terça-feira, 2 de dezembro de 2025
Mito?
A imagem do ex-presidente Bolsonaro, em vídeo gravado sobre a violação da tornozeleira eletrônica, é devastadora, fazendo desmoronar sua figura pública. No exercício da Presidência, transmitia a mensagem da masculinidade em motociatas que atravessavam o País, apresentando-se, em casaco de couro, como um mito imbatível, capaz de superar toda e qualquer adversidade. Começou a fraquejar quando a tentativa de golpe se mostrou inviável, dada a intervenção do Alto Comando do Exército, recluindo-se cada vez mais. Após ter se tornado réu, recolheu-se à prisão domiciliar, culminando nessa cena patética de um homem que confessa, abatido, candidamente, para uma agente penitenciária, que violou a tornozeleira eletrônica com um ferro de solda. Ela, inclusive, se dirige a ele como “seu Jair”, sem nenhuma consideração para com sua prerrogativa presidencial.
Mostra essa cena um homem alquebrado, que em nada corresponde à imagem que antanho transmitia. Enseja, isso sim, compaixão. Do ponto de vista estritamente legal, o ministro Alexandre de Moraes tem razão em decretar a sua prisão preventiva, porém poderia ter levado em conta circunstâncias atenuantes, como um eventual surto produzido pela mistura indevida de suas medicações. Seu comportamento não mostra alguém que estivesse arquitetando uma fuga graças a uma vigília preparada por seu filho, 19 horas depois! Não faz sentido. Se há crítica à vigília religiosa, tanto maior deveria ter sido a precaução com o presidente Lula, que teve diariamente vigílias ideológicas, sem nenhuma proibição. O bom senso recomendaria que Bolsonaro permanecesse por suas condições psicológicas e de saúde em prisão domiciliar.
No entanto, desde uma perspectiva política, a questão é outra. Tendo ruído a sua imagem e considerando as condições de sua prisão, incomunicável, não está nem estará em posição de exercer nenhuma liderança. Diria mesmo que não tem nem perfil para isso. Ele se comporta como uma pessoa normal, não como um líder político propriamente dito. Façamos uma comparação histórica, desprovida de juízo moral.
Hitler cresceu na prisão e soube enfrentá-la. Mussolini, em sua ascensão ao poder, superou adversidades. Perto de nós, Lula fez face à prisão com dignidade, com apoio de seus seguidores, cresceu nas dependências da Polícia Federal e virou novamente presidente da República. Bolsonaro, por sua vez, contrasta com essas figuras. Tem uma aversão, aliás justificada, pela prisão, apesar de eventuais ganhos políticos de que poderia usufruir.
O problema que se coloca, então, é o de como o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder. O deputado Eduardo Bolsonaro, de seu autoexílio, também patético, declarou, a propósito da escolha de seu irmão Carlos Bolsonaro como candidato a senador por
Santa Catarina, que o bolsonarismo é um “movimento político”. O caso em pauta significa uma intervenção direta nesse Estado, contrariando o governador e lançando impregnações contra duas deputadas, uma federal, Carol de Toni, e outra estadual, Ana Campagnolo. Duas bolsonaristas de estrita observância, que ousaram dizer não a uma tal imposição. Ainda segundo o deputado, deveriam simplesmente obedecer ao “movimento”, dirigido doravante pelo clã familiar, embora não se saiba ao certo quem dirige o clã na atual situação.
Por que, porém, o uso da palavra “movimento”? Significa uma estrutura hierárquica que não admite contestações, sendo que ordens devem ser simplesmente cumpridas. A relação é vertical. No caso de um partido político, diferentemente, há sempre níveis de horizontalidade, com discussões internas, diferentes interesses políticos, líderes divergindo entre si, sem que haja uma estrutura monolítica. Não é o caso de “movimentos”, a exemplo do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, que não admitiam nenhum tipo de crítica interna. Tal tipo de estrutura encontra-se da mesma forma em organizações mafiosas, nas quais a ordem do “padrinho” é incondicionalmente seguida, sob risco de violência física. Basta rever a trilogia Poderoso Chefão.
Acontece, contudo, que a pretensão do deputado Eduardo Bolsonaro é nada mais do que uma pretensão com o intuito de enquadrar o bolsonarismo órfão. Seu outro irmão, o senador Flávio Bolsonaro, dias depois, referendou a sua fala ao declarar que, doravante, seria ele o porta-voz do pai, encarregado de transmitir suas orientações aos diferentes setores estaduais do “movimento”, que deveriam evidentemente ser obedecidas. Ora, imediatamente depois, seu irmão o contestou dizendo que ele não seria o porta-voz exclusivo, visto que ele assumiria igualmente essa função. O clã expõe a disputa interna, rompendo com a ideia mesma de “movimento”, a supor que seus membros estejam dispostos a segui-los, conforme ordens desprovidas de liderança. Isso para não dizer de aliados que nenhum compromisso têm com esse projeto político.
Qual pode bem ser o futuro do bolsonarismo sem líder, submisso às incertezas de um clã que exige apenas obediência incondicional?
Mostra essa cena um homem alquebrado, que em nada corresponde à imagem que antanho transmitia. Enseja, isso sim, compaixão. Do ponto de vista estritamente legal, o ministro Alexandre de Moraes tem razão em decretar a sua prisão preventiva, porém poderia ter levado em conta circunstâncias atenuantes, como um eventual surto produzido pela mistura indevida de suas medicações. Seu comportamento não mostra alguém que estivesse arquitetando uma fuga graças a uma vigília preparada por seu filho, 19 horas depois! Não faz sentido. Se há crítica à vigília religiosa, tanto maior deveria ter sido a precaução com o presidente Lula, que teve diariamente vigílias ideológicas, sem nenhuma proibição. O bom senso recomendaria que Bolsonaro permanecesse por suas condições psicológicas e de saúde em prisão domiciliar.
No entanto, desde uma perspectiva política, a questão é outra. Tendo ruído a sua imagem e considerando as condições de sua prisão, incomunicável, não está nem estará em posição de exercer nenhuma liderança. Diria mesmo que não tem nem perfil para isso. Ele se comporta como uma pessoa normal, não como um líder político propriamente dito. Façamos uma comparação histórica, desprovida de juízo moral.
Hitler cresceu na prisão e soube enfrentá-la. Mussolini, em sua ascensão ao poder, superou adversidades. Perto de nós, Lula fez face à prisão com dignidade, com apoio de seus seguidores, cresceu nas dependências da Polícia Federal e virou novamente presidente da República. Bolsonaro, por sua vez, contrasta com essas figuras. Tem uma aversão, aliás justificada, pela prisão, apesar de eventuais ganhos políticos de que poderia usufruir.
O problema que se coloca, então, é o de como o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder. O deputado Eduardo Bolsonaro, de seu autoexílio, também patético, declarou, a propósito da escolha de seu irmão Carlos Bolsonaro como candidato a senador por
Santa Catarina, que o bolsonarismo é um “movimento político”. O caso em pauta significa uma intervenção direta nesse Estado, contrariando o governador e lançando impregnações contra duas deputadas, uma federal, Carol de Toni, e outra estadual, Ana Campagnolo. Duas bolsonaristas de estrita observância, que ousaram dizer não a uma tal imposição. Ainda segundo o deputado, deveriam simplesmente obedecer ao “movimento”, dirigido doravante pelo clã familiar, embora não se saiba ao certo quem dirige o clã na atual situação.
Por que, porém, o uso da palavra “movimento”? Significa uma estrutura hierárquica que não admite contestações, sendo que ordens devem ser simplesmente cumpridas. A relação é vertical. No caso de um partido político, diferentemente, há sempre níveis de horizontalidade, com discussões internas, diferentes interesses políticos, líderes divergindo entre si, sem que haja uma estrutura monolítica. Não é o caso de “movimentos”, a exemplo do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, que não admitiam nenhum tipo de crítica interna. Tal tipo de estrutura encontra-se da mesma forma em organizações mafiosas, nas quais a ordem do “padrinho” é incondicionalmente seguida, sob risco de violência física. Basta rever a trilogia Poderoso Chefão.
Acontece, contudo, que a pretensão do deputado Eduardo Bolsonaro é nada mais do que uma pretensão com o intuito de enquadrar o bolsonarismo órfão. Seu outro irmão, o senador Flávio Bolsonaro, dias depois, referendou a sua fala ao declarar que, doravante, seria ele o porta-voz do pai, encarregado de transmitir suas orientações aos diferentes setores estaduais do “movimento”, que deveriam evidentemente ser obedecidas. Ora, imediatamente depois, seu irmão o contestou dizendo que ele não seria o porta-voz exclusivo, visto que ele assumiria igualmente essa função. O clã expõe a disputa interna, rompendo com a ideia mesma de “movimento”, a supor que seus membros estejam dispostos a segui-los, conforme ordens desprovidas de liderança. Isso para não dizer de aliados que nenhum compromisso têm com esse projeto político.
Qual pode bem ser o futuro do bolsonarismo sem líder, submisso às incertezas de um clã que exige apenas obediência incondicional?
Tornozeleira fala
Quando escrevi aqui que Bolsonaro parecia ouvir vozes, leitores me condenaram. Não direi felizmente, mas agora ele mesmo confessou o fato ao tentar romper a tornozeleira. Acreditou que o aparelho emitisse mensagens — talvez alienígenas. Dá para entender, enfim, a lógica por trás de seus seguidores e de hábitos tão estranhos quanto ajoelhar-se e rezar para um pneu.
Nesse cenário existem dois atores — o ex-presidente e seus simpatizantes radicais. A mão e a luva. O político não existiria sem eles. Suas parvoíces, insultos e preconceitos encontram eco — e voto — numa parcela da população.
O capitão deu rosto ao “tiozão do zap”, o personagem doméstico que repassa fake news e tem opinião até sobre embargos infringentes. O tiozão pode ser o tio, o cunhado ou aquele parente que nunca se interessou por política. Claro que é um comportamento importante, porque traz ao debate público personagens ausentes. Mobiliza.
Desde a vizinhança do golpe de 1964, não se via a movimentação de massas da direita. Passeatas como a Marcha da Família com Deus deixaram de ocorrer até o bolsonarismo. Apenas o campo progressista conseguia reunir multidões — principalmente por ser oposição aos militares. O delírio do líder, que parecia fraqueza, mostrou-se a força motriz para reativar toda uma tradição política adormecida. O “tiozão do zap” ouviu o chamado e foi para a rua.
Com a tentativa do golpe de 2022 desmascarada e condenada, fica um duplo legado. De um lado, o eleitor escolheu mal seu representante. De outro, a democracia mostrou vivacidade. Não foi a primeira vez — em ambos os casos. Nestes 40 anos de vida democrática, passamos por dois impeachments, quatro presidentes presos, sob diferentes acusações, e agora há dois deputados federais foragidos da Justiça. Além de um terceiro boquirroto já à beira de ganhar sua pena. O saldo poderia ser negativo caso o golpe tivesse ocorrido e não houvesse a apuração dos crimes. Nada disso aconteceu. As instituições mostraram-se em atilado estado de prontidão.
Entre os simpatizantes bolsonaristas, a reação foi tímida — por certo envergonhados pelo ato humilhante de meter ferro na tornozeleira. O ex-presidente não criou o preconceito ou a paranoia, mas deu a eles licença para sair do armário e um idioma comum. Ele é menos um líder e mais um sintoma que se tornou catalisador. Muitos ouvem vozes. São sintomas da democracia. Até escolher mal faz parte. E o Brasil escolheu mal repetidas vezes — não só com Bolsonaro.
Se existe uma força institucional que barrou o golpe de direita, há também uma inércia ideológica à esquerda que impede mudanças profundas. Ambos os extremos revelam fanatismos distintos: um reza para pneus, outro para estatais.
Já na redemocratização a população colocou na Presidência a direita, a extrema direita, a centro-esquerda e a esquerda. São sinais de um arcabouço maduro. Houve prevalência do petismo em razão de um líder carismático. E da infelicidade de parte do eleitorado se identificar com ideias como o estatismo e o patrimonialismo lulista. Num país onde se reza para pneus, talvez não seja surpresa que se reze também por estatais deficitárias.
Lula e seus simpatizantes são antiquados e ainda ajoelham pela cartilha econômica do velho partidão de guerra. O empreendedorismo digital não contaminou a maioria da sociedade, principalmente a intelectualidade. O choque de capitalismo defendido por Mário Covas em 1990 (!) encontrou eco apenas no governo FH. Mesmo assim, o campo petista bombardeou as privatizações. Telefonia, bancos estaduais — tudo foi atacado. Agora, olhamos para a lambança do BRB de Ibaneis e de novo lembramos como a política faz mal ao sistema financeiro.
Embora as instituições mostrem vigor — mesmo acossado, o BC liquidou o Master —, o aparelho eleitoral parece cada vez mais corrompido e distorcido. Culpa da classe política, interessada na manutenção de um mecanismo incapaz de representar a população brasileira. É um modelo pensado para afastar a sociedade do bom debate público.
E assim seguimos, um país que consegue prender seus presidentes, mas é incapaz de se livrar de seus piores vícios. As mesmas instituições que silenciam as “vozes” da tornozeleira parecem impotentes para calar a algazarra de um sistema político que grita por uma reforma sempre sufocada. O desafio não é mais salvar a democracia de um colapso — ela já provou sua força. É salvá-la de seu próprio cansaço.
Nesse cenário existem dois atores — o ex-presidente e seus simpatizantes radicais. A mão e a luva. O político não existiria sem eles. Suas parvoíces, insultos e preconceitos encontram eco — e voto — numa parcela da população.
O capitão deu rosto ao “tiozão do zap”, o personagem doméstico que repassa fake news e tem opinião até sobre embargos infringentes. O tiozão pode ser o tio, o cunhado ou aquele parente que nunca se interessou por política. Claro que é um comportamento importante, porque traz ao debate público personagens ausentes. Mobiliza.
Desde a vizinhança do golpe de 1964, não se via a movimentação de massas da direita. Passeatas como a Marcha da Família com Deus deixaram de ocorrer até o bolsonarismo. Apenas o campo progressista conseguia reunir multidões — principalmente por ser oposição aos militares. O delírio do líder, que parecia fraqueza, mostrou-se a força motriz para reativar toda uma tradição política adormecida. O “tiozão do zap” ouviu o chamado e foi para a rua.
Com a tentativa do golpe de 2022 desmascarada e condenada, fica um duplo legado. De um lado, o eleitor escolheu mal seu representante. De outro, a democracia mostrou vivacidade. Não foi a primeira vez — em ambos os casos. Nestes 40 anos de vida democrática, passamos por dois impeachments, quatro presidentes presos, sob diferentes acusações, e agora há dois deputados federais foragidos da Justiça. Além de um terceiro boquirroto já à beira de ganhar sua pena. O saldo poderia ser negativo caso o golpe tivesse ocorrido e não houvesse a apuração dos crimes. Nada disso aconteceu. As instituições mostraram-se em atilado estado de prontidão.
Entre os simpatizantes bolsonaristas, a reação foi tímida — por certo envergonhados pelo ato humilhante de meter ferro na tornozeleira. O ex-presidente não criou o preconceito ou a paranoia, mas deu a eles licença para sair do armário e um idioma comum. Ele é menos um líder e mais um sintoma que se tornou catalisador. Muitos ouvem vozes. São sintomas da democracia. Até escolher mal faz parte. E o Brasil escolheu mal repetidas vezes — não só com Bolsonaro.
Se existe uma força institucional que barrou o golpe de direita, há também uma inércia ideológica à esquerda que impede mudanças profundas. Ambos os extremos revelam fanatismos distintos: um reza para pneus, outro para estatais.
Já na redemocratização a população colocou na Presidência a direita, a extrema direita, a centro-esquerda e a esquerda. São sinais de um arcabouço maduro. Houve prevalência do petismo em razão de um líder carismático. E da infelicidade de parte do eleitorado se identificar com ideias como o estatismo e o patrimonialismo lulista. Num país onde se reza para pneus, talvez não seja surpresa que se reze também por estatais deficitárias.
Lula e seus simpatizantes são antiquados e ainda ajoelham pela cartilha econômica do velho partidão de guerra. O empreendedorismo digital não contaminou a maioria da sociedade, principalmente a intelectualidade. O choque de capitalismo defendido por Mário Covas em 1990 (!) encontrou eco apenas no governo FH. Mesmo assim, o campo petista bombardeou as privatizações. Telefonia, bancos estaduais — tudo foi atacado. Agora, olhamos para a lambança do BRB de Ibaneis e de novo lembramos como a política faz mal ao sistema financeiro.
Embora as instituições mostrem vigor — mesmo acossado, o BC liquidou o Master —, o aparelho eleitoral parece cada vez mais corrompido e distorcido. Culpa da classe política, interessada na manutenção de um mecanismo incapaz de representar a população brasileira. É um modelo pensado para afastar a sociedade do bom debate público.
E assim seguimos, um país que consegue prender seus presidentes, mas é incapaz de se livrar de seus piores vícios. As mesmas instituições que silenciam as “vozes” da tornozeleira parecem impotentes para calar a algazarra de um sistema político que grita por uma reforma sempre sufocada. O desafio não é mais salvar a democracia de um colapso — ela já provou sua força. É salvá-la de seu próprio cansaço.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil
“Se todos quisermos, poderemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-la”
Joaquim José da Silva Xavier
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil uma vez que apresentamos quase quarenta e cinco mil assassinatos por ano.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando os dados apontam que existem cerca de trinta e cinco mil acidentes fatais de trânsito anualmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as 20 cidades mais perigosas do mundo, duas são brasileiras, a saber, Rio de Janeiro e São Paulo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando duplicamos, em 15 anos, se tanto, o número de pessoas morando em favelas, hoje em torno de 16 milhões de brasileiros.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando as autoridades que deveriam zelar pela Educação das nossas crianças e dos nossos jovens consideram que seja possível passar de ano nas escolas públicas em determinados estados da Federação tendo o aluno levado bomba em até seis matérias.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a mídia, com frequência cada vez mais assustadora, enaltece artistas e criadores - se aceitamos esses termos - de qualidade um tanto quanto duvidosa, reduzindo a atividade cultural a uma mera questão de celebridade.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a redemocratização política, que suscitou tantas esperanças em 1985, acabou resultando em quatro presidentes da República presos, em dois deles sacados do poder por impeachment e em outro que golpeou a Constituição Cidadã de 1988 para se reeleger aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema financeiro produz um escândalo de bilhões e bilhões de reais quase que mensalmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema de saúde revela que cerca de meio milhão de cidadãos são afastados, anualmente, das atividades de trabalho, por motivos de ordem mental.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando cinco milhões de pessoas deixam o país, legalmente, em busca de outra vida no exterior.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil para registrar, em apenas uma década, quase sete milhões de acidentes de trabalho.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, em apenas seis anos (isto é, entre 2019 e 2024) desmatamos uma área de quase dois milhões de hectares. Para efeito de comparação, o Nordeste inteiro possui cerca de um milhão e meio de hectares.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as dez cidades mais barulhentas do mundo, uma delas é brasileira, São Paulo, a sétima no ranking.
Por tudo isso eu pergunto, já que não adianta tapar o sol com a peneira: o que está acontecendo com o Brasil? Eu gostaria de saber.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil uma vez que apresentamos quase quarenta e cinco mil assassinatos por ano.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando os dados apontam que existem cerca de trinta e cinco mil acidentes fatais de trânsito anualmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as 20 cidades mais perigosas do mundo, duas são brasileiras, a saber, Rio de Janeiro e São Paulo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando duplicamos, em 15 anos, se tanto, o número de pessoas morando em favelas, hoje em torno de 16 milhões de brasileiros.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando as autoridades que deveriam zelar pela Educação das nossas crianças e dos nossos jovens consideram que seja possível passar de ano nas escolas públicas em determinados estados da Federação tendo o aluno levado bomba em até seis matérias.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a mídia, com frequência cada vez mais assustadora, enaltece artistas e criadores - se aceitamos esses termos - de qualidade um tanto quanto duvidosa, reduzindo a atividade cultural a uma mera questão de celebridade.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a redemocratização política, que suscitou tantas esperanças em 1985, acabou resultando em quatro presidentes da República presos, em dois deles sacados do poder por impeachment e em outro que golpeou a Constituição Cidadã de 1988 para se reeleger aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema financeiro produz um escândalo de bilhões e bilhões de reais quase que mensalmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema de saúde revela que cerca de meio milhão de cidadãos são afastados, anualmente, das atividades de trabalho, por motivos de ordem mental.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando cinco milhões de pessoas deixam o país, legalmente, em busca de outra vida no exterior.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil para registrar, em apenas uma década, quase sete milhões de acidentes de trabalho.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, em apenas seis anos (isto é, entre 2019 e 2024) desmatamos uma área de quase dois milhões de hectares. Para efeito de comparação, o Nordeste inteiro possui cerca de um milhão e meio de hectares.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as dez cidades mais barulhentas do mundo, uma delas é brasileira, São Paulo, a sétima no ranking.
Por tudo isso eu pergunto, já que não adianta tapar o sol com a peneira: o que está acontecendo com o Brasil? Eu gostaria de saber.
A geração Z vive pior do que os pais?
Postagens que ironizam o comportamento dos jovens da geração Z têm se acumulado nas redes sociais, conforme essa faixa, formada por quem nasceu entre 1997 e 2010, tem chegado à idade adulta e ingressado no mercado de trabalho. Não é incomum que a convivência com indivíduos de outras faixas etárias leve a um choque geracional.
Mas a geração Z, que no Brasil soma 48,8 milhões de pessoas (23,2% da população), também cresceu em meio a instabilidades políticas, econômicas e sociais. Em 2008, o Brasil enfrentou uma recessão, em 2013 os protestos de junho alteraram as forças políticas no poder, culminando com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Depois, veio a pandemia de covid-19, somada à inflação.
Para a pesquisadora da FGV Social, Janaína Feijó, "essa geração tem sim uma dificuldade adicional na hora de adquirir bens e serviços, que são uma medida da qualidade de vida do indivíduo". Ela explica que nas últimas décadas o reajuste nos salários não acompanhou a alta no custo de vida.
Essas condições desfavoráveis contribuíram para moldar o comportamento dessa geração que é menos idealista e mais cautelosa em relação ao consumo. A consultoria McKinsey avaliou o comportamento da geração Z e aponta que esse grupo associa compra a uma expressão da própria autenticidade e valores pessoais. Esse grupo valoriza a fluidez, inclusive de gênero e crença, ao contrário das gerações anteriores.
Assim, compromissos de longo prazo, como a compra de imóvel ou a formação de uma família, são adiados tanto por conta das preferências pessoais quanto por causa de condições econômicas. "A geração Z busca por mais experiências, não necessariamente por manter ativos e eventualmente patrimônio, tal qual uma geração de 30, 40 anos atrás, que almejava conseguir a casa própria e um emprego com estabilidade", afirma o sócio da consultoria Delloite, Marcos Olliver.
O levantamento anual da Deloitte demonstrou as principais preocupações da geração Z no Brasil: custo de vida (34%), desemprego (25%), mudança climática (24%), saúde mental (22%) e segurança e criminalidade (18%).
Quando estavam na juventude, os integrantes das gerações X (1965 a 1980) e Y (1981 a 1996) também enfrentaram dificuldades: hiperinflação , confisco de poupança, mudança do regime da ditadura militar para a democracia, além de guerras e conflitos. No entanto, os jovens de hoje idealizam esse passado quando comparam com sua própria realidade.
No entanto, essa impressão ignora avanços dos quais os jovens atualmente usufruem: o nível de desemprego é o menor da série histórica (5,6%, segundo o IBGE) e a qualificação se tornou mais acessível (um terço dos alunos que terminam o ensino médio vão para a graduação). Houve ainda o aumento na proporção de mulheres e pessoas negras nas universidades e nas carreiras.
"Mas tudo isso fez com que a concorrência também aumentasse, e o jovem sentiu a pressão por se destacar", pondera Feijó. "Os jovens precisam ter habilidade socioemocionais exigidas pelos empregadores, mas por não ter experiência, não conseguem ter todos esses atributos e não conseguem entrar no mercado de trabalho de forma efetiva."
O estilo de vida também contribui para a sensação de piora nas condições gerais. Nos últimos 10 anos, o consumo de ultraprocessados aumentou 5,5% entre a população brasileira, segundo a Universidade de São Paulo (USP), 84% dos jovens são sedentários (IBGE) e 66% dos brasileiros têm dificuldade para dormir, de acordo com pesquisa publicada na revista Sleep Epidemiology. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que até 21% dos jovens de 13 a 29 anos se sentem solitários com frequência.
"Perdeu-se o convívio em espaços reais e as práticas coletivas, tínhamos vizinhanças mais ativas que ofereciam de diferentes formas uma rede de apoio mais sólida e com contornos mais delimitados", ressalta a psicóloga e professora da USP, Ana Barros. Ela diz que a soma desses fatores leva à deterioração da saúde mental.
Cerca de 40% das mulheres e 29% dos homens da geração Z afirmaram sofrer de depressão em 2024, entre os integrantes da geração X essa proporção foi de 32% e 25%, respectivamente, e na Y, de 38% e 31%. Os dados sobre brasileiros são da pesquisa World Mental Health Day, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O comprometimento do senso de comunidade também está relacionado ao uso das redes sociais. Enquanto nativa digital, a geração Z cresceu seguindo o ritmo dessas plataformas, que favorecem as conexões virtuais e o isolamento, e comprometem o desenvolvimento de habilidades sociais dos jovens enquanto amadurecem.
"A tecnologia mudou completamente as relações sociais, a forma como experimentamos e construímos nossa subjetividade e o contato com o outro. Hoje a subjetivação é feita na lógica da visibilidade e espelhamento imediatos", afirma a psicóloga Ana Barros. "Isso gera uma necessidade de validação externa muito instantânea, com uma pressão constante por corresponder a padrões e expectativas que levam a sentimentos de muita angústia e sensação de inadequação."
Apesar da piora de indicadores, o consultor Marcos Olliver aponta que a saúde mental se tornou uma prioridade, o que avalia como positivo. "Para as outras gerações, não havia tanto a preocupação com a questão de qualidade de vida ou de bem-estar". Cerca de 13% dos brasileiros fazem terapia e 15% tomam remédios para tratar questões psiquiátricas, aponta pesquisa da Vida LinkedIn. Para 41,6%, saúde mental é uma das prioridades.
Barros afirma que esse movimento é um ponto de virada importante. "Isso indica que apesar das pressões inéditas que os jovens enfrentam, eles também desenvolvem estratégias próprias da sua época, como o próprio uso das redes sociais para formar comunidades virtuais e compartilhar o que sentem."
Em nome desse bem-estar, eles priorizam a vida privada em relação ao trabalho, e estão menos dispostos a se submeter a condições exaustivas: 56,2% dos jovens almejam vagas com possibilidade de trabalho remoto e horários flexíveis, de acordo com levantamento da Infojobs. Outros 71,6% disseram que deixariam os cargos se o ambiente fosse tóxico ou o trabalho estiver desalinhado com seus valores.
A classificação em gerações não é um consenso científico. Uma vez que foca nas diferenças e não nas convergências entre gerações, essas categorias fomentam a ideia de que há um choque entre elas, e servem de material para memes, além de refletir o pensamento de uma classe média alta, e não do grupo como um todo.
Feijó assinala que pessoas com níveis de renda e educação diferentes, têm comportamentos distintos, mesmo dentro da mesma geração.
"Geralmente, a população preta e parda tem esses sonhos materiais muito mais latentes do que a classe mais de renda mais elevada, composta majoritariamente por brancos ou amarelos. Por isso, o sonho da casa própria ainda é comum entre os mais pobres, enquanto os mais ricos já conseguem vislumbrar outras oportunidades, como ter um negócio e investir. Então, os sonhos são diferentes, mas os desafios permanecem."
Mas a geração Z, que no Brasil soma 48,8 milhões de pessoas (23,2% da população), também cresceu em meio a instabilidades políticas, econômicas e sociais. Em 2008, o Brasil enfrentou uma recessão, em 2013 os protestos de junho alteraram as forças políticas no poder, culminando com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Depois, veio a pandemia de covid-19, somada à inflação.
Para a pesquisadora da FGV Social, Janaína Feijó, "essa geração tem sim uma dificuldade adicional na hora de adquirir bens e serviços, que são uma medida da qualidade de vida do indivíduo". Ela explica que nas últimas décadas o reajuste nos salários não acompanhou a alta no custo de vida.
Essas condições desfavoráveis contribuíram para moldar o comportamento dessa geração que é menos idealista e mais cautelosa em relação ao consumo. A consultoria McKinsey avaliou o comportamento da geração Z e aponta que esse grupo associa compra a uma expressão da própria autenticidade e valores pessoais. Esse grupo valoriza a fluidez, inclusive de gênero e crença, ao contrário das gerações anteriores.
Assim, compromissos de longo prazo, como a compra de imóvel ou a formação de uma família, são adiados tanto por conta das preferências pessoais quanto por causa de condições econômicas. "A geração Z busca por mais experiências, não necessariamente por manter ativos e eventualmente patrimônio, tal qual uma geração de 30, 40 anos atrás, que almejava conseguir a casa própria e um emprego com estabilidade", afirma o sócio da consultoria Delloite, Marcos Olliver.
O levantamento anual da Deloitte demonstrou as principais preocupações da geração Z no Brasil: custo de vida (34%), desemprego (25%), mudança climática (24%), saúde mental (22%) e segurança e criminalidade (18%).
Quando estavam na juventude, os integrantes das gerações X (1965 a 1980) e Y (1981 a 1996) também enfrentaram dificuldades: hiperinflação , confisco de poupança, mudança do regime da ditadura militar para a democracia, além de guerras e conflitos. No entanto, os jovens de hoje idealizam esse passado quando comparam com sua própria realidade.
No entanto, essa impressão ignora avanços dos quais os jovens atualmente usufruem: o nível de desemprego é o menor da série histórica (5,6%, segundo o IBGE) e a qualificação se tornou mais acessível (um terço dos alunos que terminam o ensino médio vão para a graduação). Houve ainda o aumento na proporção de mulheres e pessoas negras nas universidades e nas carreiras.
"Mas tudo isso fez com que a concorrência também aumentasse, e o jovem sentiu a pressão por se destacar", pondera Feijó. "Os jovens precisam ter habilidade socioemocionais exigidas pelos empregadores, mas por não ter experiência, não conseguem ter todos esses atributos e não conseguem entrar no mercado de trabalho de forma efetiva."
O estilo de vida também contribui para a sensação de piora nas condições gerais. Nos últimos 10 anos, o consumo de ultraprocessados aumentou 5,5% entre a população brasileira, segundo a Universidade de São Paulo (USP), 84% dos jovens são sedentários (IBGE) e 66% dos brasileiros têm dificuldade para dormir, de acordo com pesquisa publicada na revista Sleep Epidemiology. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que até 21% dos jovens de 13 a 29 anos se sentem solitários com frequência.
"Perdeu-se o convívio em espaços reais e as práticas coletivas, tínhamos vizinhanças mais ativas que ofereciam de diferentes formas uma rede de apoio mais sólida e com contornos mais delimitados", ressalta a psicóloga e professora da USP, Ana Barros. Ela diz que a soma desses fatores leva à deterioração da saúde mental.
Cerca de 40% das mulheres e 29% dos homens da geração Z afirmaram sofrer de depressão em 2024, entre os integrantes da geração X essa proporção foi de 32% e 25%, respectivamente, e na Y, de 38% e 31%. Os dados sobre brasileiros são da pesquisa World Mental Health Day, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O comprometimento do senso de comunidade também está relacionado ao uso das redes sociais. Enquanto nativa digital, a geração Z cresceu seguindo o ritmo dessas plataformas, que favorecem as conexões virtuais e o isolamento, e comprometem o desenvolvimento de habilidades sociais dos jovens enquanto amadurecem.
"A tecnologia mudou completamente as relações sociais, a forma como experimentamos e construímos nossa subjetividade e o contato com o outro. Hoje a subjetivação é feita na lógica da visibilidade e espelhamento imediatos", afirma a psicóloga Ana Barros. "Isso gera uma necessidade de validação externa muito instantânea, com uma pressão constante por corresponder a padrões e expectativas que levam a sentimentos de muita angústia e sensação de inadequação."
Apesar da piora de indicadores, o consultor Marcos Olliver aponta que a saúde mental se tornou uma prioridade, o que avalia como positivo. "Para as outras gerações, não havia tanto a preocupação com a questão de qualidade de vida ou de bem-estar". Cerca de 13% dos brasileiros fazem terapia e 15% tomam remédios para tratar questões psiquiátricas, aponta pesquisa da Vida LinkedIn. Para 41,6%, saúde mental é uma das prioridades.
Barros afirma que esse movimento é um ponto de virada importante. "Isso indica que apesar das pressões inéditas que os jovens enfrentam, eles também desenvolvem estratégias próprias da sua época, como o próprio uso das redes sociais para formar comunidades virtuais e compartilhar o que sentem."
Em nome desse bem-estar, eles priorizam a vida privada em relação ao trabalho, e estão menos dispostos a se submeter a condições exaustivas: 56,2% dos jovens almejam vagas com possibilidade de trabalho remoto e horários flexíveis, de acordo com levantamento da Infojobs. Outros 71,6% disseram que deixariam os cargos se o ambiente fosse tóxico ou o trabalho estiver desalinhado com seus valores.
A classificação em gerações não é um consenso científico. Uma vez que foca nas diferenças e não nas convergências entre gerações, essas categorias fomentam a ideia de que há um choque entre elas, e servem de material para memes, além de refletir o pensamento de uma classe média alta, e não do grupo como um todo.
Feijó assinala que pessoas com níveis de renda e educação diferentes, têm comportamentos distintos, mesmo dentro da mesma geração.
"Geralmente, a população preta e parda tem esses sonhos materiais muito mais latentes do que a classe mais de renda mais elevada, composta majoritariamente por brancos ou amarelos. Por isso, o sonho da casa própria ainda é comum entre os mais pobres, enquanto os mais ricos já conseguem vislumbrar outras oportunidades, como ter um negócio e investir. Então, os sonhos são diferentes, mas os desafios permanecem."
Chacina entre o racismo e o bolsonarismo
Após compreender a dimensão e a extensão da “operação” no Complexo do Alemão e Penha no Rio de Janeiro (RJ), três conclusões preliminares parecem evidentes: a brutal chacina de 28 de outubro de 2025 tornar-se-á um marco na História contemporânea brasileira e sugere um ponto de viragem; o violento massacre policial teve um óbvio propósito político e tático eleitoral; a horripilante imagem dos corpos enfileirados na Praça São Lucas transportou-me diretamente para Gaza – realidades distintas, mas que nos apontam para a questão central: o racismo/racialização. Para o entendimento desse acontecimento é preciso ter em consideração elementos de longa duração histórica, do ciclo da ditadura empresarial-militar (1964-1985) e o contexto do Rio de Janeiro dos anos 90/2000, bem como as questões da conjuntura. Sinteticamente.
As classes dominantes brasileiras, herdeiras do colonialismo português, não importaram somente “estética e muito pouco além disso”, sobretudo, perpetuaram e atualizaram as lógicas e tecnologias político-raciais de desumanização daqueles considerados “sub-humanos”, “descartáveis”, “sem alma”. Ou seja, os pobres, periféricos, excluídos, subalternos, escravizados, os trabalhadores – as populações negras, não brancas e ameríndias. Portanto, para essa “elite”, que necessita das violentas “estética” e ideologia racistas, como forma de conservação do seu statu quo, estas populações são passíveis de genocídio, tortura, chacinas e massacres. Aos “seus serviços”, das tropas coloniais até à “burocracia armada” do Estado hoje (polícia, policiamento e encarceramento), matam impunemente os “sub-humanos” e sem precisarem de justificar nem serem responsabilizados.
A “lei informal” transmitida no treinamento policial é: identificou algo parecido com um fuzil nas mãos de um morador de comunidade, “atire para matar”, todos ali são suspeitos – mesmo que seja um guarda-chuva. Por outras palavras, é pena de morte. A presunção de inocência só existe para os condomínios dos ricos, onde muitas mães daqueles jovens mortos pela polícia vem trabalhar todos os dias, garantindo o trabalho de reprodução social de setores daquela “elite” que interiorizou e continua a “lucrar” com o racismo. Para se ter uma noção de uma política concreta, nos anos 90 um dos governadores do RJ criou as “gratificações faroeste”, ou seja, quanto mais o polícia matava, mais aumentavam os seus rendimentos mensais; recentemente tentaram recriá-las, mas ficou sem efeito.
As imagens dos mortos enfileirados, seminus, alguns corpos desmembrados – mesmo que fossem todos do Comando Vermelho (CV) – não provocaram uma grande repulsa nacional por aquele morticínio planeado pelo Estado. Isso significa que o que impera é uma generalizada dessensibilização e indiferença social; no caso do Rio de Janeiro, existe até considerável aprovação popular à “operação”. E muitos setores “progressistas” apoiaram e legitimaram o morticínio ou demonstraram uma indignação seletiva e com ressalvas. Isto é, capitularam completamente à lógica política-policial aplicada no país nos últimos 40 anos. O Presidente Lula da Silva, num gesto com preocupações eleitorais e de despolitização, a surfar no dito “populismo penal”, sanciona uma lei que endurece o combate ao “crime organizado” – a ironia é que o idealizador da lei foi o seu algoz, Sérgio Moro – e envia para o Congresso Nacional um “Projeto de Lei Antifação”. Por outras palavras, Lula está a legitimar a forma (fracassada) de combater a violência e a criminalidade no Brasil, as mesmas estratégias punitivistas e repressivas que a direita e a extrema-direita têm como pilar central na sua retórica política e ação governativa. O ponto central é que esse tipo de “consenso” e indiferença só evidencia que na História do Brasil a política de extermínio dos “indesejados”, nas suas diferentes formas, tem sido parte da nossa realidade e do nosso imaginário social, desde a colonização até à conformação do capitalismo brasileiro vigente, seja na sua forma de ditadura empresarial-militar ou representativo-liberal, etc.
Imagino que alguns leitores já estejam a pensar: “Mais um defensor de bandido!” Responderia que não, apenas levo os estudos científicos sobre as formas de combater a economia política do crime e o meu antirracismo às últimas consequências, assim como defendo a vida e a dignidade humana, principalmente daquelas pessoas que ao nascer são “condenadas” à morte, à miséria e à exclusão social pela estrutura racial-capitalista que forma o Brasil na sua História. Questionemo-nos. Qual é a “racionalidade” ou o “cálculo” que justifique um jovem “escolher o mundo do crime”, que lhe reserva uma vida curta (a morte) ou anos privado de liberdade? Não será a falta de perspetiva de futuro? De capacidade de sonhar com uma vida melhor? Que outro mundo é possível? Penso que se começarmos a questionar-nos com perguntas desse tipo e combatendo contra a ideologia racista que aprendemos nas diferentes estruturas sociais e instituições, talvez tenhamos a oportunidade de entender que os “excluídos” no apartheid dos morros são incorporados pela economia política do crime como força de trabalho barata e descartáveis, enquanto os poderosos e verdadeiros chefes do “crime organizado” estão a viver nos condomínios de luxo, quiçá em palácios de governo, ou a trabalhar no centro do mercado financeiro brasileiro (Faria Lima) ou nalgum banco em Londres.
Esse tipo de organização – Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC), etc. – surgiu dentro do sistema carcerário brasileiro, visando reivindicar melhores condições e organizar o espaço prisional, pois as cadeias não “ressocializam” ninguém, são mais uma máquina de moer seres humanos e recrutar pessoas para o crime – o PCC emergiu com maior força após o massacre do Carandiru. Bruno Paes Manso escreveu um recente artigo a diferenciar os dois grupos. O ponto decisivo é que essa economia política do crime (EPC) identificou nessas formas coletivas de organização a possibilidade de transitar do assalto a banco (no caso do CV, 1980), para intermediação e também comercialização de cocaína, que vinha da Colômbia e era despachada dos portos brasileiros para a Europa. Mas como esses grupos poderiam garantir o transporte “seguro” de uma mercadoria tão valiosa, mas ilegalizada? A “solução” foi armarem-se fortemente. Como conseguiriam acesso a armas fabricadas na Alemanha, na Bélgica e nos EUA, entre outros? É nesse contexto que aparece um novo nicho de comercialização no RJ, o das armas com alto potencial de letalidade e imponente; a forma mais rápida e fácil comprar o armamento foi com setores do Estado que têm acesso às armas, as forças de polícia e do Exército. Ou a partir da política de liberalização de armas do governo Bolsonaro. O mesmo vale para as munições.

Às vezes, é preciso relembrar o óbvio. Os fuzis não brotaram do chão nem caíram dos céus nos morros do Rio de Janeiro. Existe todo um complexo, lucrativo e sofisticado comércio de armas e munições que as coloca na mão daqueles jovens pobres e na sua maioria negros. Por que será que a polícia não investiga esse comércio (necromercado)? Não haveria muitos agentes do Estado implicados nesse processo? Grandes empresários “de bem”? Não existe nenhuma relação entre contravenção (“jogo do bicho”), a polícia e as milícias (grupo formado por polícias ou ex-polícias) no RJ?
Outra face desse processo é que a economia política capitalista do crime entendeu que estando fortemente armada permitia ter o controlo dos territórios em que se instalava – evidentemente com a permissão e a organização estatal, uma “regulação armada” dos territórios. Quer dizer, existe uma relação entre o alargamento do CV e a própria expansão urbana da Cidade Maravilhosa.
É a partir desses territórios sob sua regulação armada que a EPC comercializará parte dos estupefacientes que transportava, mas no decorrer de tempo colocou em prática a estratégia capitalista de “diversificar os negócios”, aprendendo com os “rivais” das milícias que tudo se poderia transformar em serviços vendáveis dentro das comunidades, desde a “segurança” à permissão para abrir um comércio, a internet, a luz, a água, o gás, os terrenos e moradias, etc.
O que pretendo salientar é que perceber a questão de território é primordial, pois, de um lado, aquelas populações que lá vivem sofrem por falta de políticas públicas universais e projetos de governo transformadores, que viabilizem ter uma vida em que a privação de necessidades elementares não seja uma constante. Por outro, as ditas organizações criminosas também os subjugam, matam e espoliam de forma quotidiana. É nessa estrutura social contraditória que a EPC tem condicionado e recrutado muitos jovens, que, sem perspetiva de uma vida longe da pobreza e da miséria, aderem ao universo criminal – um dado revelador da chacina de 28 de outubro: um terço dos mortos não tinha o registo do nome do pai nos seus documentos de identificação.
Além das questões de longa e média duração que procurei sumarizar, existem alguns elementos da conjuntura que são relevantes. Como a sequência de erros táticos da extrema-direita/neofascista brasileira: Eduardo Bolsonaro foi para os EUA conspirar junto da Administração Trump, para sancionar juízes e aplicar alta tarifas sobre o Brasil, com o objetivo de evitar a condenação de Jair Bolsonaro por golpe de Estado – sem efeito; assim como a tentativa dos deputados bolsonaristas de aprovar dois projetos de emenda constitucional (PEC), um para amnistiar os golpistas (incluindo Jair Bolsonaro) e outro para inibir a investigação judicial aos deputados e políticos.
O resultado desses equívocos políticos, como o ataque à soberania brasileira por Trump e pela família Bolsonaro, permitiu que o governo Lula retomasse a iniciativa da agenda política do país. Porque a gestão “Lula 3” até àquele momento encontrava-se em crescente impopularidade, uma das consequências da aplicação de uma política económica neoliberal – “austericídio fiscal”, como categorizou Gleisi Hoffmann (ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e ministra do governo). Relativamente aos projetos de lei, a esquerda brasileira (moderada e radical) teve a iniciativa de retomar grandes manifestações de ruas, até então sob a hegemonia do bolsonarismo, a fim de demonstrar contrariedade às PEC. Em síntese, a extrema-direita brasileira viu-se na defensiva, por serem identificados por amplos setores da sociedade como “traidores da pátria”, “anti-Brasil” e “defensores de bandidos”.
É nesse contexto que a carnificina “determinada” pelo governador Cláudio Castro e o seu secretário de segurança pública tem forte indícios e relação com o facto de o bolsonarismo estar encurralado politicamente. O que os levou a iniciar uma contraofensiva, visando retomar a agenda política do país, colocando na ordem do dia uma pauta em que eles repetem “respostas” simplicistas (“guerra às drogas”) e, sobretudo, conseguem mobilizar vários setores populares, especialmente nas grandes cidades, afetados e atingidos quotidianamente pela insegurança, o medo, a violência direta (assaltos, furtos, assassinatos) e o controlo de territórios pela economia política capitalista do crime (CV, PCC, etc.).
Por outro lado, eles sabem (inconscientemente ou não) que a “esquerda” que capitulou ao neoliberalismo e à austeridade não tem “solução” para a questão de segurança pública – basta examinar a letalidade policial em governos estaduais ditos progressistas –, porque para atenuar essa expressão da questão social, repito atenuar, seria necessário um robusto investimento público em habitação, saneamento básico, escola, saúde, assistência social e uma multiplicidade de políticas sociais, mas que o Novo Arcabouço Fiscal de Lula-Haddad não permite – o gasto financeiro do Estado permanece intocável.
A dimensão mais perigosa dessa contraofensiva do bolsonarismo é que ela pretende importar, na forma de lei e retórica política, a gramática ideológica trumpista dos “narcoterroristas”, para legitimar os assassinatos indiscriminados que o Ministério da Guerra dos EUA tem realizado no Pacífico – basta colocar a etiqueta de que são traficantes-terroristas. A família Bolsonaro já encetou a cantilena de que Trump poderia atacar barcos no Brasil, abrindo um precedente que poderá legitimar um ataque americano ao país, em nome do combate aos “narcoterroristas”, assim como o governador do RJ também contactou o governo Trump para que este reconheça o CV como “grupo terrorista”.
Nota final. Suspeito de que o genocídio em Gaza tenha aberto um processo histórico em que a dessensibilização social é de tal ordem que “já não precisamos de campos escondidos para praticar genocídio [e chacina], basta a normalização” e a interiorização desse novo-velho modo de vida. Um dos sinais de que a historiografia nos ajuda a compreender no processo de fascistização é que a violência estrutural passa a ser visível e se torna uma estética política. Há muitas lições políticas para retirarmos tanto de Gaza como do Rio de Janeiro, se quisermos um futuro menos sombrio.
As classes dominantes brasileiras, herdeiras do colonialismo português, não importaram somente “estética e muito pouco além disso”, sobretudo, perpetuaram e atualizaram as lógicas e tecnologias político-raciais de desumanização daqueles considerados “sub-humanos”, “descartáveis”, “sem alma”. Ou seja, os pobres, periféricos, excluídos, subalternos, escravizados, os trabalhadores – as populações negras, não brancas e ameríndias. Portanto, para essa “elite”, que necessita das violentas “estética” e ideologia racistas, como forma de conservação do seu statu quo, estas populações são passíveis de genocídio, tortura, chacinas e massacres. Aos “seus serviços”, das tropas coloniais até à “burocracia armada” do Estado hoje (polícia, policiamento e encarceramento), matam impunemente os “sub-humanos” e sem precisarem de justificar nem serem responsabilizados.
A “lei informal” transmitida no treinamento policial é: identificou algo parecido com um fuzil nas mãos de um morador de comunidade, “atire para matar”, todos ali são suspeitos – mesmo que seja um guarda-chuva. Por outras palavras, é pena de morte. A presunção de inocência só existe para os condomínios dos ricos, onde muitas mães daqueles jovens mortos pela polícia vem trabalhar todos os dias, garantindo o trabalho de reprodução social de setores daquela “elite” que interiorizou e continua a “lucrar” com o racismo. Para se ter uma noção de uma política concreta, nos anos 90 um dos governadores do RJ criou as “gratificações faroeste”, ou seja, quanto mais o polícia matava, mais aumentavam os seus rendimentos mensais; recentemente tentaram recriá-las, mas ficou sem efeito.
As imagens dos mortos enfileirados, seminus, alguns corpos desmembrados – mesmo que fossem todos do Comando Vermelho (CV) – não provocaram uma grande repulsa nacional por aquele morticínio planeado pelo Estado. Isso significa que o que impera é uma generalizada dessensibilização e indiferença social; no caso do Rio de Janeiro, existe até considerável aprovação popular à “operação”. E muitos setores “progressistas” apoiaram e legitimaram o morticínio ou demonstraram uma indignação seletiva e com ressalvas. Isto é, capitularam completamente à lógica política-policial aplicada no país nos últimos 40 anos. O Presidente Lula da Silva, num gesto com preocupações eleitorais e de despolitização, a surfar no dito “populismo penal”, sanciona uma lei que endurece o combate ao “crime organizado” – a ironia é que o idealizador da lei foi o seu algoz, Sérgio Moro – e envia para o Congresso Nacional um “Projeto de Lei Antifação”. Por outras palavras, Lula está a legitimar a forma (fracassada) de combater a violência e a criminalidade no Brasil, as mesmas estratégias punitivistas e repressivas que a direita e a extrema-direita têm como pilar central na sua retórica política e ação governativa. O ponto central é que esse tipo de “consenso” e indiferença só evidencia que na História do Brasil a política de extermínio dos “indesejados”, nas suas diferentes formas, tem sido parte da nossa realidade e do nosso imaginário social, desde a colonização até à conformação do capitalismo brasileiro vigente, seja na sua forma de ditadura empresarial-militar ou representativo-liberal, etc.
Imagino que alguns leitores já estejam a pensar: “Mais um defensor de bandido!” Responderia que não, apenas levo os estudos científicos sobre as formas de combater a economia política do crime e o meu antirracismo às últimas consequências, assim como defendo a vida e a dignidade humana, principalmente daquelas pessoas que ao nascer são “condenadas” à morte, à miséria e à exclusão social pela estrutura racial-capitalista que forma o Brasil na sua História. Questionemo-nos. Qual é a “racionalidade” ou o “cálculo” que justifique um jovem “escolher o mundo do crime”, que lhe reserva uma vida curta (a morte) ou anos privado de liberdade? Não será a falta de perspetiva de futuro? De capacidade de sonhar com uma vida melhor? Que outro mundo é possível? Penso que se começarmos a questionar-nos com perguntas desse tipo e combatendo contra a ideologia racista que aprendemos nas diferentes estruturas sociais e instituições, talvez tenhamos a oportunidade de entender que os “excluídos” no apartheid dos morros são incorporados pela economia política do crime como força de trabalho barata e descartáveis, enquanto os poderosos e verdadeiros chefes do “crime organizado” estão a viver nos condomínios de luxo, quiçá em palácios de governo, ou a trabalhar no centro do mercado financeiro brasileiro (Faria Lima) ou nalgum banco em Londres.
Esse tipo de organização – Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC), etc. – surgiu dentro do sistema carcerário brasileiro, visando reivindicar melhores condições e organizar o espaço prisional, pois as cadeias não “ressocializam” ninguém, são mais uma máquina de moer seres humanos e recrutar pessoas para o crime – o PCC emergiu com maior força após o massacre do Carandiru. Bruno Paes Manso escreveu um recente artigo a diferenciar os dois grupos. O ponto decisivo é que essa economia política do crime (EPC) identificou nessas formas coletivas de organização a possibilidade de transitar do assalto a banco (no caso do CV, 1980), para intermediação e também comercialização de cocaína, que vinha da Colômbia e era despachada dos portos brasileiros para a Europa. Mas como esses grupos poderiam garantir o transporte “seguro” de uma mercadoria tão valiosa, mas ilegalizada? A “solução” foi armarem-se fortemente. Como conseguiriam acesso a armas fabricadas na Alemanha, na Bélgica e nos EUA, entre outros? É nesse contexto que aparece um novo nicho de comercialização no RJ, o das armas com alto potencial de letalidade e imponente; a forma mais rápida e fácil comprar o armamento foi com setores do Estado que têm acesso às armas, as forças de polícia e do Exército. Ou a partir da política de liberalização de armas do governo Bolsonaro. O mesmo vale para as munições.
Às vezes, é preciso relembrar o óbvio. Os fuzis não brotaram do chão nem caíram dos céus nos morros do Rio de Janeiro. Existe todo um complexo, lucrativo e sofisticado comércio de armas e munições que as coloca na mão daqueles jovens pobres e na sua maioria negros. Por que será que a polícia não investiga esse comércio (necromercado)? Não haveria muitos agentes do Estado implicados nesse processo? Grandes empresários “de bem”? Não existe nenhuma relação entre contravenção (“jogo do bicho”), a polícia e as milícias (grupo formado por polícias ou ex-polícias) no RJ?
Outra face desse processo é que a economia política capitalista do crime entendeu que estando fortemente armada permitia ter o controlo dos territórios em que se instalava – evidentemente com a permissão e a organização estatal, uma “regulação armada” dos territórios. Quer dizer, existe uma relação entre o alargamento do CV e a própria expansão urbana da Cidade Maravilhosa.
É a partir desses territórios sob sua regulação armada que a EPC comercializará parte dos estupefacientes que transportava, mas no decorrer de tempo colocou em prática a estratégia capitalista de “diversificar os negócios”, aprendendo com os “rivais” das milícias que tudo se poderia transformar em serviços vendáveis dentro das comunidades, desde a “segurança” à permissão para abrir um comércio, a internet, a luz, a água, o gás, os terrenos e moradias, etc.
O que pretendo salientar é que perceber a questão de território é primordial, pois, de um lado, aquelas populações que lá vivem sofrem por falta de políticas públicas universais e projetos de governo transformadores, que viabilizem ter uma vida em que a privação de necessidades elementares não seja uma constante. Por outro, as ditas organizações criminosas também os subjugam, matam e espoliam de forma quotidiana. É nessa estrutura social contraditória que a EPC tem condicionado e recrutado muitos jovens, que, sem perspetiva de uma vida longe da pobreza e da miséria, aderem ao universo criminal – um dado revelador da chacina de 28 de outubro: um terço dos mortos não tinha o registo do nome do pai nos seus documentos de identificação.
Além das questões de longa e média duração que procurei sumarizar, existem alguns elementos da conjuntura que são relevantes. Como a sequência de erros táticos da extrema-direita/neofascista brasileira: Eduardo Bolsonaro foi para os EUA conspirar junto da Administração Trump, para sancionar juízes e aplicar alta tarifas sobre o Brasil, com o objetivo de evitar a condenação de Jair Bolsonaro por golpe de Estado – sem efeito; assim como a tentativa dos deputados bolsonaristas de aprovar dois projetos de emenda constitucional (PEC), um para amnistiar os golpistas (incluindo Jair Bolsonaro) e outro para inibir a investigação judicial aos deputados e políticos.
O resultado desses equívocos políticos, como o ataque à soberania brasileira por Trump e pela família Bolsonaro, permitiu que o governo Lula retomasse a iniciativa da agenda política do país. Porque a gestão “Lula 3” até àquele momento encontrava-se em crescente impopularidade, uma das consequências da aplicação de uma política económica neoliberal – “austericídio fiscal”, como categorizou Gleisi Hoffmann (ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e ministra do governo). Relativamente aos projetos de lei, a esquerda brasileira (moderada e radical) teve a iniciativa de retomar grandes manifestações de ruas, até então sob a hegemonia do bolsonarismo, a fim de demonstrar contrariedade às PEC. Em síntese, a extrema-direita brasileira viu-se na defensiva, por serem identificados por amplos setores da sociedade como “traidores da pátria”, “anti-Brasil” e “defensores de bandidos”.
É nesse contexto que a carnificina “determinada” pelo governador Cláudio Castro e o seu secretário de segurança pública tem forte indícios e relação com o facto de o bolsonarismo estar encurralado politicamente. O que os levou a iniciar uma contraofensiva, visando retomar a agenda política do país, colocando na ordem do dia uma pauta em que eles repetem “respostas” simplicistas (“guerra às drogas”) e, sobretudo, conseguem mobilizar vários setores populares, especialmente nas grandes cidades, afetados e atingidos quotidianamente pela insegurança, o medo, a violência direta (assaltos, furtos, assassinatos) e o controlo de territórios pela economia política capitalista do crime (CV, PCC, etc.).
Por outro lado, eles sabem (inconscientemente ou não) que a “esquerda” que capitulou ao neoliberalismo e à austeridade não tem “solução” para a questão de segurança pública – basta examinar a letalidade policial em governos estaduais ditos progressistas –, porque para atenuar essa expressão da questão social, repito atenuar, seria necessário um robusto investimento público em habitação, saneamento básico, escola, saúde, assistência social e uma multiplicidade de políticas sociais, mas que o Novo Arcabouço Fiscal de Lula-Haddad não permite – o gasto financeiro do Estado permanece intocável.
A dimensão mais perigosa dessa contraofensiva do bolsonarismo é que ela pretende importar, na forma de lei e retórica política, a gramática ideológica trumpista dos “narcoterroristas”, para legitimar os assassinatos indiscriminados que o Ministério da Guerra dos EUA tem realizado no Pacífico – basta colocar a etiqueta de que são traficantes-terroristas. A família Bolsonaro já encetou a cantilena de que Trump poderia atacar barcos no Brasil, abrindo um precedente que poderá legitimar um ataque americano ao país, em nome do combate aos “narcoterroristas”, assim como o governador do RJ também contactou o governo Trump para que este reconheça o CV como “grupo terrorista”.
Nota final. Suspeito de que o genocídio em Gaza tenha aberto um processo histórico em que a dessensibilização social é de tal ordem que “já não precisamos de campos escondidos para praticar genocídio [e chacina], basta a normalização” e a interiorização desse novo-velho modo de vida. Um dos sinais de que a historiografia nos ajuda a compreender no processo de fascistização é que a violência estrutural passa a ser visível e se torna uma estética política. Há muitas lições políticas para retirarmos tanto de Gaza como do Rio de Janeiro, se quisermos um futuro menos sombrio.
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