sábado, 3 de dezembro de 2016

A profanação da Lava Jato

“A Lava Jato é sagrada”, proclamou, na quinta-feira, em tom solene, Renan Calheiros, no Senado, tendo ao lado o juiz Sérgio Moro. É possível que sim, mas o momento é profano e a ameaça.

Esse é o sentido da mobilização popular prevista para amanhã em todo o país, em defesa daquela operação e contra os Poderes que a intimidam. Os três. A semana foi decisiva para aprofundar o abismo entre sociedade e instituições, sobretudo a política.

As dez medidas encaminhadas pelo Ministério Público à Câmara, subscritas por dois milhões de pessoas, diluíram-se numa emenda que, a pretexto do abuso de autoridade, criminaliza investigações que não sejam confirmadas em instância recursal.

Em síntese, se, eventualmente, Sérgio Moro tiver uma sentença reformada, responderá – ele e a força-tarefa da Lava Jato – por crime de abuso de autoridade. Até aqui, mais de 94% de suas sentenças foram confirmadas, mas o percentual mínimo revisto – uma rotina processual no Judiciário – já o tornaria réu.

O senador Ronaldo Caiado, diante das manifestações de indignação que, a seguir, inundaram as redes sociais, advertiu: “Corremos o risco de desobediência civil”.

E o que é isso? Simples: o rompimento formal entre sociedade e instituições. Não se pagam mais impostos, faz-se greve geral e não se reconhece nenhuma autoridade formal.

É um movimento pacífico e, por isso mesmo, devastador, nos termos em que foi originalmente concebido pelo filósofo anarquista norte-americano Henry David Thoreau, que o propôs no século XIX como meio de reagir à cobiça fiscal do Estado. Gandhi o adotou, com sucesso, contra o Império Britânico, em prol da independência da Índia. Martin Luther King a propôs contra a segregação racial.

No Brasil da Lava Jato, isso não está distante de acontecer, e a internet é um facilitador da articulação desse processo. Já circula intensamente nas redes sociais o vídeo em que políticos da Ucrânia são jogados em latas de lixo por manifestantes. A expressão “tomataço” substitui o panelaço tradicional. Parte-se do protesto simbólico para o agressivo. Começa a ficar perigoso ser político.

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A questão central é a credibilidade. O PT, que comandou o país por quase 14 anos, foi apenas o ponto de partida para o strip-tease moral da República. Ninguém havia antes roubado tanto e com tamanha cara de pau, a ponto de quebrar o país. Mas os petistas apenas levaram ao paroxismo uma cultura que encontraram já instalada. A sociedade jamais a ignorou. Se a tolerou, foi, de um lado, por não dimensionar a extensão de seus danos; por outro, por desconhecer sua própria força para expurgá-la. A Lava Jato tem mostrado que basta determinação em fazê-lo – e está fazendo.

Prendeu os maiores empresários do país, ex-governadores, um senador líder do governo, deputados, ex-governadores, depôs (por via indireta) uma presidente da República e um presidente da Câmara e já visualiza um espectro bem mais amplo de políticos (cerca de 200), em decorrência da delação da maior empreiteira do país, a Odebrecht, que inclui praticamente todos os postulantes à sucessão presidencial. Nenhum partido é poupado.

Foi nesse ponto que a operação italiana das Mãos Limpas foi revertida, em 1996. O Legislativo mudou a lei, restabeleceu o status quo anterior e paralisou juízes e investigadores, propiciando a ascensão de Sílvio Berlusconi, uma versão local de Paulo Maluf.

Foi o que a Câmara tentou, na madrugada de terça-feira, quando o país chorava a queda do avião que transportava o time da Chapecoense. Mas não funcionou. Na Itália dos anos 90, não havia a internet; aqui e agora, há. E faz toda a diferença.

A rigor, as dez medidas dos procuradores nem eram necessárias. Se, sem elas, a Lava Jato, já fez o que fez – e ainda fará bem mais -, por que provocar a onça (no caso, o Congresso) com vara curta? Se o combate à corrupção não funcionou no passado, foi menos por falta de leis e mais por falta de vontade de aplicá-las.

OAB e parte do Judiciário - e não apenas o Congresso - acusaram, com alguma razão, os procuradores de ativismo político. Mas o que poderia ser um desgaste, já que indispôs tanta gente graduada, não foi. Aumentou o prestígio da Lava Jato.

O desgaste não apenas da classe política, mas do conjunto das instituições, é tal que o tiro não saiu pela culatra. Acertou o alvo. O público entendeu o essencial: os corruptos estão reagindo.

E é para impedi-lo e mostrar que os tempos são outros que manifestações como a de amanhã devem ocorrer com mais frequência e intensidade. Pode não se chegar à desobediência civil, mas a desordem já se esboça e reclama uma palavra de orientação da autoridade maior do país, o presidente da República – que, no entanto, integra o bloco dos que estão sendo exorcizados.

Daí, talvez, o seu silêncio.

Inesquecível


Ukulele Orchestra of Great Britain, música de Enio Morricone

A nova força política


Há uma mudança radical ainda não digerida pela classe política. A democracia representativa deve se adequar ao fato de o povo fiscalizar e cobrar o Congresso pelo Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp. Essa
força revelou-se novamente esta semana, fazendo o Senado rejeitar, por pressão social, a urgência urdida por Renan Calheiros para votação do desvirtuado projeto das medidas contra a corrupção.
São novos tempos
Miguel Reale Júnior

O último vestígio da Guerra Fria

O século 20 foi tempo de paixões fanáticas. Na política, exacerbados líderes, guias, chefes, oráculos e deuses humanos reuniram em torno de si todas as paixões – do amor ao ódio, da esperança e da fé cega à decepção e ao engano.

Fidel Castro foi um desses homens-deuses que reuniram todas as paixões. Cega, a paixão independe da razão e da realidade. Na política, por exemplo, nasce de ideias, mas se torna impermeável à própria ideia-mãe ao se transformar em fanática fantasia construída no inconsciente, fora da realidade.

Por isso Fidel só se define por meio das paixões que sua figura e seus atos transmitiram – amor e obediência, por um lado; ódio e irrestrito desdém, por outro. Libertador e déspota, ao mesmo tempo.

Fidel morte ceu inferno deus diabo Cuba eua usa socialismo comunismo revolucao educacao saude guerrilha execucao

Com sua morte, o século 20 recém se apaga e sepulta a guerra fria, da qual ele era o último vestígio. Sim, pois sem o confronto entre EUA e União Soviética os guerrilheiros de Fidel não seriam considerados “ameaça” a Washington só por terem tomado o poder a 150 quilômetros de Miami. Após derrubar a tirania em Cuba, Fidel fora recebido no Capitólio, na capital dos EUA, e aclamado como “herói”. A paranoia gerada pela guerra fria mudou o olhar a partir do momento em que o novo governo realizou a reforma agrária. Era velha promessa dos “barbudos” guerrilheiros, mas afetava a United Fruit. A Casa Branca preocupou-se, então, com mais “um problema”, além de se sobrepor ao avanço tecnológico-militar e espacial soviético.

E veio o embargo a Cuba. Em 3 de janeiro de 1961, quando o presidente Dwight Eisenhower (17 dias antes da posse de John Kennedy) rompeu relações diplomáticas, Cuba ainda não era satélite e joguete da União Soviética. Nem em abril, quando 1.500 cubanos armados e treinados pela CIA invadiram a ilha e foram derrotados. Num mundo dividido em “dois blocos”, a eventualidade de nova invasão acabou fazendo com que dias depois, em 1.º de maio, Fidel proclamasse Cuba como “Estado socialista”. Até Moscou se surpreendeu.

Pequena ilha com menos da metade da superfície de São Paulo, Cuba fora, sempre, “pátio de despejo” dos EUA. A máfia controlava a prostituição e cassinos, toda a economia estava em mãos de empresas americanas.

E Fidel entregou-se a Moscou como uma virgem adolescente nos braços do namorado proxeneta. Em parte, isso talvez lhe soasse como vingança: na juventude ele tentara ser ator em Hollywood e fez “pontas” em três filmes (Escola de Sereias, Bathing Beauty e Holiday in Mexico), mas voltou a Cuba. Passou à política, foi preso e depois, pelas armas, triunfou.

A sedução dos discursos e da fala foi o que nele ficou da frustração de ser astro de cinema. Fidel conhecia seu poder histriônico. Em 1990, quando veio ao Brasil para a posse de Collor, eu o acompanhei (como jornalista) num domingo por vários lugares de São Paulo. Só não entrei no almoço que Lula lhe ofereceu em São Bernardo. Ele vestia farda de gala, com galões dourados e gravata e correu ao hotel para trocar de roupa e envergar a túnica verde-oliva de guerrilheiro, sem gravata, para a entrevista coletiva e, logo, um encontro com intelectuais no ginásio do Ibirapuera.

Perguntei-lhe sobre os problemas e penúrias internas, sobre as “discordâncias” e prisões. Na era Gorbachev, a ajuda econômica soviética tinha diminuído e Cuba se preparava para a escassez do “período especial”, mas a resposta foi taxativa: não havia nenhum problema de qualquer ordem em nenhum setor, nem existiam presos políticos. E enumerou longamente os progressos e conquistas na educação e na medicina, com que enfrentavam o bloqueio dos EUA. Voz e gestos expressavam um otimismo tal que todos se espantaram com a imprópria pergunta...

Meses antes tinham sido fuzilados o general Arnaldo Ochoa e o coronel Tony la Guardia, comandantes das tropas cubanas que (nos anos 1970) repeliram a invasão de Angola pela racista África do Sul, abrindo caminho ao fim do apartheid. Ochoa (que era tão popular quanto Fidel) foi acusado de permitir que o narcotráfico colombiano reabastecesse em Cuba os aviões para chegar aos EUA, algo que ninguém na pequena ilha faria sem consentimento superior. Nem García Márquez, recém-laureado com o Nobel e morando em Cuba, conseguiu que seu amigo Fidel abrandasse a pena.

Em 1993, na reunião dos chefes de Estado ibero-americanos na Bahia, o presidente Itamar Franco e o conservador governador Antônio Carlos Magalhães se fascinaram com o que ele dizia.

O romantismo que fez do século 20 um tempo de paixões explica que a pequena ilha tenha provocado tanta admiração e tanto respeito mundo afora. Aqueles jovens que saíram do México e dois anos depois, barbudos, derrotaram um exército convencional e uma ditadura sanguinária eram a versão moderna do pequeno Sansão bíblico contra o gigante Golias. Ou heróis reais de um romance de capa e espada.

Mas o poder é o poder de ter poder e dos cinco comandantes da guerrilha só os irmãos Castro sobreviveram no poder. Primeiro, o aviãozinho de Camilo Cienfuegos desapareceu no mar. Logo, Huber Matos, acusado de “tentar um golpe”, passou 20 anos preso. Depois, Che Guevara (em discordância com o domínio soviético) saiu de Cuba e se imolou na Bolívia.

Fidel foi um daqueles iluminados da História que talvez só os anos (ou nem os anos) escureçam. Mas tornou-se um iluminado que extraviou a própria luz e, na escuridão, confundiu os caminhos e se guiou por um mundo irreal gerado pela fantasia.

Foi vítima da guerra fria. Acreditou na “eterna União Soviética” e assimilou erros e desconfianças do stalinismo, em que “o inimigo é quem pensa diferente”. A grandeza coabitou com o despotismo e ele se transformou também em déspota. Num daqueles “déspotas iluminados”, ou “ilustrados”, que aparecem ao longo da História da humanidade, mas déspota, enfim.

Com ele morre o derradeiro vestígio da guerra fria que, por ironia, Donald Trump talvez queira fazer renascer.

Quem não pode ir a velório vive o próprio funeral

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Michel Temer decidiu render homenagens aos mortos de Chapecó. Bom! Acompanhado de Marcela, sua mulher, o presidente voará para a cidade catarinense neste sábado. Ótimo!! Após determinar o transporte dos mortos pela FAB, Temer deseja confortar os parentes. Extraordinário!!!

A coisa parecia caminhar bem. Até que… O setor de inteligência do governo farejou o risco de protestos. Temer foi aconselhado a evitar o velório. Com medo de vaias, concordou. Deve cumprimentar os parentes no aeroporto, em cerimônia a ser realizada após o desembarque dos corpos. Se é assim, melhor ficar em casa.

O aeroporto esvazia a morte do seu sentido dramático. Os defuntos estarão fora do seu ambiente natural. Prevê-se uma solenidade de distribuição póstuma de medalhas. Os parentes serão constrangidos a trocar a espontaneidade da dor por uma máscara cerimoniosa. Um desastre!

Pai do zagueiro Filipe, Osmar Machado declarou: “Eu não preciso do cumprimento dele no aeroporto. Se ele tem dignidade e vergonha na cara, que venha aqui [no velório a ser realizado no estádio municipal] cumprimentar as pessoas.''

Temer talvez devesse ouvir menos seus assessores. Há risco de protestos em Chapecó? Pior para os organizadores, que desrespeitam o luto alheio. No mais, resta constatar: um presidente da República que não pode frequentar um velório talvez esteja vivendo seu próprio funeral. Em política, quando o vivo é pouco militante muitos têm vontade de lhe enviar coroas de flores.

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Jaewoon U,

Ministério de Trump é clube de bilionários

Nunca antes na história dos Estados Unidos houve tantos bilionários reunidos num gabinete ministerial. O próprio futuro presidente americano, Donald Trump, com sua fortuna estimada pela Forbes em aproximadamente 3,7 bilhões de dólares, sequer chega a ser o mais rico do governo que deve controlar o destino do país a partir de 20 de janeiro de 2017.

À frente do Ministério da Educação deverá estar Betsy DeVos, cuja fortuna familiar alcança 5,1 bilhões de dólares; o futuro ministro da Economia, Wilbur Ross, possui 2,9 bilhões de dólares, seu vice, Todd Ricketts, é igualmente bilionário. E também a família da futura ministra dos Transportes, Elaine Chao, possui bilhões de dólares.

Caso Harold Hamm se torne mesmo ministro da Energia, mais 15 bilhões de dólares se juntariam ao grupo. Steve Mnuchin, banqueiro da Goldman Sachs escolhido por Trump como ministro das Finanças, parece comparativamente pobre, com seus 40 milhões de dólares.

Dizemos ter acabado com a monarquia e estabelecido uma democracia....porra nenhuma!:

Riqueza não é algo condenável – certamente não no sistema político americano, onde a campanha para uma cadeira no Senado custa vários milhões de dólares. Com essas indicações, contudo, Trump atrai um grande problema: sua credibilidade.

Durante os meses de campanha eleitoral ele prometeu a seus seguidores que, caso eleito, iria secar o pântano em Washington. Essa promessa populista lhe deu a maioria dos votos das classes brancas menos favorecidas. Até mesmo para alguns democratas, ele se tornou interessante com tais promessas, que o colocavam na mesma linha que Bernie Sanders, que se classifica como um socialista.

Mas precisamente para esse eleitorado deve ser difícil compreender os candidatos ao gabinete de Trump – todos eles pertencentes à classe mais alta da Costa Leste americana, cuja supremacia Trump prometeu encerrar. Assim, não é de admirar que especialmente os democratas castiguem o presidente eleito, lembrando-o de suas promessas eleitorais, agora, antes mesmo de ele tomar posse.

Trump e seus defensores tentam rebater, alegando tratar-se, quase exclusivamente, de gente estranha à classe política e, portanto, com uma visão melhor do que deve ser mudado na capital. Além disso, por causa de sua riqueza, eles não correriam risco de ser venais, já tendo provado, através da aquisição da fortuna, que são "vencedores".

Entretanto é de se duvidar que tal gabinete de bilionários e milionários saiba como os americanos de classe média estão vivendo. Embora já tenha sido anunciada uma redução do imposto de renda que beneficiará a classe média trabalhadora, os ricos naturalmente também se beneficiam enormemente.

Caso nos próximos anos impere uma política que alivia os ricos, sem que as classes média e baixa sintam melhorias, crescerá a massa de desapontados e furiosos, cujos sentimentos Trump soube usar tão brilhantemente durante a campanha eleitoral. Além disso, seria uma vitória do capitalismo sobre a democracia.
Oliver Kühn, Frankfurter Allgemeine Zeitung

STF, da frustração à depreciação


Quando acontece de modo singular, tem-se a frustração. Quando se repete, a irritação. Quando se torna frequente, vem a depreciação. Lembremos. Ao concluir-se a votação do impeachment da presidente Dilma, a senadora Katia Abreu apresentou aquele famoso destaque propondo o fatiamento da pena para que o impeachment não acarretasse perda dos direitos políticos. Tratava-se de um arreglo tramado em sigilo, durante reuniões de elevada hierarquia, que acabou se transformando em decisão política com a qualidade jurídica de caderno de armazém. Quem discursou em favor da medida? Renan Calheiros, que justificou a providência com o consistente argumento segundo o qual aplicar o impeachment e sua consequência natural seria dar um coice depois da queda. E quem proporcionou aval jurídico àquela decisão (dizendo que não estava a fazer isso, como soe acontecer no STF)? O ministro Ricardo Lewandowski, que presidia o Senado transformado em tribunal. Ele argumentou que se aceita a dupla punição, a presidente estaria inabilitada até para ser merendeira de escola. E Dilma, que perdeu o mandato por crime de responsabilidade, pode, em tese, concorrer novamente em 2018... Frustração!


Renan cigana futuro virou reu toffoli pediu vistas do processo

Passaram-se 90 dias. Ontem pela manhã, no plenário do Senado, ocorreu uma sessão temática sobre o tema Abuso de Autoridade, objeto da controversa emenda ao projeto das medidas contra corrupção. Entre os convidados de Renan Calheiros, para um previsível antagonismo, o ministro Gilmar Mendes e o juiz Sérgio Moro. Ante um magistrado sereno e consistente em sua exposição, o ministro partiu para a arrogância e menosprezou os dois milhões de assinaturas populares às Dez Medidas contra a Corrupção. Disse: "Aprendi em São Paulo que quem contrata o sindicato dos camelôs, em uma semana consegue 300 mil assinaturas". Ficou visível ao lado de quem Gilmar Mendes estava, dois dias após as indecorosas deliberações do dia 30 na Câmara e o empenho de Renan em aprová-las no Senado horas mais tarde. Irritação!

Logo após a sessão temática, o STF se reuniu para deliberar sobre o pedido de abertura de ação penal contra Renan Calheiros. O MPF apontava evidências de cometimento de dois crimes, mas um deles ganhou o almejado prêmio da prescrição por decurso de prazo, tão desejado quanto frequente. Contudo, para desgosto de três ministros, a acusação de peculato prosperou e o seguimento da ação penal foi aprovado por 8 a 3. Quais três? Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Pois é.

Na sequência da mesma sessão, julgava-se, com seis votos favoráveis e nenhum contrário, a ação movida pela Rede sobre o impedimento de que réu em ação penal possa ocupar cargo na linha sucessória da Presidência da República (situação em que ficara Renan Calheiros pela decisão anterior). Com seis votos favoráveis, a questão já estava resolvida e Renan Calheiros podia começar a esvaziar as gavetas. A menos que...? A menos que Toffoli fizesse o que fez tão logo lhe coube falar, ou seja, pedisse vistas e levasse o processo para engavetá-lo sem prazo para devolver a seus pares. Depreciação!

A nação quer ir para um lado e o STF, em total dissintonia, vai para outro. É a isso que nos conduz um quarto de século de indicações autorrotuladas progressistas. Temos um STF que não conheceu formação de quadrilha no mensalão. Temos um STF onde não há uma única, singular e solitária voz que expresse convicções liberais ou conservadoras. Pode parecer amargo este texto, mas quanto mais complexos os sentimentos e mais difícil a tarefa de expressá-los, mais necessário se torna fazê-lo.

Percival Puggina

Os nossos escravos

Nos idos de 2010 escrevi as linhas abaixo:

Há poucos dias todo o planeta acompanhou, comovido, o resgate dos 33 mineiros chilenos que quase perderam a vida tentando ganhá-la, extraindo minérios centenas de metros sob o solo.

Praticamente na mesma data quatro outros mineiros foram vítimas de um acidente no Equador – acabaram presos debaixo da terra, a 150 metros da superfície. Na Colômbia, também naqueles dias, chorava-se a morte de quatro mineiros que trabalhavam em uma galeria 60 metros debaixo da terra. Os corpos de dois deles sequer resgatados foram – ficaram por lá mesmo.


Poucas horas depois, do outro lado do mundo, uma explosão em uma mina de carvão lá da China vitimou outros 276 mineiros. 239 deles conseguiram escapar e chegar à superfície, mas 37 outros não tiveram a mesma sorte. Naquele mesmo país, há alguns meses, 115 mineiros ficaram presos no fundo de uma mina, somente tendo sido resgatados uma semana depois. Alguns deles chegaram a comer carvão, na busca desesperada pela sobrevivência.

Diante de tantos e tão frequentes acidentes, decidi pesquisar um pouco mais o assunto. Constatei, chocado, que para cada um dos 33 mineiros chilenos resgatados, cerca de 400 outros morrerão ainda neste ano. Estima-se que a cada ano morram 12.000 mineiros pelas galerias escuras e insalubres das minas.

É assim que minérios os mais preciosos, arrancados das entranhas do planeta ao custo do sangue de tantos semelhantes nossos, vão sendo vendidos a preço de banana para sustentar o que orgulhosamente chamamos de “economia de mercado”. A quem duvidar de minhas palavras, sugiro comparar o preço de uma tonelada de minério com o de uma única barra de chocolate suíço, ou o de um barril de petróleo com o de um simples litro de uísque escocês”.

Pois é. Uns quatro anos se passaram. Lembrei-me dessas linhas ao ler, semana passada, que 282 semelhantes nossos morreram em uma mina na Turquia. Olho para minha mesa, e vejo um telefone celular. Quantos vidas terá ele custado? Vejo, pela janela, um avião passando. Quantos foram para baixo da terra para que ele pudesse alçar voo acima dela.

Talvez, nestes portais do século XXI, nossa tão avançada civilização devesse meditar sobre as palavras do Marquês de Maricá: “a escravidão avilta o escravo e barbariza o senhor”.

Pedro Valls Feu Rosa