O que extraio de verdadeiro dessa gritaria nas ruas é uma frase que sobrevive na velhice: “O povo, unido, jamais será vencido”. Um país pode ser invadido por forças militares superiores, o governo pode ser desfeito, mas, no médio e longo prazos, essa verdade essencial acabará se impondo.
Escrevo num momento de transição. Sei que o mundo mudou e seguirá mudando. Mas a simples eclosão da guerra não consegue ofuscar, para mim, o novo relatório dos cientistas da ONU mostrando como avançam o aquecimento global e o perigo de tragédias climáticas.
Do nível nacional ao internacional, o instinto de morte parece estar numa ofensiva sem precedentes. Não pretendo abordá-lo com mais uma análise da correlação de forças, nem das negativas consequências econômicas. Essa tarefa, já a cumpri durante a semana, analisando o papel estratégico dos fertilizantes no agronegócio e, consequentemente, na economia e na segurança alimentar do Brasil.
Ao encerrar meu trabalho noturno, tenho visto uma série chamada “Mind hunters”. É a história de agentes do FBI que, no fim do século passado, percebem que os crimes não se explicam mais pelos velhos motivos: ciúmes, dívidas a cobrar. Eles se interessam por criminosos em série, cujas razões só podem ser entendidas com um mergulho nas suas mentes doentias.
Lembrei-me disso ao ler um artigo em que o autor cita o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger, para quem, no período pós-Guerra Fria, a violência já não se explicaria mais por razões ideológicas, ela se autonomizou das clássicas justificativas.
Gosto da capacidade de previsão de Enzensberger porque, há 30 anos, li um livro dele, “Política e delito”, em que, em vários ensaios, ele mostrava como boatos foram capazes de derrubar governos. Era uma antecipação do poder corrosivo das modernas fake news.
Pode parecer audacioso dizer que a violência se libertou da justificação ideológica. Putin afirma que atacou a Ucrânia para livrá-la do nazismo. Mas como aceitar que o país seja nazista se é presidido por um judeu?
O próprio Putin parece não acreditar no seu argumento. Tanto que acrescenta uma nova acusação: nazistas e consumidores de droga.
Existe algo de patológico nos argumentos de Putin e, infelizmente, não é tão raro assim. Logo após a revolução bolchevique, Lênin defendeu que a Ucrânia fosse um país, falasse sua própria língua e ensinasse sua História nas escolas.
Para ele, que já estava um pouco doente, a Ucrânia não era uma mentira. O problema é que foi sucedido por Stálin, precisamente o comissário das nacionalidades, que queria centralizar tudo na Rússia, a despeito de sua origem georgiana.
Essa recusa à diversidade não existe apenas no stalinismo que sobrevive na cabeça de Putin. Ela é também uma presença nos argumentos da extrema direita. Guardadas as proporções, quantos não afirmam que nossas populações indígenas deveriam abrir mão de suas terras, costumes e cultura, para desaparecer no todo nacional?
Steve Bannon, um dos teóricos que influenciam a família Bolsonaro, chegou a dizer que a Rússia era digna de apoio porque o Exército americano tolera transgêneros.
Circula nas redes, a partir de Bolsonaro, um manifesto contra o Ocidente, para ele dominado pelo comunismo. Em quem se apoiar contra o comunismo europeu? Na Rússia, na China e nos países árabes.
Assim como na década de 1960 o crime passou a ser visto de uma outra maneira, talvez agora a política também só será apreendida a partir da patologia. Não há dúvida de que intelectuais alemães de Frankfurt, psicólogos como Erich Fromm, fizeram um trabalho profundo no Pós-Guerra, a partir do estudo do nazismo.
Mas tudo isso poderia ser enriquecido e atualizado num planeta que se esforça para destruir a vida humana, seja pela poluição, seja pela guerra, seja por políticas locais de armamentos e gabinetes de ódio.
Com todo o respeito pela análise política pura, talvez fosse interessante considerar a hipótese de que muitos seres humanos no topo do poder simplesmente enlouqueceram.
segunda-feira, 7 de março de 2022
Guerra semeia morte, destruição e miséria. Alguém discorda?
Envergonhada, a esquerda que admira a Rússia deixa a guerra de escolha de Putin de lado e culpa por ela o imperialismo americano. Esquece, porém, que a Rússia sempre foi imperialista.
Mais honestos são os extremistas de direita que dão razão à Rússia porque Bolsonaro e Putin compartilham as mesmas ideias; são dois fanáticos nacionalistas que ambicionam o poder solitário.
Não é sobre o PT, que até aqui não condenou a invasão da Ucrânia por Putin, nem antes quando ele invadiu a Geórgia e a Crimeia. Guerras só interessam aos radicais de qualquer cor.
A agência de refugiados das Nações Unidas atualizou a contagem de civis que fugiram da Ucrânia desde o início da guerra. Agora são impressionantes 1,5 milhão de pessoas, de uma população de 43 milhões.
Esta é a crise de refugiados que mais cresce na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Como quase todos eles são louros de olhos azuis, a Europa dará um jeito de acolhê-los. Já os ciganos…
Pergunte aos russos se são a favor da invasão? Leve em conta que na Rússia não há liberdade de imprensa; a mídia chama a invasão de “operação especial em defesa da Rússia”.
Quem insistir em chamar a invasão pelo próprio nome, ou de guerra contra a Ucrânia, ou referir-se às mortes como “massacre”, está sujeito a 15 anos de cadeia por crime de lesa pátria.
Mais honestos são os extremistas de direita que dão razão à Rússia porque Bolsonaro e Putin compartilham as mesmas ideias; são dois fanáticos nacionalistas que ambicionam o poder solitário.
Não é sobre o PT, que até aqui não condenou a invasão da Ucrânia por Putin, nem antes quando ele invadiu a Geórgia e a Crimeia. Guerras só interessam aos radicais de qualquer cor.
A agência de refugiados das Nações Unidas atualizou a contagem de civis que fugiram da Ucrânia desde o início da guerra. Agora são impressionantes 1,5 milhão de pessoas, de uma população de 43 milhões.
Esta é a crise de refugiados que mais cresce na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Como quase todos eles são louros de olhos azuis, a Europa dará um jeito de acolhê-los. Já os ciganos…
Pergunte aos russos se são a favor da invasão? Leve em conta que na Rússia não há liberdade de imprensa; a mídia chama a invasão de “operação especial em defesa da Rússia”.
Quem insistir em chamar a invasão pelo próprio nome, ou de guerra contra a Ucrânia, ou referir-se às mortes como “massacre”, está sujeito a 15 anos de cadeia por crime de lesa pátria.
Mãe e dois filhos mortos na Ucrânia quando fugiam do bombardeio russo |
Somente ontem, a polícia de Putin prendeu cerca de 4 mil pessoas em Moscou e em outras cidades por protestarem contra a guerra. (Êpa, perdão! Contra a “operação especial em defesa da Rússia”).
A primeira vítima da guerra é a verdade, a segunda, a língua. A verdade requer poucas palavras; a mentira, muitas. “Danos colaterais”, por exemplo, significa a morte de civis.
Quando não é possível ocultar a morte de inocentes, como os quatro de uma mesma família assassinados por soldados russos perto de Kiev, joga-se a culpa em nacionalistas ucranianos.
Semear a dúvida é uma poderosa arma de guerra. Com as redes sociais, a verdade passou a ser uma questão de escolha. Fatos objetivos influenciam menos que apelos às crenças pessoais.
Donald Trump deu uma sugestão incomum para combater o avanço russo na Ucrânia: trocar bandeiras de aviões americanos, adesivar com a bandeira da China e atacar os russos.
Não foi piada (o cômico é o presidente da Ucrânia). Trump não estava de porre, falava em um evento do Partido Republicano. Metade dos americanos costuma acreditar no que ele diz.
Aqui, 30% dos eleitores brasileiros ainda acreditam no que diz Bolsonaro; ele, ontem, taxou de “asquerosas” as confissões sexistas do deputado Mamãe Falei sobre as mulheres ucranianas.
Alguém se recorda de Bolsonaro condenar declarações machistas? Logo ele que disse a uma deputada que ela não merecia ser estuprada porque é feia? Ano eleitoral é uma beleza…
Os mais instruídos devem recordar que o papa Pio XII, nos anos 1930, saudou Mussolini, o fascista governante da Itália, como “o homem da Providência”, porque ele era contra o comunismo.
Mussolini aliou-se a Hitler e foi à guerra para dominar a Europa. Capturado pela resistência italiana, acabou fuzilado; seu corpo foi exposto de cabeça para baixo em uma praça, em Milão.
Peço sua compreensão por ser contra guerras, qualquer uma. Que bem me lembre, a última que se justificou foi quando grande parte do mundo se uniu para derrotar o nazismo.
A Pio XII e outros papas tão autocratas quanto ele, prefiro Francisco, que, no domingo, ao pregar para uma multidão na Praça de São Pedro, no Vaticano, bateu de frente com Putin e disse:
“Na Ucrânia, correm rios de sangue e lágrimas. Esta não é apenas uma operação militar, mas uma guerra que semeia morte, destruição e miséria”.
A primeira vítima da guerra é a verdade, a segunda, a língua. A verdade requer poucas palavras; a mentira, muitas. “Danos colaterais”, por exemplo, significa a morte de civis.
Quando não é possível ocultar a morte de inocentes, como os quatro de uma mesma família assassinados por soldados russos perto de Kiev, joga-se a culpa em nacionalistas ucranianos.
Semear a dúvida é uma poderosa arma de guerra. Com as redes sociais, a verdade passou a ser uma questão de escolha. Fatos objetivos influenciam menos que apelos às crenças pessoais.
Donald Trump deu uma sugestão incomum para combater o avanço russo na Ucrânia: trocar bandeiras de aviões americanos, adesivar com a bandeira da China e atacar os russos.
Não foi piada (o cômico é o presidente da Ucrânia). Trump não estava de porre, falava em um evento do Partido Republicano. Metade dos americanos costuma acreditar no que ele diz.
Aqui, 30% dos eleitores brasileiros ainda acreditam no que diz Bolsonaro; ele, ontem, taxou de “asquerosas” as confissões sexistas do deputado Mamãe Falei sobre as mulheres ucranianas.
Alguém se recorda de Bolsonaro condenar declarações machistas? Logo ele que disse a uma deputada que ela não merecia ser estuprada porque é feia? Ano eleitoral é uma beleza…
Os mais instruídos devem recordar que o papa Pio XII, nos anos 1930, saudou Mussolini, o fascista governante da Itália, como “o homem da Providência”, porque ele era contra o comunismo.
Mussolini aliou-se a Hitler e foi à guerra para dominar a Europa. Capturado pela resistência italiana, acabou fuzilado; seu corpo foi exposto de cabeça para baixo em uma praça, em Milão.
Peço sua compreensão por ser contra guerras, qualquer uma. Que bem me lembre, a última que se justificou foi quando grande parte do mundo se uniu para derrotar o nazismo.
A Pio XII e outros papas tão autocratas quanto ele, prefiro Francisco, que, no domingo, ao pregar para uma multidão na Praça de São Pedro, no Vaticano, bateu de frente com Putin e disse:
“Na Ucrânia, correm rios de sangue e lágrimas. Esta não é apenas uma operação militar, mas uma guerra que semeia morte, destruição e miséria”.
As ideologias jogam bombas
Neste espaço, dia 24 janeiro de 2021, publiquei artigo intitulado O pesadelo. Tema: livro Guerra Pela Eternidade (Ed. Unicamp, 2020). Destaquei a análise do autor Benjamim Teitelbaum sobre o Tradicionalismo, fonte de inspiração ideológica dos populismos de extrema-direita como ameaça real às democracias liberais do ocidente.
Persistente, o autor ouviu três ideólogos do Tradicionalismo: o americano Steve Bannon, o brasileiro Olavo de Carvalho e o russo Aleksandr Dugin a partir da obra do patriarca René Guénon (1886-1951) e Julius Evola (1898-1974).
Descontadas divergências pontuais, todos exerceram real influência sobre governantes de três grandes países: EUA, Trump; Brasil, Bolsonaro; Rússia, Putin, cada qual com estilos e estratégias distintas.
Bannon ajudou a eleger Trump; indicou secretários de Estado em áreas estratégicas. (O conflito com a filha e o genro do Presidente causou uma demissão humilhante). Fortaleceu a direita americana com o legado do trumpismo; teve decisiva participação no resultado do Brexit: segue dando conselhos a peso de ouro.
O autor aproximou-se do ideólogo de Bolsonaro, Olavo de Carvalho a quem definia como um Tradicionalista heterodoxo. Língua solta e agressiva gerou frequentes atritos. Indicou Velez Rodriguez e Ernesto Araújo, genuíno tradicionalista, em áreas estratégicas para uma frustrada revolução cultural.
Dugin é o intelectual de maior densidade e ativista/guerreiro presente na brutalidade do conflito entre a Ossétia do Sul e a Geórgia. Rebelde e ousado, se movia no espaços de poder, lembrando Gregori Rasputin. Não tinha relacionamento oficial com o governo Putin.
Expressava o ódio às democracias ocidentais, em especial aos EUA, com a frase: “Tudo que é antiliberal é bom”. No seu livro, Fundamentos da geopolítica, encoraja os russos “a introduzir a desordem na atividade interna americana”. O secularismo corrompido era o grande adversário espiritual da guerra pela eternidade.
O objetivo estratégico Tradicionalista é a destruição dos valores iluministas: estado-nação, secularismo, direitos humanos, ciência, feminismo, instituições, globalismo. A proposta se alicerça no tempo cíclico e na hierarquia: a Idade do ouro (sacerdotes), prata (guerreiros), bronze (mercadores), sombria (escravos). A motivação central: a espiritualidade. Eles veem caos na estrutura, ordem nas ruínas e o passado no futuro.
A regeneração do tempo como um fim em si mesma é violenta. Múltiplas causas estão por trás dos bombardeios. A ideologia é o gatilho. Em 2014, Dugin convocou, em entrevista, os ouvintes a “matar, matar e matar” os leais a Kiev. Sonha com a unipolaridade eurasiana.
O cleptocrata Putin, hoje, obedece a voz cruel que ordena os crimes de guerra.
Persistente, o autor ouviu três ideólogos do Tradicionalismo: o americano Steve Bannon, o brasileiro Olavo de Carvalho e o russo Aleksandr Dugin a partir da obra do patriarca René Guénon (1886-1951) e Julius Evola (1898-1974).
Descontadas divergências pontuais, todos exerceram real influência sobre governantes de três grandes países: EUA, Trump; Brasil, Bolsonaro; Rússia, Putin, cada qual com estilos e estratégias distintas.
Bannon ajudou a eleger Trump; indicou secretários de Estado em áreas estratégicas. (O conflito com a filha e o genro do Presidente causou uma demissão humilhante). Fortaleceu a direita americana com o legado do trumpismo; teve decisiva participação no resultado do Brexit: segue dando conselhos a peso de ouro.
O autor aproximou-se do ideólogo de Bolsonaro, Olavo de Carvalho a quem definia como um Tradicionalista heterodoxo. Língua solta e agressiva gerou frequentes atritos. Indicou Velez Rodriguez e Ernesto Araújo, genuíno tradicionalista, em áreas estratégicas para uma frustrada revolução cultural.
Dugin é o intelectual de maior densidade e ativista/guerreiro presente na brutalidade do conflito entre a Ossétia do Sul e a Geórgia. Rebelde e ousado, se movia no espaços de poder, lembrando Gregori Rasputin. Não tinha relacionamento oficial com o governo Putin.
Expressava o ódio às democracias ocidentais, em especial aos EUA, com a frase: “Tudo que é antiliberal é bom”. No seu livro, Fundamentos da geopolítica, encoraja os russos “a introduzir a desordem na atividade interna americana”. O secularismo corrompido era o grande adversário espiritual da guerra pela eternidade.
O objetivo estratégico Tradicionalista é a destruição dos valores iluministas: estado-nação, secularismo, direitos humanos, ciência, feminismo, instituições, globalismo. A proposta se alicerça no tempo cíclico e na hierarquia: a Idade do ouro (sacerdotes), prata (guerreiros), bronze (mercadores), sombria (escravos). A motivação central: a espiritualidade. Eles veem caos na estrutura, ordem nas ruínas e o passado no futuro.
A regeneração do tempo como um fim em si mesma é violenta. Múltiplas causas estão por trás dos bombardeios. A ideologia é o gatilho. Em 2014, Dugin convocou, em entrevista, os ouvintes a “matar, matar e matar” os leais a Kiev. Sonha com a unipolaridade eurasiana.
O cleptocrata Putin, hoje, obedece a voz cruel que ordena os crimes de guerra.
Desabituamos do trabalho de verificar
Todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou—apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—"Este é uma besta! Aquele é um maroto!" Para proclamar—"É um génio!" ou "É um santo!" oferecemos uma resistência mais considerada.
Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquele pequenino lado do fato, do homem, da obra, que perpassou num relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um carácter: por um carácter avaliamos um povo.
Eça de Queirós, "A Correspondência de Fradique Mendes"'
Eça de Queirós, "A Correspondência de Fradique Mendes"'
Um novo modo de ver as coisas
A invenção da imprensa, no século XV, mudou o mundo. Sobretudo porque o conhecimento passou a ficar ao alcance de todos, independente do nível cultural, social ou financeiro de cada um. A imprensa acabou sendo crucial para a multiplicação de tendências surgidas com o Renascimento e o fim político do domínio da Igreja sobre a humanidade civil. Curiosamente, o Papa Pio II, ao ser posto diante da invenção, ficou encantado com ela e a saudou como instrumento futuro de registro e cobrança das benesses da Igreja a seus fiéis.
Esse pequeno conto acima, sobre a imprensa e o que ela provocou de mudança no mundo do conhecimento, serve também para ilustrar o que tem se passado nas relações humanas desde o nascimento da cultura digital. Nunca mais fomos os mesmos. E, agora, quando uma guerra pouco convencional explode na Europa, podemos avaliar o que se passa de um modo inédito entre os envolvidos.
A Rússia pode destruir fisicamente a Ucrânia, acabar com todos os móveis e imóveis militares ou não do inimigo, que ainda restará aos defensores do aparente derrotado o direito de se proclamar vencedor de uma outra ideia de ser na História, de estar no mundo em defesa de outro modo de vida, revelado por uma permanente e extensa difusão audiovisual que seus principais representantes aprenderam a produzir durante a própria guerra. E isso, além do valor do pensamento, graças ao que esses ucranianos aprenderam a fazer através dos meios de difusão audiovisual.
Mas quem ficou ligado para sempre à invenção da imprensa, além de Johannes Gutemberg, seu criador técnico, foi Martinho Lutero que produziu o primeiro livro impresso, a Bíblia traduzida do latim chique para um alemão popular. Essa Bíblia de Lutero, com 641 páginas, seria inspiradora e guia da Reforma Protestante, um dos acontecimentos mais importantes do Renascimento que, por enquanto, talvez seja o momento mais radical na transformação da humanidade no que ela é hoje.
Esse pequeno conto acima, sobre a imprensa e o que ela provocou de mudança no mundo do conhecimento, serve também para ilustrar o que tem se passado nas relações humanas desde o nascimento da cultura digital. Nunca mais fomos os mesmos. E, agora, quando uma guerra pouco convencional explode na Europa, podemos avaliar o que se passa de um modo inédito entre os envolvidos.
Não se trata mais de só saber quem está ganhando a guerra e quem a vencerá, no final das contas. Não se trata mais de avaliar o número de batalhas vitoriosas, ou de simplesmente saber como julgá-las vencidas ou perdidas, para estabelecer um placar que nos permita reconhecer quem tem mais chances de ganhá-la no final do jogo no tempo convencional. É claro que o embate entre Rússia e Ucrânia pode ser avaliado ainda hoje e agora mesmo, mas na verdade só ousamos fazê-lo relativamente. As regras da guerra talvez sejam mais ou menos as mesmas. Mas aferir o resultado delas já é outra ciência.
Assim como a invenção da imprensa foi parte de uma mudança radical do espírito humano, capaz de orientar seu século e o que veio depois dele em uma inesperada direção, vivemos hoje um momento semelhante de compreensão da realidade. O que acontece no campo de batalha entre Ucrânia e Rússia não pode ser julgado apenas pelo número de perdas de lado a lado. Não é mais o número de baixas que determina a vitória final, não são mais as baixas que servirão como critério de julgamento do resultado da partida.
A Rússia pode destruir fisicamente a Ucrânia, acabar com todos os móveis e imóveis militares ou não do inimigo, que ainda restará aos defensores do aparente derrotado o direito de se proclamar vencedor de uma outra ideia de ser na História, de estar no mundo em defesa de outro modo de vida, revelado por uma permanente e extensa difusão audiovisual que seus principais representantes aprenderam a produzir durante a própria guerra. E isso, além do valor do pensamento, graças ao que esses ucranianos aprenderam a fazer através dos meios de difusão audiovisual.
Parece que o “livro” mais antigo da humanidade é o “I Ching”, o Livro das Mutações, que com cerca de 3 mil anos de existência, se baseia na mudança contínua das forças cósmicas do yin e do yang, a sombra e a luz. Como não havia ainda a imprensa, o “I Ching” não teve edições multiplicadas, mas seu sentido e valor nunca foi totalmente dispensado. Até o que a imprensa acabou por nos proporcionar, foi esse o modo de pensar o mundo de todas as culturas intermediárias.
É mais ou menos o que pode acontecer com certas visões de mundo divulgadas pelo mundo da difusão audiovisual e da cultura digital. O registro visual da internet não vai desaparecer nunca mais. Ou, se preferirmos, o filme da internet.
Ocidente impotente perante campanha assassina de Putin
Se fosse possível transformar manifestações de solidariedade em tanques blindados, lança-mísseis ou aviões de combate, talvez a situação da Ucrânia fosse menos desesperadora. Como está, vemos um excesso de grandes palavras e uma carência de ajuda militar efetiva. E nossos políticos nos preparam para aceitar que as atuais imagens de horror do país invadido são apenas o começo.
Após seu telefonema mais recente com Vladimir Putin, a formulação do presidente francês, Emnanuel Macron, foi quase literalmente a mesma que a do secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, na sexta-feira (04/03): "Vai ficar ainda pior."
Os militares partem do princípio que em breve o exército russo intensificará os bombardeios e os disparos contra a população civil. Pessimistas temem que Putin vá reduzir Kiev a destroços e cinzas, seguindo o modelo da destruição total de Grozny, em 1999, quando, sob comando do senhor de guerra, as forças armadas russas transformaram da capital tchetchena num deserto de ruínas.
Com esse pesadelo perante os olhos, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, tem apelado repetidamente por uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia. E a Otan repetidamente tem que responder: "Não podemos!" Isso significaria a confrontação militar direta com a Rússia, e eclodiria a Terceira Guerra Mundial.
Putin já nos lembrou de suas armas nucleares e insinuou que talvez chegue às últimas consequências para tornar realidade seu desvario de um reino pan-russo, com a anexação da Ucrânia. No entanto, a aparente irracionalidade do chefe do Kremlin, sua loucura real ou fingida, não passa de mais um recurso para nos deixar inseguros.
Alguns observadores acham até que a aliança ocidental deveria se comportar com cautela ainda maior, a fim de evitar o apocalipse nuclear. Putin poderia interpretar até mesmo o fornecimento de armas como uma ultrapassagem da "linha vermelha", dizem.
Em contrapartida, os Estados Unidos creem ser preciso deter o lider russo agora, para que ele não abra a "caixa de Pandora", com ainda mais guerra e instabilidade, como disse o secretário de Estado Antony Blinken. Do mesmo modo que muitos europeus, ele parte do princípio que Putin atacará ainda outros países europeus: Geórgia, Modávia e os Estados bálticos.
As nações ocidentais reagiram com as sanções econômicas mais duras e mais imediatas de sua história. Mas se quisermos deter a campanha de destruição de Putin, vai ser preciso apertar mais ainda os parafusos. Para o início da segunda semana de fevereiro, a União Europeia anunciou a suspensão de ainda mais bancos, do tráfego marítimo e de diversas importações.
Depois disso, como último recurso, só restará sustar as importações de petróleo, gás e carvão mineral russos, No entanto, a medida abalará tanto as economias nacionais quanto a paz social de nossos países. Mas em caso de dúvida, teremos que encarar isso, já que todas as outras opções são piores.
Pois, continuando a comprar petróleo e gás russos, estamos financiando a guerra de Putin. Mesmo que a primeira rodada de sanções já tenha paralisado o Banco Central da Rússia, Moscou embolsa centenas de milhões de dólares por dia em seus negócios conosco.
Só se fecharmos essa torneira, deixando Putin sem nenhuma fonte de divisas e sem acesso a suas reservas, talvez ele se sente à mesa de negociações. Entretanto nem mesmo tais sanções extremas servirão à Ucrânia no curto prazo.
Em todos os outros aspectos, a UE, com frequência tão conflituosa, supera todas as expectativas: sem burocracia, ela oferece proteção a todos os refugiados, e a gigantesca solidariedade humana é emocionante e afetuosa. Os europeus fornecem dinheiro, armas e prestam ajuda humanitária ao povo do país vizinho sob ataque.
Nos limites do possível, as cidadãs e cidadãos da Europa fazem tudo, também por perceber que essa guerra é um ataque contra todos nós, nossa forma de vida liberal, democrática. E porque a inimaginável valentia dos ucranianos sacode quem acredita que a partir do sofá da sala possa dar a sua contribuição pela segurança do nosso futuro.
Contudo, se a intenção de Putin for, de fato, arrasar à base de bombas a capital ucraniana, com suas cúpulas douradas, seu palácio do governo, o heroico presidente Volodimir Zelenski e seus mais de 3 milhões de cidadãos, no fim de contas só vamos mesmo poder assistir.
E essa sensação de nossa impotência, de sermos observadores de mãos atadas da campanha assassina de Putin... vai ser terrivelmente amargo.
Após seu telefonema mais recente com Vladimir Putin, a formulação do presidente francês, Emnanuel Macron, foi quase literalmente a mesma que a do secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, na sexta-feira (04/03): "Vai ficar ainda pior."
Os militares partem do princípio que em breve o exército russo intensificará os bombardeios e os disparos contra a população civil. Pessimistas temem que Putin vá reduzir Kiev a destroços e cinzas, seguindo o modelo da destruição total de Grozny, em 1999, quando, sob comando do senhor de guerra, as forças armadas russas transformaram da capital tchetchena num deserto de ruínas.
Com esse pesadelo perante os olhos, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, tem apelado repetidamente por uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia. E a Otan repetidamente tem que responder: "Não podemos!" Isso significaria a confrontação militar direta com a Rússia, e eclodiria a Terceira Guerra Mundial.
Putin já nos lembrou de suas armas nucleares e insinuou que talvez chegue às últimas consequências para tornar realidade seu desvario de um reino pan-russo, com a anexação da Ucrânia. No entanto, a aparente irracionalidade do chefe do Kremlin, sua loucura real ou fingida, não passa de mais um recurso para nos deixar inseguros.
Alguns observadores acham até que a aliança ocidental deveria se comportar com cautela ainda maior, a fim de evitar o apocalipse nuclear. Putin poderia interpretar até mesmo o fornecimento de armas como uma ultrapassagem da "linha vermelha", dizem.
Em contrapartida, os Estados Unidos creem ser preciso deter o lider russo agora, para que ele não abra a "caixa de Pandora", com ainda mais guerra e instabilidade, como disse o secretário de Estado Antony Blinken. Do mesmo modo que muitos europeus, ele parte do princípio que Putin atacará ainda outros países europeus: Geórgia, Modávia e os Estados bálticos.
As nações ocidentais reagiram com as sanções econômicas mais duras e mais imediatas de sua história. Mas se quisermos deter a campanha de destruição de Putin, vai ser preciso apertar mais ainda os parafusos. Para o início da segunda semana de fevereiro, a União Europeia anunciou a suspensão de ainda mais bancos, do tráfego marítimo e de diversas importações.
Depois disso, como último recurso, só restará sustar as importações de petróleo, gás e carvão mineral russos, No entanto, a medida abalará tanto as economias nacionais quanto a paz social de nossos países. Mas em caso de dúvida, teremos que encarar isso, já que todas as outras opções são piores.
Pois, continuando a comprar petróleo e gás russos, estamos financiando a guerra de Putin. Mesmo que a primeira rodada de sanções já tenha paralisado o Banco Central da Rússia, Moscou embolsa centenas de milhões de dólares por dia em seus negócios conosco.
Só se fecharmos essa torneira, deixando Putin sem nenhuma fonte de divisas e sem acesso a suas reservas, talvez ele se sente à mesa de negociações. Entretanto nem mesmo tais sanções extremas servirão à Ucrânia no curto prazo.
Em todos os outros aspectos, a UE, com frequência tão conflituosa, supera todas as expectativas: sem burocracia, ela oferece proteção a todos os refugiados, e a gigantesca solidariedade humana é emocionante e afetuosa. Os europeus fornecem dinheiro, armas e prestam ajuda humanitária ao povo do país vizinho sob ataque.
Nos limites do possível, as cidadãs e cidadãos da Europa fazem tudo, também por perceber que essa guerra é um ataque contra todos nós, nossa forma de vida liberal, democrática. E porque a inimaginável valentia dos ucranianos sacode quem acredita que a partir do sofá da sala possa dar a sua contribuição pela segurança do nosso futuro.
Contudo, se a intenção de Putin for, de fato, arrasar à base de bombas a capital ucraniana, com suas cúpulas douradas, seu palácio do governo, o heroico presidente Volodimir Zelenski e seus mais de 3 milhões de cidadãos, no fim de contas só vamos mesmo poder assistir.
E essa sensação de nossa impotência, de sermos observadores de mãos atadas da campanha assassina de Putin... vai ser terrivelmente amargo.
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