sexta-feira, 9 de julho de 2021

Comandante da Aeronáutica chama de advertência o que foi ameaça

Um alerta do poder armado às instituições não é qualquer alerta, como disse em entrevista ao jornal O Globo o comandante da Força Aérea Brasileira, tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior. Não é pelo simples fato de que o poder armado detém a força e as demais instituições são desarmadas.

O brigadeiro é um bolsonarista de raiz, a ler-se o que publica ou reproduz em suas contas nas redes sociais. Ele diz que os militares estão incomodados com o que chama de tentativa de associação, por parte da CPI da Covid-19, entre a corporação (as Forças Armadas) e as suspeitas de corrupção apuradas pelos senadores.

Critica o tratamento dado a colegas alvo das investigações, como o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e o coronel Elcio Franco, ex-secretário-geral do ministério. Mas afirma que as Forças Armadas não tolerarão casos comprovados de militares corruptos: “Não protegeremos quem está à margem da lei”.

Segundo ele, os militares se mantêm “dentro das linhas da Constituição”. E cita um trecho da nota assinada pelos comandantes das três armas e pelo ministro da Defesa: “As Forças Armadas não aceitarão ataques levianos”. Quanto a elas poderem embarcar numa aventura golpista, observou:

“Homem armado não ameaça”.

O que quis dizer com a frase “homem armado não ameaça”, sabe-se lá. Isso não lhe foi perguntado. Sabe-se que um homem armado pode ser uma ameaça, sim, desde que disposto a impor sua autoridade por meio do possível uso da arma. Não precisa sequer exibi-la ou sacá-la, muito menos dispará-la. Arma faz diferença.

Não é a CPI quem promove a associação entre as Forças Armadas nem as suspeitas de corrupção que mancham a reputação de militares investigados – são os fatos. Este é um governo eleito com o apoio maciço do poder militar, que governa com o apoio maciço do poder militar e que emprega um número gigantesco de militares.

Como já admitiu o presidente da República, nunca na história do Brasil, nem mesmo durante os 21 anos da ditadura de 64, um governo empregou tantos militares. Os militares ganharam uma reforma da Previdência só para eles. Dinheiro reservado para a compra de vacinas comprou equipamentos militares.

O presidente vive a adulá-los, é visto mais em cerimônias militares do que nas demais promovidas por órgãos do próprio governo. Não esconde o desejo de implantar no país um regime autoritário com o apoio das Forças Armadas. E são cada vez mais tênues os sinais dados por elas de que recusarão tal apoio.

Para lidar com “ataques levianos”, a Justiça oferece vários meios a quem pessoalmente ou como corporação se sinta ofendido. Só o presidente da República, como Comandante Supremo das Forças Armadas, pode falar por elas sobre temas de ampla repercussão política – os comandantes não podem, nem o ministro da Defesa.

E tem mais: cabe à Justiça, e somente a ela se provocada, atestar a natureza leviana dos ataques. Isso, naturalmente, quando a pessoa ou a instituição procede de acordo com o que diz a Constituição. A nota de “advertência” dos chefes militares, por mais que eles digam que só foi dirigida à CPI, ultrapassou os limites da lei.

A CPI é um instrumento da minoria parlamentar assegurado pela Constituição. Por parlamentar, é um instrumento do Congresso, um dos três poderes da República juntamente com o Executivo e o Judiciário. A Constituição não prevê a existência de um quarto poder, muito menos armado. Os militares é que se veem assim.

O tempo é o senhor da razão. Em nome da defesa da democracia, por duas vezes de 1930 para cá, os militares golpearam a Constituição e sustentaram ditaduras. A história do país está pontilhada de tentativas de golpes militares que fracassaram. As eleições do ano que vem estão logo ali na esquina.

Veremos então se seus resultados, sejam quais forem, serão de fato respeitados pelos que se apresentam como os pais legítimos da República, aqui instalada por um golpe militar.

Preparando o tapete


Se houve algum desvio de conduta pontual, isso não pode ser generalizado e, por outro lado, acobertado. Não dá para jogar para debaixo do tapete
ACM Neto, prefeito de Salvador e presidente do DEM

Quem é você no golpe do Jair?

Jair Bolsonaro já avisou que tentará dar um golpe no ano que vem caso não vença as eleições. Mais: afirmou que, por ele, não haverá sequer eleições caso elas não sejam da maneira como quer, com o tal voto impresso.

Portanto, neste assunto, ninguém pode se fazer de desentendido. “Ah, mas o presidente está blefando”, dirão aqueles sempre dispostos a contemporizar com o inadmissível. Não está. Assim como não blefou durante toda a sua vida pública a respeito dos absurdos que pregou, pelos quais trabalhou, que prometeu em campanha e que tenta, aos trancos e barrancos, implementar na Presidência.

Portanto, essa muleta de se dizer pego de surpresa quando Bolsonaro sair da retórica para a tentativa de ação ninguém poderá usar. Eleitores, empresários e, sobretudo, os agentes com responsabilidades públicas e institucionais.


Vamos, então, escalar o time dos que serão cobrados caso o país viva uma tentativa de ruptura democrática.

Arthur Lira. Até aqui, o presidente da Câmara é aquele que tenta comer tudo o que pode na churrascaria rodízio para fazer valer o que pagou. Sustenta Bolsonaro à custa de lautos nacos da picanha sangrenta do Orçamento. Na lógica de Lira, vale uma crise institucional em nome do poder que o presidente lhe franqueia.

Rodrigo Pacheco. O presidente do Senado se acovardou nos últimos dois dias diante de uma ameaça nítida das Forças Armadas ao Legislativo, um Poder da República. Aos poucos, os militares vão se espalhando na interpretação fake da Constituição segundo a qual têm um certo poder moderador em caso de impasse entre os Poderes. Não têm, e cabe aos chefes do Judiciário e do Legislativo dizer isso em voz alta e clara, sob pena de amanhã terem de se ver diante de algo mais grave que uma nota com saudade dos anos 1960 da parte dos fardados.

Augusto Aras. Preterido para o Supremo Tribunal Federal (STF), o procurador-geral da República se recolheu a um silêncio dúbio. Já não se esforça para bajular o presidente, como quando ainda esperava ser contemplado com uma das cadeiras que vagaram no STF, mas também não cumpre seu papel de fiscalizar o Executivo, porque quer ser reconduzido. O risco para Bolsonaro: a decisão sobre a recondução de Aras será, agora, anterior à conclusão da CPI da Covid, que será prorrogada. Quem será o Aras reconduzido e, portanto, não mais devedor de Bolsonaro? A ver.

Luiz Fux. Também soa tímida em excesso a nota de repúdio do presidente do STF diante das tentativas diárias do presidente de desmoralizar a mais alta Corte da Justiça e seus integrantes. As insinuações criminosas de Bolsonaro em relação a Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Edson Fachin, seus alvos preferenciais, deveriam motivar um basta do presidente do Supremo, e não lamentos cheios de dedos e punhos de renda.

General Walter Braga Netto. Espécie de interventor bolsonarista nas Forças Armadas, patrono da inédita troca simultânea de todos os comandantes militares por capricho do presidente, vem seguindo os desígnios que o ocupante de turno do Planalto espera dos militares. Vai com ele até o fim? Até a tentativa verde-amarela da “invasão do Capitólio”? É preciso que as alas das três armas comprometidas com a democracia cobrem sensatez e contenção por parte do comando. E o vice-presidente, general Hamilton Mourão, entra aqui neste verbete: em sua tentativa de dissipar as desconfianças de Bolsonaro para consigo, Mourão calará até quando diante desse festival de absurdos?

É importante que esses homens, todos eles investidos de poderes, mas também de deveres, pela Constituição tenham em mente desde já de que lado da História estarão quando o presidente tentar seu golpe de fancaria, caso se mantenha seu derretimento apontado pelas pesquisas diante das múltiplas falências do regime de descalabros que implementou.

Bolsonaro é mito, sim

Bem antes da eleição de 2018, ao ouvir pela primeira vez a massa de crentes políticos ovacionar Jair Messias Bolsonaro como “mito”, minha primeira reação foi horror. Horror por testemunhar que havia gente —muita gente— disposta a chamar aquele homem violento, obsceno e estúpido de “mito”. Tentei entender o porquê, mas sempre pensando na nomeação de “mito” como um tremendo equívoco. Agora, que o “mito” tornou-se o maior responsável pelo extermínio de mais de 525 mil brasileiras e brasileiros, percebo que Bolsonaro é, sim, um mito. E é por ser mito que está tão difícil fazer o impeachment mais do que justificado e mais do que urgente, o impeachment que é a melhor chance de evitar a ampliação da semeadura de cadáveres. É por Bolsonaro ser mito que (ainda) não conseguimos impedi-lo de seguir nos matando.

Não olho para o “mito” dos crentes políticos que seguem Bolsonaro, este que vem da popularização do termo nas redes sociais, pela palavra “mitou”, quando alguém faz ou diz algo considerado incrível. Ou “divou”. Também não olho pela lente do mito pop, como seria Marilyn Monroe ou Elvis Presley, por exemplo, parte da mitologia que alicerça o soft power dos Estados Unidos pela produção de Hollywood. Olho para o mito como a narrativa/imagem/enredo que explicam uma sociedade, povo, país. Bolsonaro é criatura-mito.

Neste exercício de interpretação, Bolsonaro inverte o percurso, ao realizar-se no plano que chamamos realidade para então nos levar a origens brutalmente reais, mas encobertas por mistificações como “país da democracia racial” ou “nação miscigenada” ou “povo cordial”, entre outras que nos falsificaram para nos formar —ou deformar.

Precisamos compreender que Bolsonaro é um mito para poder destruí-lo como mito. Parto dos gritos de “mito” da massa embrutecida para interpretar Bolsonaro como uma criatura mitológica feita de todos os nossos crimes. Ele é rigorosamente isto. Se fôssemos enumerar todas as violências que constituíram e constituem o que chamamos de Brasil, elas estão todas representadas e atualizadas em Bolsonaro. Este Messias é feito de cinco séculos de crimes, esta humana monstruosidade é constituída por todo o sangue criminosamente derramado.


Em Bolsonaro estão o os indígenas quase tão “humanos como nós”, estão os negros que “nem para procriadores servem mais”, estão as mulheres paridas nem da costela de Adão, mas de uma “fraquejada” do macho sujeito homem na cama, está a homofobia que prefere “um filho morto em um acidente de trânsito a um filho gay”, está a execução de todos aqueles que não são feitos a sua imagem e semelhança por “uma guerra civil, fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”.

Bolsonaro contém a trajetória completa. Da fundação do Brasil pela destruição dos povos originários ao último país das Américas a abolir a escravidão negra. Da política de branqueamento da população, executada desde o Império pela importação de europeus, à República fundada por um golpe militar e abalada ciclicamente por golpes ou tentativas de golpes militares. Se Bolsonaro é filho de seu pai e de sua mãe, ele é também e muito mais filho de todas as políticas que fizeram de um território não circunscrito, intensamente povoado por populações originárias humanas e não humanas, o estado-nação circunscrito que chamamos Brasil.

Bolsonaro realiza em seu corpo-existência todas as políticas que fizeram do Brasil o que ele é —todos os crimes que fizeram do Brasil o que ele é. E os afirma como valor, como origem e como destino. Seu DNA é Brasil. Se todas as políticas que alicerçaram os genocídios indígenas e negros, assim como as grandes violências, fossem convertidas em carne, elas seriam Bolsonaro. Elas são. Que essa criatura mitológica tenha irrompido no momento em que os negros ampliavam sua participação e sua demanda por participação, a população indígena crescia apesar de todos os processos de extermínio e as mulheres ocupavam as ruas com seus corpos não é, obviamente, coincidência. A criatura irrompe para interromper, barrar, interditar uma disputa que ameaça sua própria gênese.

Quando Bolsonaro invoca para si a “verdade”, neste sentido, o do mito, ele está rigorosamente afirmando a verdade. Ele é a verdade sobre o Brasil. Não toda a verdade, nunca toda a verdade, mas uma parte substancial da verdade da nação fundada sobre corpos humanos e não humanos, sobre a violação e esgotamento da natureza, sobre a corrupção dos corpos e do patrimônio comum. Nação fundada e ativamente assim mantida até hoje. O grande mentiroso mente sobre tudo, mas não sobre o que é —nem sobre o Brasil.

Quando Bolsonaro simula uma arma com os dedos, ou um de seus rebentos, ele está apontando para onde? Para a população. Para nós. E atira, como a pandemia nos mostrou. O que pode ser mais explícito? A criatura mitológica do país que mata parte do seu povo de forma sistemática só pode ser um matador compulsivo.

Eu, que gosto de literatura de fantasia, cinema de fantasia, séries de fantasia, fico imaginando um blockbuster. Um país que torturou e matou por cinco séculos de repente é assombrado por uma criatura humanamente monstruosa que passa a torturar e a matar à luz do dia, no centro da República. Em algum momento, passa a matar também as elites que a engendraram em suas igrejas, o “mercado” entre elas. Como ficção, Bolsonaro é um personagem ruim, plano e inverossímil. Como realidade, porém, é mais aterrador do que qualquer personagem de ficção.

Penso que precisamos criar ficção para enfrentar a realidade de Bolsonaro. Em 21 de abril, por exemplo, o movimento #liberteofuturo, que invoca a imaginação do futuro como instrumento de ação política no presente, fez o julgamento de Bolsonaro por genocídio numa plataforma de manifestação virtual (manifão). O artista Mundano criou o troféu “genocida”: uma escultura à base de lama de Brumadinho (80%) e resina (20%), com acabamentos usando óleo do vazamento do Nordeste, spray e um pedaço de luva emborrachada amarela. Imaginávamos o que lutamos para que aconteça, mas não acontece, imaginávamos justiça. Ao imaginar e realizar, interviemos no presente. Ao mesmo tempo, denunciávamos, por meio de um julgamento real, que produz realidade embora não possa colocar Bolsonaro na cadeia, a omissão tanto das cortes brasileiras quanto das internacionais diante do extermínio e do genocídio liderados por Bolsonaro usando a covid-19. Mais do que ficção, precisamos de arte para retomar o presente.

A dificuldade de fazer o impeachment de Bolsonaro, assim como a dificuldade de julgá-lo por seus crimes, é justamente porque Bolsonaro é mito. O que ele explica do Brasil está ativo, absolutamente ativo, no processo de impeachment. Arthur Lira (PP) tem o supertraseiro sentado sobre o superpedido de impeachment e escorado pelos parlamentares de aluguel do Centrão. Entre os líderes da CPI que investiga a atuação de Bolsonaro e de seu Governo na pandemia, despontam Renan Calheiros (MDB) e Omar Aziz (PSD). Se a citação dos nomes não for autoexplicativa, basta fazer um Google. Assim, mesmo quando Bolsonaro, o homem, é investigado e enfraquecido, como está acontecendo agora, Bolsonaro, o mito, se fortalece, porque é o Brasil encarnado por Bolsonaro que está em ação. É o Brasil sendo Brasil, é um acerto entre semelhantes.

Bolsonaro precisa ser impedido dentro da Constituição, e quanto antes for, menos mortos haverá. Defendo o impeachment há muito tempo. Mais. Quero vê-lo no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional, em Haia, julgado por extermínio contra a população não indígena e por genocídio contra os indígenas, ambos crimes contra a humanidade. Sem estes dois atos formais, não haverá justiça. Mas tudo isto se refere ao homem Bolsonaro. Para o mito, é muito mais complicado. E ainda mais importante.

O que está em curso hoje é (mais) um rearranjo. Um dos grandes, porque este é um dos grandes momentos da história do Brasil. Bolsonaro, o homem, levou a extremos a devoração da Amazônia e de outros enclaves da natureza, fez a ponte entre as milícias de cidades como Rio de Janeiro e as milícias da Amazônia, converteu parte das polícias militares em milícias autônomas. E, finalmente, o que não estava no programa, usou a covid-19 como arma biológica para matar —e matar muito mais os indígenas e os negros que estão mais expostos ao vírus. Matar os indígenas para eliminar a principal resistência à exploração predatória da floresta, os negros porque o racismo os declara como “a carne mais barata (e abundante) do mercado”.

Bolsonaro, o homem, usou a pandemia para levar a extremos a matança “normal” do Brasil, criando um “novo normal” de assassinatos em massa cometidos sem máscaras —em todos os sentidos— desde o centro do poder. E, assim, superou extasiado sua própria profecia: não 30 mil numa guerra civil, mas mais de 525 mil numa pandemia. O plano de disseminação do vírus para alcançar “imunidade de rebanho”, supostamente para manter a economia ativa, já está amplamente demonstrado. As últimas denúncias de corrupção na compra de vacinas mostram também que Bolsonaro pode ter atrasado a imunização da população para faturar e/ou deixar outros faturarem propinas. Puramente Brasil. Assassinato e corrupção amalgamados.

Bolsonaro, o homem, serve a Bolsonaro, o mito. Ele vem com a praga, é a própria praga gestada desde dentro. Mas, quando se torna praga, é apenas o homem a serviço do mito. Ao levar a matança declarada a extremos, Bolsonaro converte os protagonistas da destruição continuada, aquela que é tratada como “normal”, em lideranças “equilibradas”, “sensatas”, “respeitadoras da Constituição”. Democratas, até humanistas. Este serviço de lavanderia feito pelo homem é a melhor oferenda ao mito.

É a relação entre Ricardo Salles, até o mês passado ministro do meio ambiente, e Tereza Cristina, que segue sendo ministra da Agricultura. Salles fazia o serviço sujo de forma espetaculosa para que Tereza Cristina posasse como agronegócio moderno, costurando os ataques aos suportes naturais de vida em diligência silenciosa e persistente, como o recorde absoluto de aprovação de agrotóxicos. Esta estratégia é espichada até quase além de seus limites, e então Salles cai —não para mudar, mas para que a política de fundo não mude. O chanceler Ernesto Araújo foi mantido até quase além do possível, e então, quem o derruba? Katia Abreu, símbolo do ruralismo, articuladora importante das relações com a China, a grande potência mundial emergente, principal parceira comercial do Brasil, consumidora de mercadorias que antes eram natureza, potência que busca ampliar sua presença na Amazônia e no setor energético do Brasil.

Até aqui, eu cometi uma violenta imprecisão neste texto. Ela está no uso do “nós”. Não existe no Brasil esta unidade chamada “nós”. Nunca existiu. Há uma maioria massacrada e uma minoria que massacra. Esta é a história que Bolsonaro, o mito, nos conta. Em diferentes episódios, parte dos massacrados adere a seus próprios algozes na expectativa de faturar alguma sobra ou por acreditar que este é o único caminho possível para mudar de lugar. Como, em parte, aconteceu na eleição de 2018.

Em algum momento, que esperamos seja logo, o homem Bolsonaro será sacrificado para que o mito permaneça ativo. E mesmo aqueles que enxergam o tabuleiro inteiro precisam, devem ir às ruas pelo impeachment, para que menos morram. É preciso ter presente, porém, que quando Bolsonaro cair, seguiremos governados pelo mito e declaradamente por aqueles que só mudam de nome na história do Brasil. É preciso ter presente que não será possível respirar nem por um segundo.

A luta será então muito mais complexa, mais difícil e mais acirrada porque alguns dos mais nefastos jogadores, antes reconhecidos como nefastos jogadores, agora posam de democratas e até de humanistas. Não é outra coisa que Renan Calheiros, Omar Aziz, Tereza Cristina, Katia Abreu e até mesmo Luiz Henrique Mandetta fazem, entre muitos, muitos outros. Ou, pegando os novos nomes do velho sistema, que alquimia extraordinária Bolsonaro fez ao converter em democratas equilibrados figuras como Kim Kataguiri e outros milicianos digitais do MBL, que apenas ontem destruíram reputações com fake news, perseguiram professores de escola pública e levaram artistas a ser ameaçados de morte. Ou ainda a alquimia de tornar Joice Hasselmann e Alexandre Frota defensores da ética na política. Sem contar alguns expoentes da imprensa que colaboraram ativamente para que Bolsonaro fosse eleito e hoje se “horrorizam”, antirracistas e feministas desde o nascimento.

As diferenças fundamentais, hoje pasteurizadas pela cortesia de Bolsonaro ao prestar este serviço de lavanderia inestimável aos donos do país, ressurgirão. E a carnificina elevada a outro padrão seguirá sendo executada. O mito nasce da realidade. Só é possível destruir um mito alterando radicalmente a realidade que ele ecoa e representa. Sem a realidade, o mito se esvazia.

O que quero dizer é que devemos assumir o “nós”, mas sem perder a perspectiva das diferenças vitais, e lutar para derrubar —pela Constituição, sempre pela Constituição— o homem Bolsonaro. Aqueles que podem devem se insurgir nas ruas com vacina no braço, máscaras bem ajustadas no rosto e distância física rigorosa, se insurgir para que o Brasil não chegue a um milhão de mortos pela covid-19 propagada por Bolsonaro e pelo seu Governo. Mas o impeachment de Bolsonaro não é o fim. É só recomeço. Uma ruptura prevista na Constituição para a continuidade da luta de fundo. Porque só será possível derrubar o homem. O mito seguirá.

Para destruir o mito precisaremos refundar o Brasil. Os massacrados de cinco séculos, que são também a encarnação de uma capacidade de resistência monumental, porque sobrevivem mesmo depois de cinco séculos de destruição sistemática de seus corpos, devem tomar o centro que a eles legitimamente pertence para criar uma sociedade capaz de bem viver sem destruir os suportes de vida do planeta, as outras espécies e a si mesma. Só destruiremos o mito criando outra realidade, um Brasil que não negue sua origem de sangue, mas seja capaz de se inventar de outro jeito.

Esta é a luta. Porque não há tempo, ela precisará ser feita junto com o luto dos mortos e com a documentação da memória dos mortos. Ao destruir a floresta amazônica, o Brasil se tornou um dos líderes da corrosão do planeta. Estamos em emergência climática. O tempo está contra nós. A derrubada do homem Bolsonaro é um pequeno passo, a destruição do mito é o caminho. E ela é estratégica para que este planeta ainda possa ser uma casa.