quinta-feira, 13 de julho de 2023

Pensamento do Dia

 


O que está acontecendo conosco?

Nas últimas semanas, escrevi duas colunas (23 e 29/6) sobre o fato de que, por qualquer motivo, brasileiros sacam facas, pistolas e barras de ferro, e partem com fúria assassina para cima uns dos outros. Crianças sofrem violência fatal por pais ou tutores. Mulheres são agredidas ou mortas por maridos ou namorados. E o futebol se tornou uma catarse do mal, em que massas de torcedores alvejam adversários com rojões, trocam garrafadas, depredam patrimônio e juram terror a seus próprios jogadores.

As duas colunas se compunham de notícias colhidas na mesma semana. Perguntei: o que está acontecendo conosco?


Há dias, o levantamento de um órgão internacional dedicado a medir a paz —e, por conseguinte, a violência— tornou ainda mais premente a pergunta. O Brasil é um dos 35 países mais perigosos do mundo. Os critérios usados foram o envolvimento em conflitos, o nível de segurança baseado nas taxas de criminalidade e a quantidade de armamento em circulação.

O Brasil não está em guerra com ninguém, mas, dentro de suas fronteiras, tem uma facção capaz de produzir o 8/1. O país bate recordes em crime organizado, polícia com licença para matar e execuções entre os dois grupos a resultar em comunidades sob permanente tiroteio. O número de armas em poder de particulares, autointitulados caçadores, atiradores e colecionadores, quintuplicou nos últimos anos e explica a facilidade com que as pessoas se matam no dia a dia. Em 2022, ano da pesquisa, foram 40,8 mil mortes violentas no país —média de 110 vítimas por dia.

O Brasil sempre foi violento, fruto de desigualdade, racismo, homofobia, ignorância, brutalidade policial, leis complacentes, certeza de impunidade e corrupção geral. E não vai ficar assim. Vai piorar.

Estamos sendo impregnados pelo discurso do ódio. É o nós contra todos. O outro é uma ameaça. Saímos à rua vestidos para matar.

Humanidade

Depois de conhecer a humanidade
suas perversidades
suas ambições
Eu fui envelhecendo
E perdendo
as ilusões
o que predomina é a
maldade
porque a bondade:
Ninguém pratica
Humanidade ambiciosa
E gananciosa
Que quer ficar rica!
Quando eu morrer…
Não quero renascer
é horrível, suportar a humanidade
Que tem aparência nobre
Que encobre
As péssimas qualidades

Notei que o ente humano
É perverso, é tirano
Egoísta interesseiros
Mas trata com cortesia
Mas tudo é hipocrisia
São rudes, e trapaceiros.

Carolina Maria de Jesus

O tempo mexeu com a gente

A ideia inicial era começar o assunto com o provérbio anônimo: somos mais parecidos com o nosso tempo do que com nossos pais. Mas pareceu batido demais para leitores saturados com informação difusa. A vantagem do dito inesperado é dar um flagrante no oculto. Muito difícil escrever qualquer coisa hoje sem uma certa “angústia de influência”, e desconfiar se já não é um lugar-comum esvaziado. Dá impressão de que nada mais é significativo — tudo já foi dito e lido — e pasteurizado por repetição tediosa.

Yuval Harari teme que o sistema operacional da espécie — a linguagem, enfim, o pensamento — esteja sob ameaça de captura pela inteligência artificial. Eu diria que, antes disso, na época atual, a singular subjetividade humana já foi arrancada do indivíduo. Este ser invadido, achatado e banalizado por ondas sufocantes de informações e redes sociais. Ele perdeu sua centralidade única ao vê-la espelhada na cacofonia das expressões humanas ali niveladas. O quarto golpe ao narcisismo, talvez o último, é o absurdo sentimento dos sujeitos se descobrindo clones uns dos outros.


A narrativa fotográfica da atualidade que nos cerca — que até a inteligência artificial é capaz de relatar, flagrando o indivíduo acelerado, desorientado e sufocado diante do assombro da sobrecarga de estímulos e transformações — equivale a chover no molhado. O impasse é tal que a palavra destinada à função crítica perdeu o sentido. A nova realidade ataca e neutraliza a arma que poderia enfrentá-la. Enquanto o indivíduo consciente se refugia no reduto da intimidade pessoal, onde ressuscita as questões do ser (para não esquecer Heidegger), lutando por resgatar a enxovalhada cerimônia civilizatória, o pensador crítico lança mão de outras tintas para conseguir um inesperado quadro que possa captar restos de um real boiando por aí (para não esquecer Baudrillard).

No cinema, Jim Jarmusch pôs — em “Os mortos não morrem” — zumbis e extraterrestres num cenário de mudança climática catastrófica. O policial interpretado por Adam Driver não se cansa de dizer:

— Isso não vai acabar bem.

E vai? Na vida mesma, os vivos é que não vivem — ou só o fazem sofregamente —, detendo o dinheiro que a maioria não tem. Aspiram a uma mocidade permanente, ao prazer incessante ou a uma existência eterna. Quando não é o caso de desejar — depois de destroçar a Terra — um outro planeta para morar (para não esquecer Bruno Latour), numa reedição astronômica do nomadismo predatório.

Restaria a outros a revolta sob a forma de adesão ao fascismo supostamente redentor de extrema direita, o resgate paradoxal da identidade na imersão na massa que cultua o mesmo e farsante grande líder. O esvaecimento do eu e o transtorno do sujeito têm assim uma trágica repercussão política. Tudo se parece hoje como se não bastasse o sonho ter acabado, como ainda nos afronta o pesadelo que se insinua — de forma sorrateira — entre nuvens sombrias nem por todos enxergadas.

Essas e outras descrições distópicas revelam ranzinzice pessimista ou contêm cotas de verdade — áreas de intercessão com a realidade? Seriam expressões fantasmáticas e alegóricas do que se passa no som ao redor, quando a linguagem racional e linear perdeu o viço revelador e se dissipou na banalidade dos falantes? É o dilema que surge quando lemos o último Giorgio Agamben: os humanos agora desaparecem igual ao “rosto desenhado na areia apagado pelas ondas.” Ou “a cegueira é tão mais desesperada porque os náufragos pretendem governar o próprio naufrágio”.

Se a ficção e o surreal podem revelar ou antecipar mais da realidade do que ela própria, a pintura disto assombra. Agamben diz que ser contemporâneo é saber distinguir a escuridão e as sombras do próprio tempo. No ápice de sua distopia, em “Quando a casa queima”, as cidades, as ruas e as casas estão ardendo em chamas. Vivemos num mundo que está queimando, mas não sabemos. E a chama “mudou de forma e de natureza, tornou-se digital, invisível e fria”.

Insegurança alimentar se agravou na pandemia e atingiu mais de 70 milhões de brasileiros

A quantidade de brasileiros que enfrenta algum tipo de insegurança alimentar alcançou a marca de 70,3 milhões no Brasil, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) antecipado pelo GLOBO. De acordo com os dados, o número se refere ao período de 2020 a 2022, que engloba a pandemia de Covid-19, e representa um aumento de 14,6% em relação ao último levantamento da entidade, quando havia 61,3 milhões nessa situação. É como se uma a cada três pessoas no país tivesse passado necessidade para comer ao longo dos últimos anos.

Os números estão no relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI). Os dados ainda revelam que desse total, 21,1 milhões, ou seja, 9,9% da população brasileira, possui insegurança alimentar severa, ou seja, ficaram sem comida por um ou mais dias. No levantamento anterior (2019 a 2021) esse número era de 15,4 milhões — um salto de 37%.

O Brasil atingiu uma marca negativa durante a pandemia ao voltar ao Mapa da Fome da ONU, o que não acontecia desde o início da década de 1990. Isso acontece quando mais de 2,5% da população enfrenta falta crônica de alimento. De acordo com dados da FAO, entre 2014 e 2016 eram cerca de 4 milhões os que sofriam de insegurança alimentar grave no país.

O professor Marcelo Neri, diretor do FGV Social, afirmou que os dados divulgados nesta quarta-feira são "chocantes", e apontou que, entre as causas, está a reação instável do país aos choques mundiais, como a pandemia.

— 1/3 da população com algum tipo de insegurança alimentar é muito chocante para um país conhecido como fazenda do mundo, como um dos maiores produtores de alimento do mundo — afirmou, completando: — Acho que o que está por trás é a nossa própria maneira de reagir aos choques externos, que foi instável. Teve uma instabilidade nas políticas de renda do Brasil, em 2021 o Auxílio Emergencial foi suspenso, tivemos eleições, desmonte nas políticas alimentares.

A desativação ou a interrupção de políticas como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Programa de Aquisição de Alimentos, programas para a agricultura familiar e queda de investimento nas merendas escolares estão entre as causas citadas por Nery para contribuir para o cenário mostrado no relatório.

O professor destaca que a perspectiva futura, com a retomada dessas medidas pelo governo federal, é positiva.

— Olhando para frente a gente tem uma visão mais positiva, porque não só esses programas voltaram como estão melhores. A gente tem o governo federal e os estados reajustando a merenda, um Bolsa Família maior, com maiores benefícios para crianças. O relatório mostra também a piora da desnutrição infantil, que gera efeitos de longo prazo.

O relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) mostra ainda que, em média, 735 milhões de pessoas passaram fome no mundo em 2022, um aumento de 122 milhões de pessoas em relação a 2019, antes da pandemia de covid-19.

O documento aponta entre as causas para o cenário os conflitos climáticos, a pandemia e cita, ainda, a guerra na Ucrânia. O levantamento é realizado em conjunto com cinco agências especializadas das Nações Unidas.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) aponta que os números globais da fome ficaram estagnados entre 2021 e 2022, mas que, apesar disso, muitas regiões enfrentam crises alimentares cada vez mais profundas , como a Ásia Ocidental e todas as sub-regiões da África em 2022. Ásia e América Latina aparecem como regiões onde houve redução da fome.

A África continua sendo a região mais afetada do mundo, onde uma a cada cinco pessoas passam fome, mais do que o dobro da média global.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou durante o lançamento do relatório na sede da ONU em Nova York, que apesar de algumas regiões caminharem para alcançar as metas nutricionais até 2030, ainda é preciso um "esforço global intenso e imediato" para eliminar a fome dentro do prazo estabelecido.

— Há raios de esperança, algumas regiões estão a caminho de atingir algumas metas nutricionais até 2030. Mas, no geral, precisamos de um esforço global intenso e imediato para resgatar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Devemos construir resiliência contra as crises e choques que levam à insegurança alimentar — afirmou

O relatório mostra ainda que 29,6% da população global — ou seja, 2,4 bilhões de pessoas —, não tem acesso constante a alimentos e estão em situação de segurança alimentar moderada ou grave. Desse total, 900 milhões de indivíduos enfrentam segurança alimentar grave.

O relatório mede ainda a capacidade de pessoas em acessar dietas saudáveis. Em 2021, mais de 3,1 bilhões de pessoas no mundo não conseguiram ter acesso a esse tipo de alimentação, o que representa 42% da população.

Em 2022, 148 milhões de crianças menores de cinco anos (22,3%) tinham baixa estatura no mundo, 45 milhões (6,8%) sofriam de emaciação e 37 milhões (5,6%) tinham excesso de peso.

A insegurança alimentar afeta majoritariamente pessoas que vivem em áreas rurais — 33% dos adultos que vivem em áreas rurais e 25% em área urbana.

Entre as crianças, o déficit de crescimento infantil é maior em áreas rurais, 35,8%, do que nas urbanas, 22,4%. A emaciação — a perda de massa muscular e de gordura — é maior nas áreas rurais (10,5%) do que nas áreas urbanas (7,7%), enquanto o excesso de peso é maior nas áreas urbanas (5,4%) em comparação com as áreas rurais (3,5%).

O GLOBO ainda teve acesso com exclusividade ao número de famílias brasileiras que saíram da linha da pobreza em junho, quando passaram a receber mais que R$ 218 per capta com a transferência do Bolsa Família. O valor é o que o governo considera como mínimo para alguém ser considerado na faixa da pobreza. Ao todo, 18,5 milhões de famílias ultrapassaram esse patamar.

Os maiores avanços foram em São Paulo (2,2 milhões); Bahia (2,2 milhões); Rio de Janeiro (1,6 milhões); Pernambuco (1,4 milhões); e Minas Gerais (1,3 milhões).

Em março, o governo federal relançou o Bolsa Família com o valor mínimo de R$600 e o adicional de R$ 150 para crianças de até seis anos. Há, ainda, benefícios variáveis, como os R$ 50 para gestantes, crianças e adolescentes de até 18 anos.

O governo federal voltou ainda com as condicionantes, ou seja, condições que precisam ser cumpridas para garantir o repasse do auxílio pelo governo federal. Entre eles, estão: o acompanhamento pré-natal; acompanhamento do calendário nacional de vacinação; frequência escolar; e acompanhamento do estado nutricional de crianças.

A gestão de Jair Bolsonaro tinha substituído o benefício pelo Auxílio Brasil que, entre outros pontos, retirou as condicionantes e mudou critérios de repasse. O benefício foi alvo de auditorias do Tribunal de Contas da União (TCU), que encontrou algumas irregularidades.

Entre elas, a Corte de Contas estimou, em dezembro do ano passado, que o governo federal pagava o benefício para 3,5 milhões de famílias com renda acima do necessário para ser beneficiado, o que representava um pagamento indevido de R$ 2 bilhões por mês.

A gestão anterior aumentou às vésperas da eleição o valor mínimo dos repasses para R$ 600. O tribunal, no entanto, apontou que o valor não ajudava a reduzir a pobreza e a desigualdade porque privilegiava famílias de apenas uma pessoa, em detrimento dos lares com crianças e adolescentes.

A permanência do valor do benefício foi um dos principais pontos da campanha do ex-presidente pela reeleição, que também apostou em um conjunto de "bondades" para quem recebia o benefício. Entre elas, estavam o 13º para mulheres. Como resultado, Bolsonaro passou a ser alvo de processos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pelo uso de programas sociais para ter vantagens eleitorais.