segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

A caminho da irrelevância

Pode ser normal um chefe de Estado estar perto de completar um ano no cargo sem ter-se empenhado em montar uma base de apoio no Congresso? E tendo abandonado o partido pelo qual se elegeu e ajudou a eleger 52 deputados federais e quatro senadores?

Parece normal a maioria das coisas que ele faz como, por exemplo, suspender a fiscalização com radares móveis nas rodovias federais, o que reduziu a aplicação de multas e aumentou de agosto para cá o número de mortos e de feridos em acidentes?

E culpar ONGs e até um famoso ator de cinema por incêndios na Amazônia é comportamento que possa ser considerado normal em um presidente da República? É verdade que ao se eleger ele disse que não havia nascido para ser político, mas sim militar.

Mas nenhum dos militares empregados por ele no seu governo – e já são mais de mil – saiu a público para avalizar uma única dessas medidas. Você pode ter ouvido militares defenderem, como o faz Bolsonaro, a ditadura de 64. Sobre torturas, calam-se. Ele, não.


Não foi um militar fardado ou de terno que acenou com um novo Ato Institucional nº 5 caso houvesse manifestações de ruas que degenerassem em violência. Foi um dos filhos de Bolsonaro que acenou, e em seguida o poderoso ministro da Economia.

Como candidato, Bolsonaro disse que o PT deu preferência aos seus militantes ao escalar os ocupantes de cargos públicos. Esqueceu-se de dizer também que o PT compartilhou o poder com outros partidos, o que nem sempre foi bom, nem sempre foi mal.

E o que ele tem feito? Aparelha a máquina do Estado com os devotos que julga mais leais, os que pensam como ele e estão dispostos a obedecer às suas ordens sem discutir. Se um deles cai em desgraça junto a um dos seus filhos, despacha-o.

Daí a mediocridade, marca de sua equipe. Daí o troca-troca de auxiliares com ou sem razão. Nem político, nem militar. Bolsonaro não nasceu para nenhuma dessas coisas. Foi expulso do Exército por indisciplina. Foi político estridente do baixo clero.

Se como deputado federal por 27 anos tivesse aprendido algo, saberia que não basta a um presidente remeter ao Congresso medidas e projetos que imagine necessários para o êxito do seu governo. Há que debater o que propõe e negociar sua aprovação.

Lavar as mãos significa falta de compromisso com suas próprias ideias. Ou pior: caracteriza uma postura de quem desejaria que o Congresso se limitasse a referendar o que ele lhe manda. É por isso que tem colhido ali tantas derrotas, e seguirá sendo assim.

Seu governo, que mal começou, corre o risco de tornar-se irrelevante, ou apenas uma usina que produz barulho. Normal, não é, embora continue sendo tratado como se fosse pelos interessados nas reformas econômicas que por ora esfriaram.

É o que ainda o sustenta. Mas até quando?

Exposição celebra meio século de Pasquim

Coincidência ou ironia do destino, o fato é que, enquanto em Brasília o presidente promovia, com fascistoide estardalhaço, o primeiro partido familiar da história política do País, belicosamente kitsch e com o mais medonho logo de sua espécie, o Sesc Ipiranga de São Paulo abria uma exposição que era, é, em tudo, o seu antípoda.

Nada mais distinto da nova aliança da bala, do boi e da Bíblia que a jubilosa exposição dos 50 anos do Pasquim. A começar pela bela e, como sempre, criativa, montagem de Daniela Thomas. Está tudo lá, até uma sala reproduzindo a cela da Vila Militar em que a maior parte dos redatores do jornal ficou presa nos dois últimos meses de 1970. Pressa desnecessária; ela fica em cartaz no Sesc Ipiranga até abril do ano que vem.


Depois? Por enquanto, nada. Seu obstinado mentor, Fernando Coelho dos Santos, fez o diabo para que ela também acontecesse no Rio, mas só encontrou obstáculos, desinteresse e cagaço político nas instituições que poderiam acolhê-la. Soa no mínimo absurdo que o jornal que era a própria encarnação do espírito de Ipanema, que alardeava ver tudo de “um ponto de vista carioca”, tenha seu cinquentenário apenas celebrado em São Paulo.

Simultaneamente à mostra, a Fundação Biblioteca Nacional disponibilizou em sua hemeroteca a coleção completa digitalizada do Pasquim, do número 1 ao 1072. Esta é a cereja do bolo.

Em meio às conversas que animaram a abertura da exposição, um fiel leitor paulistano do Pasquim me perguntou qual fora, a meu ver, o melhor número do jornal, aquele que eu levaria para uma ilha deserta. Cravei o 300. Entre outros motivos, por ter sido o primeiro número sem censura prévia depois de duzentas e tantas edições rasuradas e cortadas pelos catões da ditadura.

O 300 chegou às bancas em 29 de março de 1975. Na capa, o baixo-ventre da modelo Nádia Patinha, as partes pudendas ocultas por um biquíni preto. Sob o logo do Pasquim, sua inegociável divisa: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”, vetada até então pelos censores.

Nas páginas internas, dois poemas inéditos de Drummond, textos de Chico Anísio, João Saldanha, Pablo Neruda, Dalton Trevisan, uma entrevista com Aurélio Buarque de Holanda, mais os habituais suspeitos do semanário (Jaguar, Paulo Francis, Ivan Lessa, Ziraldo, Claudius etc), todos de algum modo abordando a durindana censória. A recente viuvez de Jacqueline Onassis inspirou quatro cartuns de Henfil e um comentário de Millôr.

Henfil: “Jacqueline mudou a historinha. Agora é a galinha que mata o homem dos ovos de ouro”. Millôr: “Jacqueline, eis uma que não só nasceu de rabo para a lua, como soube usá-lo.”

O ápice da edição, ou melhor, os dois ápices da edição foram o histórico editorial de Millôr sobre o fim da censura prévia e uma fotonovela estrelada por Fernanda Montenegro, que na maior esportiva passou duas horas no casarão gótico fake do jornal, no cocuruto da rua Saint Romain, dividindo a pantomima com Ivan Lessa, Millôr, Jaguar, Dona Nelma, a legendária secretária do Pasquim, e quem mais estivesse dando sopa no pedaço.


Inspirada, por assim dizer, na peça More Stately Mansions, de Eugene O’Neill, com enredo e diálogos de Ivan Lessa, não recebeu o título de A Mais Sólida Mansão, como a traduzira Barbara Heliodora, e sim More nas Mansões Estatais. Cobertos por clâmides improvisadas com dois lençóis, Fernanda (no papel de si própria) e Ivan (fazendo-se passar por Fernando Torres) vão ao Pasquim levar “teatro para o povo”.

Nelma, espantada, pergunta o que é povo. Ivan explica: “aquela turma sem camisa”. Ao que Fernanda complementa: “quase sempre descalça”. Convocados aos gritos por Nelma, contínuos, secretárias da contabilidade, até a cozinheira, D. Marta, acorrem à sala para assistir ao espetáculo. Ao ouvido de Ivan, Fernanda cochicha: “Joga um Shakespeare neles!”. E Ivan recita um trecho de Ricardo 2º. Millôr, de penetra no canto do quadro, interfere: “A tradução é minha!” (Mentira: Millôr não traduziu Ricardo 2º). Sem obter o efeito almejado, Ivan sugere a Fernanda: “Ataca de Sófocles”. E Fernanda, com um cartazete no peito escrito “Tirésias”, discursa aos senhores de Tebas. Millôr interfere de novo: “A tradução é minha”. (Outra lorota. Ele não traduziu Antígona.) Em vista da reação negativa da assistência (“muito cerebral”, “não tem mulher nua”, “cadê o Tarcísio Meira?”), Fernanda, Ivan e Millôr saem, acabrunhados, da casa. Fernanda perguntando-se se não seria melhor gravar um LP, Ivan pensando em “jogar na ponta do Flamengo” e Millôr cogitando traduzir as propagandas do macacão do Fittipaldi.

Quanto ao histórico editorial, foi o último ato do Millôr à frente do Pasquim. Começava assim:

“Cinco anos depois, tão misteriosamente como começou – ‘ordens superiores’ – a sinistra censura sobre este jornal se acabou. O Dr. Romão, o último interventor de plantão dos vinte ou trinta que passaram pela tarefa nestes mil e quinhentos dias de violências, comunicou à Nelma que ‘Vocês, agora, não precisam mandar mais nada pra censura’. Mas, vício do ofício, não conteve a ameaça ‘Agora a responsabilidade é de vocês’.”

E continuava assim: “Se mesmo sob censura prévia, 10 dos principais redatores ficaram dois meses presos na Vila Militar, por crime de imprensa, ‘a responsabilidade sempre foi nossa’. Agora o jornal passa a circular sem censura. Mas sem censura não quer dizer com liberdade.
Pois a ordem de liberação, como a ordem de repressão, não partiu de nenhuma ordem identificável (...) Veio, como tudo, hoje, da voz menor de um burocrata. De modo que – não nos enganamos! – assim como a ordem veio, pode ser negada amanhã de manhã e o jornal apreendido no momento que você lê este artigo.”

E não é que foi mesmo?

Pensamento do Dia


Encolher ou fortalecer o Estado?

O ministro Paulo Guedes, a par de declarações polêmicas – “não se assustem se alguém pedir o AI-5”-, pretende encolher o Estado para que este cuide do que é estritamente sua obrigação: educação, segurança pública, saúde. O foco é privatizar empresas estatais. O que levanta a questão: qual deve ser o escopo do Estado no governo Bolsonaro?

A tentativa de resposta começa com o ideário do ministro da Economia: a Escola de Chicago, berço do liberalismo e da diminuição da intervenção do Estado na economia. Ocorre que a índole do capitão Jair Bolsonaro e de seu entorno militar tem um DNA nacionalista, que viceja desde os tempos do “petróleo é nosso” nos anos 50. Nacionalismo que se identifica com Estado forte.

Um dos papas da ciência política, o sociólogo Alain Touraine, prega o aumento da capacidade de intervenção do Estado para atenuar desigualdades. O Estado tem sido fraco para debelar as mazelas. Por isso, o governo age no varejo e no curto prazo e o presidente se limita a fazer agrados para administrar.

Libelo candente contra os ultraliberais (o mercado é remédio para tudo), a análise do professor francês é um hino às utopias. Aqui, Estado forte tem sido sinônimo de autoritarismo, ineficiência, gigantismo etc. Como mudar o Estado corporativista dando-lhe capacidade de planejar no longo prazo, sem reformas capazes de deflagrar novos costumes? As reformas trabalhista e previdenciária não bastam. O que se espera são amplas mudanças.

O desafio se impõe: alinhar liberalismo, bem-estar social, Estado capaz de intervir se necessário (como na crise de 2008 nos EUA), institucionalização política, administração racional, mérito e não clientelismo.


Em defesa do Estado forte, fala-se da necessidade de combater interesses individuais e grupais que prevalecem sobre as políticas sociais. O governo Bolsonaro até prometeu acabar com a velha política, mas tateia na escuridão. No capítulo “encolhimento do Estado”, as coisas caminham devagar, dando a impressão de que ainda não sabe qual deve ser o tamanho do Estado. O presidente, por sua índole, gostaria de ter mais poder e menos dependência do Parlamento.

Parece combinar o ataque frontal a algumas áreas com uma estratégia paulatina, de operação por setor. A ciência política ensina que o reformador deve isolar cada questão, retirando-a da agenda antes que oponentes reúnam forças. Se tentar operar à base de blitzkrieg, deve cercar todos os lados rapidamente. Mas o governo perdeu muito tempo até agora.

Reformar o Estado não é tarefa fácil. Maquiavel lembrava que nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de obter êxito ou mais perigoso de manejar do que iniciar uma nova ordem de coisas.

Por último, sobram questões: como aparar desigualdades com programas ultraliberais? Como atrair investimentos acenando para o fantasma dos “tempos de chumbo” vividos a partir de 64? (Cuidado, ministro Guedes). Como deixar de atender a um parlamentar dos grotões, ameaçado de desaparecer sem clientelismo? Enfim, qual Estado a democracia brasileira requer: mínimo, gigante ou adequado?

Despertar relinchante

Foram-se as manhãs despertadas pelo canto dos galos. O país acorda sob o zurrar da burricada
LG 

Vai botar parar quebrar!

A prática da ignorância marca desde sempre a trajetória dos déspotas. Especialmente quando eles a usam para ir de encontro a conquistas civilizatórias. Mais uma vez, e de maneira quase recorrente nesses já longos onze meses de mandato, o capitão Bolsonaro aposta na tática do “bateu, levou” para tentar impor suas vontades. Quer a ferro e fogo, a qualquer custo, empregar um dispositivo anacrônico, típico de regimes de exceção, para combater nas ruas quem ousar protestar contra o seu governo. Luta pela aprovação do chamado excludente de ilicitude, espécie de licença para matar, a ser entregue a seus batalhões de choque com a finalidade de coibir o que ele possa vir a considerar bagunça de arruaceiros. Em outras palavras: se o mandatário não gostar da pauta das manifestações públicas ou de qualquer outra ação que lhe incomode poderá mandar a tropa para cima, quebrar o pau e meter bala nos petulantes. Atirando para matar, até. Sem consequências, sem punição, sem nem ao menos processo criminal pelo delito. Lei da selva. O policial dono do fuzil que assassinou pelas costas a indefesa menina Ágatha, de oito anos, no Rio, sairia ileso de culpa nessas circunstâncias. O fato seria tratado como mero efeito colateral de operação de guerra ao tráfico. O exemplo é dramático, mas real. Passível de enquadramento na nova ordem unida. O incômodo de Bolsonaro e de sua trupe com as resistências populares aos seus ditames, deliberações e eventuais desmandos chegou ao ponto de membros do alto escalão, como o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, tratar como natural a volta de atos de cassação de direitos como o AI-5 para enfrentar a anarquia e a “quebradeira inconcebível”, segundo suas palavras. Há de se saber aonde vem ocorrendo tamanha algazarra. De outro modo, é sempre bom lembrar que os próceres do atual governo não viam qualquer ameaça ou problema quando saiam das hostes do próprio Planalto incitações e convocações sistemáticas, dia sim, outro também, para que o povo seguisse em protestos dirigidos ao Congresso e ao STF. No caso, podia. Sem ressalvas. Bolsonaro em pessoa chegou a estimular as tais mobilizações, em uma cristalina demonstração de desprezo pelos demais poderes. Ir às ruas reclamar contra todo o resto e a favor do governo, Ok — mesmo se descambar para a agitação. Agora, nada de reclamar do Executivo. Aí não, por favor, porque vira baderna! O que é isso? De forma aberta e sem constrangimento, a fragata bolsonarista vai se abastecendo de anseios totalitários. Busca qualquer pretexto para a repressão a opositores. Classifica de vândalos aqueles que são tidos como adversários ideológicos. Transforma-os em maus elementos, marginais, bandidos da pior laia, dignos das grades ou do tiro no meio da testa. Guedes insinuou a possibilidade de um revival do AI-5, da mesma maneira que o fez, semanas atrás, o filho Dudu, que queria ser embaixador em Washington. A campanha intramuros do Palácio cresce nesse sentido. O flerte com o radicalismo parece claro. Uma aberração que teria de ser coibida visceralmente, pelo bem da democracia. Bolsonaro e os seus parecem não gostar muito da tal de democracia. Embora tenha sido ele eleito diretamente pelo voto nas urnas, fundamento lapidar desse modelo de organização social.

É de uma insolência tremenda, que afronta os mais elementares princípios de liberdade do povo brasileiro, um presidente da República se arvorar em censor de manifestações. Vai além do aceitável a intransigência verificada na cúpula brasiliense que prega o uso da força ao invés do diálogo.

Da mesma lavra de medidas extremas, outra proposta de Bolsonaro estatiza, na prática, a pistolagem no campo. Isso mesmo! Ele quer que os parlamentares autorizem o emprego pelo governo federal da chamada GLO (famigerados instrumentos de Garantia da Lei e da Ordem). As GLOs são operações de segurança autorizadas pelo Poder Executivo que podem ter duração de meses. Inclui inclusive o uso de Forças Armadas em conflitos de qualquer natureza, tirando das gestões estaduais a primazia do cumprimento de decisões da Justiça. O “mito” quer as GLOs para expulsar invasores de terra e mesmo de imóveis nas cidades. Anseia também ir para cima dos quilombolas, camponeses e indígenas. Se pudesse, no seu desejo mais íntimo, varria do mapa essa gente. As palavras do mandatário são reveladoras de suas intenções rudimentares: “GLO não é uma ação social, chegar com flores na mão. É para chegar preparado para acabar com a bagunça”. E na marra vale tudo, pode-se imaginar. Ainda povoam a memória nacional as imagens do Massacre de Eldorado dos Carajás, nos idos de 1996, quando 19 grileiros sem-terra foram abatidos pela PM em um conflito armado. Mas Bolsonaro não demonstra preocupação com tais detalhes. Questionado sobre a resistência do Congresso ao tema da GLO, dobrou a aposta no pendor arbitrário que de longo tempo acalenta: “se não aprovar, não tem problema. A caneta compactor é minha”. Durma-se com uma tirania dessas. 

Cura ideológica

Vazamentos de documentos secretos na China de Xi Jinping são raros. Daí o valor dobrado do material publicado dias atrás pelo “New York Times”, e complementado por lote igualmente devastador obtido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (Icij, na sigla em inglês). Ambos tiveram acesso a centenas de discursos e diretivas internos sobre a “reeducação” imposta às minorias étnicas muçulmanas, em particular os dez milhões de uigures da rica província de Xinjiang. O território situado no norte do país faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão, duas nações de maioria muçulmana, e é visto pelo regime de Pequim como incubadeira de terroristas islâmicos. Por isso, recebe o tratamento reservado a desviantes ideológicos.

Há anos denúncias de opressão contra os uigures emergem aqui e ali, sempre negadas por Pequim. Agora, com o vasto material vazado ao que parece por um membro do próprio Partido Comunista, a questão muda de figura. O vazamento chega em péssima hora para o regime da China, suficientemente ocupado com a teimosa insurgência nas ruas de Hong Kong.

Os documentos mostram que o recurso a uma “cura ideológica” foi iniciado pelo camarada Xi em 2014, pouco após um atentado uigure a mais de 150 pessoas numa estação ferroviária da província, com 39 mortos. Na época, em discurso reservado, o presidente exigiu o uso de “ferramentas da ditadura do povo democrático, sem misericórdia”. Sugeriu que o partido adotasse algumas práticas da “Guerra ao Terror” decretada por George W. Bush em 2001, além de outros métodos clássicos como a delação popular e confissões estalinistas. Também passou a fazer parte do cardápio de repressão o emprego maciço de reconhecimento facial, testes genéticos, big data e uma plataforma de inteligência artificial destinada a prever crimes.

Sem falar na implantação de uma teia de campos de internamento forçado, cuja matriz data da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung . De uma hora para outra, sem aviso ou processo judicial, famílias inteiras, vizinhos, colegas de trabalho e funcionários públicos simplesmente começaram a sumir. Estima-se que mais de um milhão de chineses das etnias uigur e cazaque estejam confinados. Repetindo: mais de um milhão.

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A ponto de ser necessário elaborar um protocolo específico para lidar com a massa de estudantes que retornam no período de férias e encontram a casa vazia. A ordem é interceptá-los no momento da chegada, e estar preparado para explicar por que os pais, avós, parentes ou vizinhos desapareceram.

Segundo instruções por escrito, a resposta à esperada pergunta inicial — “Onde está minha família?”— deve ser mansa: “Está numa escola de treinamento do governo”. Em seguida, é explicado que “esse período de aprendizado é gratuito, alojamento e comida também... e se você quiser vê-los podemos proporcionar um encontro por vídeo”. E que o próprio estudante de férias, através de um sistema de pontuação por bom comportamento, pode apressar ou delongar o tempo de reclusão dos parentes. Em média, quem cai na malha passa mais de um ano isolado, só sendo libertado quando receber aprovação de quatro comitês do partido.

Caso o estudante insista com indagações mais inquisitivas, a intimidação aperta: os parentes sumidos teriam sido “infectados pelo vírus do radicalismo”, a quarentena se destina à sua cura, e ele deve ser grato ao partido por seus familiares receberem “sólidos alicerces de uma vida familiar feliz”. Segundo o manual, a pergunta “Eles cometeram algum crime?” deve ser respondida em negativa condicionante: “Apenas o modo de pensar deles foi infectado. A liberdade só é possível quando este vírus for erradicado e eles voltarem a ser saudáveis”.

Esses jovens pinçados pelo regime para estudar nas melhores universidades do país e formar uma nova geração mais leal ao partido em Xinjiang são de interesse máximo para Pequim. Por terem estabelecido laços sociais na faculdade, são vistos como risco, caso emitiam “opiniões de impacto e difíceis de erradicar” em plataformas como WeChat e Weibo. Embora monitoradas pelo regime, mesmo na China comunista mídias sociais são um pesadelo.

Ainda esta semana, uma adolescente afegã-americana deu um baile no regime de Xinjiang. Feroza Aziz, 17 anos, olhos aveludados e residente em New Jersey, postou o que parecia ser apenas mais um vídeo caseiro com dicas de maquiagem. A bordo da plataforma Tik Tok, muito popular na China por seus memes e concursos de karaokê, Feroza inicia o tutorial de como deixar os cílios mais curvados de forma banal: “Primeiro, você precisa de um curvador, depois, claro, você vai curvar seus cílios”. A partir daí, sem mudar um átimo no tom de voz nem pular uma fração de segundo, ela engata: “Agora largue o curvador, pegue o celular que você está usando e vá pesquisar o que está acontecendo na China, onde tem campos de concentração, maltratam muçulmanos, separam famílias...”. Antes que Pequim pudesse piscar, o post tinha sido visto por mais de 1,5 milhão de pessoas, recebeu 501 mil likes e gerou 600 mil comentários. E quando pousou no Twitter, portanto fora do alcance da censura chinesa, viralizou: mais de 6,5 milhões de views.

Feroza, Greta, os colegiais de Hong Kong — a garotada de hoje anda impossível.
Dorrit Harazim

Políticas diversionistas

Qualquer cidadão razoavelmente informado é capaz de identificar os três principais problemas da vida banal: emprego, saúde e educação. Se for acrescentar mais dois: moradia e mobilidade urbana. Dependendo da região, a violência atropela até a primeira lista, como nos morros e “complexos” do Rio de Janeiro. São temas que inevitavelmente estarão no centro do debate eleitoral do próximo ano e que dependem das políticas públicas federais, sob o peso da crise fiscal. Entretanto, quando abrimos os jornais (ou melhor, as redes sociais), as prioridades do governo Bolsonaro não são exatamente essas, são as pautas identitárias que supostamente levaram à derrota a oposição, em 2018.

Ao insistir numa agenda que confronta os movimentos identitários, o governo executa uma tática diversionista, para distrair a oposição e deslocar o eixo dos debates das verdadeiras prioridades do país. Essa política pode ser um tremendo tiro no pé, como foi a tentativa da esquerda de se refugiar nessa pauta para evitar a autocrítica de seus erros e o debate sobre sua própria crise ética, o que resultou na sua derrota eleitoral. A mais recente jogada para confrontar a pauta identitária foi a nomeação do novo presidente da Fundação Palmares, Sergio Nascimento de Camargo, adversário declarado do movimento negro e da política de cotas, que afrontou de tal forma as lideranças negras que foi chamado de “capitão do mato” pelo próprio irmão, o músico e produtor cultural Wadico Camargo.

O novo chefe da Fundação Palmares está alinhado ao secretário de Cultura do governo federal, o dramaturgo Roberto Alvim, que promove uma cruzada contra esquerda no movimento artístico e cultural, assim como há outras cruzadas, contra ambientalistas, feministas, índios, professores e a imprensa. A missão de Camargo é inglória, quando nada porque não será fácil reescrever a história do negro no Brasil, ainda mais depois do livro Escravidão, de Laurentino Gomes, cujo primeiro volume aborda o tema do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Foram 300 anos até a Abolição, período em que 5 milhões de negros e negras foram submetidos à exploração e à opressão brutais. Só um sujeito mal-intencionado pode afirmar que “a escravidão foi benéfica para os descendentes de escravos”.


Quando nada, a escravidão está na raiz das desigualdades sociais no Brasil, que se agravaram nos últimos anos, em consequência do colapso do governo Dilma Rousseff e da recessão que isso provocou: entre 2014 e 2017, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar Contínua do IBGE, 8,5 milhões de brasileiros se somaram aos 14 milhões que já viviam abaixo da linha da pobreza. No mesmo período, o contingente daqueles que sobreviviam em situação de pobreza extrema passou de 5,2 milhões para 11,8 milhões. Por mais que Bolsonaro tenha herdado esse passivo social, sua eleição surfou o descontentamento por ele provocado e, mais cedo ou mais tarde, seu governo terá que mostrar resultados positivos na área social. É aí que está o ponto mais fraco do governo.

O ministro da Fazenda, Paulo Guedes, até por causa da composição de sua equipe, domina a política para o mercado financeiro e as contas da União, isto é, a superestrutura da economia, mas a infraestrutura, ou seja, o mundo real da produção, não é a praia da atual equipe econômica ultraliberal. Muito menos as políticas sociais. A superestrutura vai muito bem, obrigado. O Banco Central tem reservas da ordem dos US$ 370 bilhões, para uma dívida externa de US$ 100 bilhões. Com isso, a economia suporta bem a alta do dólar, pois nossos ativos também aumentam quando o real se desvaloriza. Ainda bem que estamos livres de uma crise cambial, o que não é pouca coisa, principalmente se olharmos para os lados na América do Sul e para a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China.

Entretanto, com a inflação na casa dos 3% e a taxa de juros na faixa dos 4,5%, a economia não deslancha e o governo não sabe bem o que fazer. Vendeu-se um terreno na Lua para a opinião pública, com a reforma da Previdência, que era necessária e foi aprovada, mas não garantiu a retomada automática do crescimento, como se dizia. Depois, Guedes se perdeu ao apresentar, simultaneamente, três pacotes de reformas ao Congresso, de forma enviesada, pois a discussão começou pelo Senado e não pela Câmara, como seria mais natural. Resultado: o ano está acabando, sem que nenhum deles seja aprovado. Restou o diversionismo das políticas identitárias, que funciona como iscas para desviar a atenção da oposição. O problema é que o reacionarismo do governo nas áreas cultural e social acaba provocando a ojeriza dos setores moderados da sociedade, contrários à radicalização e à perseguição político-ideológica.