante a campanha, decisões de Bretas, corretas ou não, tenham afetado adversários do amigo. Witzel é figura folclórica na magistocracia e não se constrangeu pela divulgação do vídeo em que explicava a juízes sua “engenharia” para burlar o sistema e ganhar a “gratificação de acúmulo”. Seu protocolo policial é “mirar na cabecinha e fogo, para não ter erro”. Sua polícia, nos últimos dez dias, matou 42 pessoas. Sua “política do abate” esteve a todo vapor na favela de Manguinhos, em que 6 pessoas foram mortas. Acumulam-se evidências de que disparos foram feitos de uma torre da polícia, por snipers.

O Febejapá new age não é só truculência, mas também desfaçatez. Sergio Moro deu guinada na carreira e entrou para a política. Menos por apego à legalidade, mais por sua rara disposição de colocar, a jato, alguns poderosos na cadeia, foi aclamado síndico do panteão dos homens de bem e passou a gozar da presunção de infalibilidade. Emprestou, de graça, seu ao bolsonarismo. Associou sua trajetória a quem pratica caixa dois, festeja milícias e pede foro privilegiado no STF. Quando seus próprios sócios boicotam o projeto de combate à corrupção e restringem a transparência, engole em seco. Teve de substituir sua doutrina “caixa dois é crime contra a democracia” pela alternativa “ele já admitiu e pediu desculpas”. Seu pacote anticrime, já vimos, serve à filosofia hardcore, mas ele o explica com toda a serenidade e sem apego a evidências.

Por fim, o ministro Toffoli propõe um “pacto republicano” entre os Três Poderes na elaboração de “macrorreformas estruturantes”. Ali estão a da Previdência, a tributária, a da repactuação federativa, entre outras. Não especifica, contudo, o que mais lhe caberia como chefe do Judiciário — os sacrifícios que a magistocracia, estamento mais privilegiado do Estado brasileiro, que habita o 0,1% mais alto da pirâmide social, faria em nome dessas reformas. Na verdade, não especifica nada de concreto, apenas a promessa de boa vontade.

Há pouca coisa menos republicana que a proposta. A filosofia do republicanismo defende o oposto: pede distribuição do poder e controle recíproco de uma agência governamental sobre a outra. Exige participação social e contestação pública, a antítese de uma negociação palaciana. “A fase em que os Poderes estavam em conflito passou”, declarou. Não sabemos se combinou com seus colegas esse esforço colaboracionista. Eufemismos à parte, o “pacto republicano” é uma pérola antirrepublicana.

Em comum, o Febejapá new age tem alergia à divergência e ao contra-argumento. Seu pendor anti-intelectual despreza o argumento dos “especialistas”. Desqualificam o crítico em vez de responder à crítica. Temem a esfera pública.
Conrado Hübner Mendes

A outra face (verdadeira)

Todas as questões são políticas e a própria política é uma massa de mentiras, evasivas, loucura, ódio e esquizofrenia
George Orwell, "Como morrem os pobres"

É possível prevenir novas tragédias?

Depois das chuvas e da ciclovia, o helicóptero com Ricardo Boechat. Depois de Mariana, Brumadinho. Depois da Boate Kiss, o Ninho do Urubu. Por que tragédias se repetem como roteiro de um filme macabro? Por que não conseguimos preveni-las? Descaso? Negligência? Inépcia? Impunidade? Respostas óbvias se sucedem a cada nova desgraça. Há o desleixo criminoso, o uso de técnicas arriscadas para erguer barragens, de materiais inflamáveis em abrigos ou construções, o desprezo por alarmes, regras de voo ou normas de segurança. Há a indiferença (ou corrupção) de autoridades responsáveis pela fiscalização. Mas há mais que isso: a dificuldade humana intrínseca em avaliar e lidar com riscos. Não se trata de desvio de caráter do brasileiro.


Mesmo em países onde as normas são respeitadas, mesmo quando os riscos são conhecidos, mesmo quando as sirenes tocam na hora certa, tragédias acontecem. Em 2011, na região central dos Estados Unidos, uma onda de 360 tornados deixou um saldo de 324 mortos, milhares de feridos e um rastro de devastação. Só em Joplin, no Missouri, morreram 158 pessoas no dia 22 de maio, o recorde de mortos em 64 anos de tornados. Detalhe: um alerta foi lançado com quatro horas de antecedência, sirenes soaram quase 20 minutos antes da chegada do flagelo. “Não é que as pessoas que haviam ignorado os alertas não tivessem ficado sabendo deles”, escreve o jornalista Michael Lewis no recém-lançado "O quinto risco". Todo mundo sabia. O que havia era uma sensação falsa de segurança, a confiança cega (“Se nunca aconteceu, não aconteceria”), a crença irracional numa trajetória imaginária do vento (não atravessaria um certo rio, se dividiria ao chegar perto da cidade, não chegaria perto de um cemitério indígena). “Não conseguiam imaginar que todos aqueles tornados que haviam atingido outras pessoas poderiam ter se abatido sobre elas. As sirenes tinham virado
"fake news".

Narrador exímio, autor dos best-sellers Moneyball, Flash boys e O projeto desfazer, Lewis disseca no novo livro os principais riscos que atingem seu país e as “tentativas do governo para salvar as pessoas de coisas que podem matá-las”. Não só tornados ou furacões, mas também eventos como gripe aviária, epidemia de opiáceos, mortes no trânsito, acidentes nucleares, terrorismo ou mesmo a fome. Seu relato atravessa os organismos encarregados de lidar com tais questões no Estado americano: os departamentos de Energia, Agricultura e Comércio. Demonstra como, desde a transição, o governo Donald Trump deu de ombros aos riscos, ao conhecimento e aos recursos necessários para preveni-los.

Um funcionário do Departamento de Energia elenca os cinco principais em sua área: acidente com armas nucleares, Coreia do Norte, Irã, rede elétrica e um quinto risco que ele não consegue definir direito. Acaba chamando genericamente de “gestão”. “É o risco que uma sociedade corre quando adota o hábito de sanar riscos de longo prazo com soluções de curto prazo”, diz Lewis. “É a ameaça existencial que jamais imaginamos de verdade como um risco.” A maior dificuldade é a mesma das vítimas do tornado em Joplin: acreditar que o inimaginável pode se tornar real. Tentar evitar o pior exige, portanto, respostas menos óbvias. Longe do clima de indignação raivosa. Longe do sentimento inquisitorial que aponta culpados e busca bodes expiatórios. O melhor que podemos fazer depende da combinação de dois ingredientes que andam em baixa. Primeiro, governo. Só o Estado, representado por funcionários públicos de carreira, independentes de interesses políticos ou financeiros, dispõe de autoridade para recolher dados na escala necessária para avaliar os riscos e impor medidas preventivas a empresas ou cidadãos. Segundo, ciência. É ela que permite interrogar tais dados, estudar as incertezas, medir os riscos e, no limite do conhecimento humano, fazer o possível para mitigá-los.
Helio Gurovitz

Suécia: deputados não têm assessores, dormem em quitinete e pagam pelo cafezinho

Para os deputados suecos do novo Parlamento, eleito em setembro passado, a realidade é a austeridade de sempre: gabinetes de sete metros quadrados, apartamentos funcionais pequenos e rígidos limites para o uso do dinheiro dos contribuintes no exercício da atividade parlamentar.

Não são oferecidos a deputados suecos benefícios extras como aqueles concedidos a parlamentares no Brasil, a exemplo de verbas para fretamento de aeronaves; aluguel e demais despesas de escritório político na base eleitoral; alimentação do parlamentar; contratação de secretária e entre 25 e 50 assessores particulares; ressarcimento de gastos com médicos; auxílio-creche pago por cada filho até os seis anos de idade; auxílio-mudança para se transferir para a capital; fundos para contratação de consultorias; assinatura de publicações e serviços de TV; além de verba para divulgação de mandato.

E imunidade parlamentar é um conceito que não existe na Suécia.

"Somos cidadãos comuns", diz à BBC News Brasil o deputado Per-Arne Håkansson, do partido Social-Democrata, em seu gabinete no Parlamento sueco.

"Não há sentido em conceder privilégios especiais a parlamentares, uma vez que nossa tarefa é representar os cidadãos e conhecer a realidade em que as pessoas vivem. Também pode-se dizer que é um privilégio em si representar os cidadãos, uma vez que temos a oportunidade de influenciar os rumos do país", acrescenta Håkansson.

 Per-Arne Håkansson, no gabinete, sem assessores
A cada início de mandato, o que os 349 deputados suecos recebem – assim como o Presidente do Parlamento – é um cartão anual para usar o transporte público. E também um robusto código de ética, que vem acompanhado ainda por um conjunto de informações sobre o restrito uso das verbas públicas e normas de conduta para a atividade parlamentar.

Carros oficiais são poucos, e para uso limitado. O Parlamento possui apenas três veículos, modelo Volvo S80. Esta frota de três está à disposição somente do Presidente do Parlamento e seus três vice-presidentes, para eventos oficiais.

"Não é um serviço de táxi", diz René Poedtke, do setor administrativo do Parlamento. "Os carros não estão disponíveis para levá-los para casa ou para o trabalho."

Na Suécia, o único político que tem direito a carro em caráter permanente é o primeiro-ministro. O carro pertence à frota da polícia secreta sueca, a Säpo (Säkerhetspolisen). Ministros podem requisitar veículos "quando têm fortes razões para precisar de um", segundo diz um assessor do governo: "Por exemplo, quando vão fazer um discurso em um subúrbio distante".Image captionDeputados em sessão no Parlamento sueco

O salário bruto de um deputado do Parlamento sueco é de 66,900 coroas suecas por mês (cerca de R$ 27 mil). Descontados os altos impostos, um parlamentar recebe vencimentos líquidos de aproximadamente de 40,000 coroas suecas (pouco mais de R$ 16 mil) – o que equivale a menos que o dobro do que ganha um professor do ensino fundamental na Suécia.

Se um deputado sueco tem sua base eleitoral fora da capital, pode solicitar o chamado traktament, uma ajuda de custo para os dias da semana em que trabalha em Estocolmo. O valor desta diária, paga estritamente aos parlamentares que não têm residência permanente na capital, é de 110 coroas suecas (aproximadamente R$ 45).

Uma rápida checagem nas tabelas de preço de Estocolmo dá uma noção do que se compra na capital com 110 coroas suecas: um café com três ou quatro bullar (os tradicionais pães doces suecos que acompanham o café), ou uma pizza com refrigerante, ou um tradicional prato de köttbullar, as almôndegas suecas servidas com geléia de arandos vermelhos e purê de batata. Nos pequenos restaurantes populares que servem almoço na cidade, um prato executivo sai em média por 100 coroas suecas.

Até 1957, os deputados do Parlamento sueco não recebiam sequer salário: ganhavam apenas contribuições feitas pelos membros dos partidos.

A decisão de introduzir o pagamento de salário aos parlamentares foi tomada, segundo consta nos arquivos do Parlamento, após chegar-se à conclusão de que nenhum cidadão deveria ser "impedido de tornar-se um deputado por razões econômicas". Mas o valor do salário não deveria "ser alto a ponto de se tornar economicamente atraente".

E nenhum deputado sueco tem o privilégio de aumentar o próprio salário: na Suécia, os salários dos parlamentares são determinados por um comitê independente, chamado Riksdagens Arvodesnämd.

Três pessoas compõem este comitê: um presidente, que via de regra é um juiz aposentado, e dois representantes, que são em geral ex-servidores públicos ou jornalistas. O comitê é nomeado pela Mesa Diretora do Parlamento.

"Não há nenhum parlamentar entre nós. Somos um comitê com independência garantida pela Constituição. A Mesa Diretora do Parlamento não pode nos dar nenhuma diretriz", disse o presidente do comitê, Johan Hirschfeldt.Image captionDeputados suecos não legislam sobre seus próprios salários

Ex-presidente da Corte de Apelação de Estocolmo, Hirschfeldt conta que o comitê se reúne uma vez por ano, após o recesso parlamentar do verão europeu. "Isso não significa que os deputados ganhem aumento de salário todos os anos", ele observou.

Para avaliar se os deputados terão ou não aumento de salário, Hirschfeldt diz que o comitê faz uma análise das circunstâncias econômicas da sociedade como um todo, incluindo índices de inflação e de variação salarial tanto no setor público como no privado. "Quando nos reunirmos da próxima vez, vamos avaliar as circunstâncias gerais, e talvez decidir dar um aumento aos parlamentares entre 1% ou 1,5%. Ou talvez não daremos aumento nenhum".

A decisão do comitê é soberana: não pode ser contestada, e não necessita ser submetida a votação no Parlamento. "Os parlamentares não têm nenhum poder de decisão no processo. E não sei se ficam satisfeitos ou não com o salário, porque nenhum parlamentar nunca telefonou para pedir mais, nem reclamar", diz o presidente do comitê.

Aumentos de salário dos ministros e do primeiro-ministro são também decididos por um comitê independente, o Statsrådsarvodesnämden.
Acesso limitado a apartamentos e quitinetes funcionais

O apartamento funcional do deputado Per-Arne Håkansson tem 46 metros quadrados. Apenas políticos com base eleitoral fora da capital, e que não possuem imóvel próprio em Estocolmo, têm direito a viver em apartamentos - ou até quitinetes - funcionais. E o Presidente do Parlamento sueco não tem direito a residência oficial.

Os apartamentos funcionais têm em média 45,6 metros quadrados. Já as quitinetes funcionais têm apenas 16 metros quadrados. Do total de 197 imóveis administrados pelo Parlamento sueco, apenas oito dispõem de espaço entre 70 e 90 metros quadrados.

Talvez com certo exagero, os modestos ambientes das quitinetes e dos menores apartamentos funcionais do Parlamento fazem lembrar as celas da moderníssima penitenciária de Sala, nos arredores de Estocolmo, onde os detentos - assim como na maioria das prisões suecas - também têm banheiro privativo.

Além do sofá-cama, uma mesa, um pequeno armário, uma minicopa com um fogão de uma boca, um frigobar e um banheiro são suficientes para preencher o espaço de pouco mais de 16 metros quadrados de um dos apartamentos funcionais, situado na rua Monkbron.Image captionVocê diria que esse é o gabinente de um deputado?

Nos imóveis funcionais não há máquina de lavar roupa, nem lavadora de pratos, e nem mesmo cama de casal - apenas de solteiro. Em grande parte dos apartamentos funcionais, não há sequer quarto: um único cômodo, mobiliado com um sofá-cama, funciona como sala e quarto de dormir.

"Podemos colocar camas extras com rodinhas em caso de necessidade, como a visita de um parente", diz uma funcionária do Parlamento que acompanhou a reportagem na visita a um dos imóveis.

Em todos os prédios de apartamentos funcionais, as lavanderias são comunitárias, e os deputados precisam marcar hora em um fichário para lavar a roupa suja. Nestas lavanderias comunitárias, geralmente situadas no porão dos prédios, também há tábuas de passar roupa à disposição dos deputados.

Também são os próprios parlamentares que cozinham e cuidam da limpeza da casa. Faxina gratuita nos apartamentos funcionais, segundo o setor de administração do Parlamento sueco, só uma vez por ano, durante o recesso parlamentar de verão.

Mais: o erário público paga apartamentos funcionais exclusivamente para parlamentares. A cônjuges de deputados, familiares e afins, é negado o benefício de morar ou até mesmo pernoitar em propriedade do Estado sem pagar. Quando o familiar de um parlamentar passa uma temporada no imóvel funcional, o deputado tem prazo de um mês para ressarcir o erário pelos dias de pernoite.

E se a mulher de um deputado do interior decide viver no apartamento funcional da capital com o marido, cabe a ela arcar com a metade do valor do aluguel.

"É claro que não pagamos para ninguém morar de graça, a não ser os parlamentares com base eleitoral fora da capital", diz a chefe do setor de Serviços Parlamentares, Anna Aspegren.

Na creche do Parlamento, os deputados podem deixar ocasionalmente os filhos com idades entre um ano e treze anos, durante sessões deliberativas.

"Mas os deputados devem pagar pelo almoço das crianças", explica Monika Karlsson, funcionária da creche. Em dias de sessão noturna, a creche fica aberta até à meia-noite - ou mais.Image captionParlamentares dividem lavanderia e são responsáveis pela limpeza de seus apartamentos funcionais

Os parlamentares têm duas opções de moradia na capital sueca: a primeira é viver em um dos apartamentos ou quitinetes funcionais. A segunda é alugar um apartamento por conta própria, e cobrar do Parlamento o ressarcimento correspondente ao valor do aluguel. Neste caso, o valor máximo que o Parlamento reembolsa aos deputados é de 8 mil coroas suecas mensais (o equivalente a cerca de R$ 3.500), quantia relativamente baixa para a escassa oferta imobiliária do centro da capital.

"Mas os parlamentares que vivem com o cônjuge em um apartamento alugado só podem pedir reembolso da metade do valor do aluguel, e têm que pagar do próprio bolso pela manutenção do imóvel", explica Anna Aspegren.

É o que faz a líder do Partido de Centro (Centerpartiet), Annie Lööf, que divide o apartamento funcional com o marido. "O marido de Annie tem que pagar sua parte do aluguel, como qualquer outro cidadão", diz Aspegren.

Até os anos 90, apartamentos funcionais sequer existiam na Suécia: os deputados dormiam em sofás-cama, em seus próprios gabinetes. Pratos e roupas eram lavados à mão na pia do gabinete, e não havia cama.