terça-feira, 6 de setembro de 2022

O Brasil refém

Véspera do 7 de Setembro. Data sequestrada pelo imaginário intimidador bolsonarista, conforme ilustra o incontornável de um país à espera do que será o amanhã. O amanhã; não o futuro. O amanhã mesmo, este presente: a quarta-feira, dia 7 de Setembro.

O que será?

Note-se que incluímos esse aguardamento na agenda brasileira. Integra mesmo a dinâmica do calendário eleitoral. As entrevistas ao JN. O início da propaganda na TV. O primeiro debate. O 7 de Setembro. O debate final. O 2 de Outubro.

O 7 de Setembro, se grande ou muito grande: balizará, já amanhã à noite, as análises políticas sobre as possibilidades competitivas do presidente candidato, embora eventos como esse, de natureza sectária, alimentem muito mais as perspectivas de Bolsonaro, se afinal vencido, manter-se como o líder reacionário de uma oposição agressiva num Brasil com a economia como legada por Guedes.

Mesmo o governo nada tendo planejado para o 7 de Setembro de 2022, nada senão a necroviagem do coração imperial, nunca saímos do 7 de Setembro de 2021. Bolsonaro nos pauta. Levou a Corte constitucional para a briga de rua.

O país refém de há um ano. Preso à memória de um discurso para o confronto, antirrepublicano: o do mito, eleito por dezenas de milhões, que não consegue governar, minado pelo establishment que o Supremo encarna.

O amanhã: será pior?


Ninguém pode negar que estão postas as condições para o exercício da violência. A física. Refiro-me ao que pode haver no Rio de Janeiro. Menos de um mês até as eleições. Milhares às ruas, muitos armados — armadas também as forças de segurança. Exaltados os ânimos. A palavra resulta. A pregação para o choque é diária. São muitos também os tornados inimigos; os jurados como inimigos. Bolsonaro cultiva a segmentação. É estratégia. Estarão lá os CACs, por exemplo.

Considero que as autoridades locais ainda não olharam com atenção ao que se projeta para Copacabana, especialmente desde que cancelada a parada militar no Centro. Por que foi cancelada? Para quê?

São muitas as camadas de expectativa, para o que pesa a intensificação da atividade militante dos militares, sobretudo a partir da infiltração no TSE e das progressivas demandas — provocadoras de desconfianças — ao tribunal. Terá havido acordo com Alexandre de Moraes? A grande questão: como se comportará Bolsonaro?

É atroz que seja esse o horizonte; que nos tenhamos encurtado tanto. Mas assim é.

Em 2022, aos 200 anos da Independência, soma-se à exploração fetichista da efeméride o fato de estarmos — repito — a menos de um mês das eleições. Há um ano, o golpismo estava em outro tom, acima, mais acirrado. Essa é a leitura otimista. (Teria havido acordo com Moraes? Os tempos são prósperos para os conspirativos.) Prefiro a hipótese de que, sob um 7 de Setembro permanente, tenhamos nos acostumado à barbárie.

Independentemente do caráter golpista das manifestações de amanhã, teremos — isto já está dado — um ato de campanha eleitoral que instrumentalizará órgãos do Estado. No caso, as Forças Armadas. Ostensivo abuso de poder. Algo gravíssimo por si só.

Bolsonaro pode baixar a pressão. Pode, circunstancialmente, desviar sua artilharia a outro inimigo artificial. Pode terceirizar os ataques ao STF para aliados. Tudo é possível. Objetivamente, o que temos: o presidente convidou as Forças para compor, Independência como escada, um lance por sua reeleição — e elas aceitaram.

A grande questão — como se comportará Bolsonaro? — importa menos. (Se não morder amanhã, morderá depois — e sempre.) Importa mais a apreensão. Essa mobilização que tensiona. O presidente, gerador constante de instabilidades, é imprevisível. Imprevisibilidade a que se soma a incerteza sobre a organização do que ocorrerá em Copacabana. Ninguém sabe como será; até onde vão as participações militares. Conjunto de incertezas — de desorganizações — proposital.

Na última sexta, o Ministério Público Federal enviou ao Comando Militar do Leste, ao 1º Distrito Naval e ao 3º Comando Aéreo Regional pedidos de informação sobre que providências tomaram para impedir que o eventos militares em função da Independência se confundam com a atividade político-eleitoral de Bolsonaro. Quais? A Independência está instrumentalizada. A ver a quanto estarão instrumentalizados os militares.

O desenho da coisa, pelos agitadores bolsonaristas, é para que confusão haja mesmo. Ninguém, até agora, delimitou fronteiras. Quer-se bagunça. O presidente desfilará em motociata, desde o Flamengo até palco montado perto do Forte de Copacabana. Óbvio investimento numa fotografia híbrida, de arrastão: a imprevisibilidade forjada induzindo trânsitos que misturem civis e militares no comício de Bolsonaro. Convite fácil ao imponderável.

Pensamento do Dia

 


A pobreza da independência

Amanhã, o Brasil comemora 200 anos de nação independente, sendo campeão de desigualdade, com 33 milhões de pessoas famintas e mais de 100 milhões com alimentação deficiente, cerca de 13 milhões de analfabetos — 25% da população pobre. A maioria é de raça negra e vive na região Nordeste. Esse é o maior fracasso de nossos 200 anos: a persistência da pobreza, apesar do êxito na economia que nos colocou entre as 10 nações mais ricas e o maior exportador de alimentos no mundo.

Desde 1822, tivemos dois imperadores, 38 presidentes, cerca de 10 mil parlamentares, milhares de intelectuais, mas a pobreza continua porque não desperta sentimento político de solidariedade, nem entendimento conceitual correto. A insensibilidade dos dirigentes em relação ao sofrimento dos pobres e a lógica equivocada sobre como nossos intelectuais explicam e propõem como superar a pobreza, explicam a pobreza da independência. O problema está no coração dos políticos e na mente de seus assessores: os primeiros não sofrem por causa da pobreza, os outros não entendem a real dimensão da pobreza, as causas e os meios para superá-la. A pobreza foi sequestrada pela elite no poder e pelo pensamento econômico. Não é vista como problema fundamental a ser enfrentado, e acredita-se que o crescimento da economia elimina a pobreza ao distribuir a renda ampliada.


Da mesma forma que, por 350 anos, a minoria branca e livre não se importou com os escravos, nem entendeu a importância da abolição para o país, há 135 anos, as classes privilegiadas aceitam com naturalidade o abandono de brasileiros na exclusão social da pobreza. Se os abolicionistas pensassem como economistas, a escravidão existiria até hoje, esperando o crescimento econômico. A escravidão foi abolida ao ser tratada como questão ética. É assim que a pobreza deve ser tratada. A superação da pobreza vai exigir que também seja tratada como imoral, uma vergonha a ser abolida.

Ao mesmo tempo, será preciso mudar o enfoque técnico de como é enfrentada. A principal causa da pobreza é a pobreza no entendimento de sua causa. A pobreza não decorre da falta de crescimento e renda na economia, mas por falta de comida, moradia, água, esgoto, atendimento médico, transporte urbano, escola, segurança. Desses itens, apenas comida e transporte dependem da renda pessoal, o resto exige políticas sociais e serviços públicos do Estado. Para solucionar a questão da pobreza, é preciso perceber que, como a escravidão, ela afeta não apenas os pobres, mas amarra toda a sociedade.

Depois de 200 anos, a independência precisa criar o que Joaquim Nabuco chamou, no século 19, de "instinto nacional" pela erradicação da escravidão. Agora, pela superação da pobreza com vontade e missão nacionais, e com o entendimento correto das políticas sociais e dos serviços públicos a serem ofertados a todos, com uma estratégia que assegure a cada um o que precisa para sair da pobreza. Entre eles, o mais importante é a educação de qualidade para todos. A sua qualidade aumenta a produtividade e o tamanho da renda nacional; a equidade para todas as crianças permite distribuir a renda, conforme o talento e o poder de pressão das massas pobres para obterem novos benefícios. Educação de qualidade para todos quebra o círculo vicioso que caracteriza os 200 anos de independência omissa diante da pobreza, tanto quanto foi diante da escravidão.

A pobreza de um pobre decorre da falta do essencial para sua sobrevivência plena. A pobreza da própria pobreza está na falta de sentimento político solidário e de um conceito técnico correto para explicá-la e superá-la. Até hoje, não tivemos governo com propósito de assegurar a cada família o necessário para não ser pobre. A pobreza foi sequestrada pela economia, no lugar de a economia ser instrumento da estratégia de sua erradicação. E em consequência a economia seria dinamizada, porque a pobreza é uma das causas do estancamento do progresso econômico, social e civilizatório, tanto quanto foi a escravidão ao longo de 66 dos 200 anos de independência.

Os Estados Unidos colocaram a missão de chegar à Lua antes das comemorações dos 200 anos de sua independência, o Brasil precisa definir sua missão a "segunda abolição" para as primeiras décadas de nosso terceiro século que se inicia amanhã. Para tanto, precisa querer politicamente superar a pobreza e entender corretamente as causas e as estratégias para a superação. Ao tolerar a permanência da pobreza, nossa independência é pobre: faz pobre milhões de brasileiros e esbarra no progresso.

Na arena da praia, o segundo ato de 'O brado retumbante'

A um mês das eleições dadas como perdidas pelas pesquisas, resta ao bolsonarismo, em sua obsessão de virar a mesa, apelar para a encenação do segundo ato de “O brado retumbante” no 7 de setembro. A retórica de criação de um clima favorável ao golpe contra a democracia passou a concentrar suas forças nas comemorações do bicentenário da Independência, com desfile ostensivamente militarizado na orla de Copacabana. Será a última oportunidade para exibição pública dos fogos de artifício do arsenal golpista.

Coerente com a prática do governo e as ações de seus adeptos, o projeto bolsonarista visa falsear a realidade e intimidar o público, com a ostentação de aparato bélico exibicionista e dispendioso. Haverá salvas de tiros de canhão, parada naval e voos da esquadrilha da fumaça. No mesmo dia, usando um suporte massivo de vídeos espalhados nas redes, um coral repetirá a ameaça de que “Se precisar, iremos à guerra”.

Estarão armados para isso. Não se deve duvidar que armas poderão ser disparadas e “inimigos”, atingidos. Melhor ficar em casa neste feriado da quarta-feira, 7. O espetáculo foi programado pelas Forças Armadas para ter a fastidiosa duração de oito horas, com ocorrências em vários pontos da cidade. O presidente chegará de helicóptero para o encerramento solene do desfile na arena da praia, defronte ao Forte de Copacabana, de onde um dia saíram para o combate e a morte os 18 do Forte.

Ao final da tarde, hinos e cânticos serão entoados, numa cerimônia digna das celebrações organizadas pelos camisas negras italianos, grupo paramilitar fascista, fiéis seguidores de Benito Mussolini. Montados em suas motos, os Cavaleiros da Ordem do Mito aclamarão seu líder e repetirão com ele a palavra de ordem do dia: “Ditadura ou Morte”.

A reencenação farsesca em Copacabana do episódio da Independência, 200 anos depois, se dá no momento em que o ato original interpretado por dom Pedro 1º às margens do Ipiranga está sendo posto em revisão por historiadores brasileiros. Novos livros discutem o papel e o significado para a Independência do famoso “brado retumbante de um povo heroico”, que foi parar na letra do Hino Nacional.

O Imperador teve ali seu ponto culminante como sujeito da História, assim retratado na famosa tela Independência ou Morte!, de Pedro Américo, da qual o povo está ausente. O protagonismo de dom Pedro está em reavaliação pelos novos estudos. Não se trata de negar ao Imperador o alcance de seu gesto teatral, mas de retirá-lo do pedestal a que foi alçado pela literatura acadêmica conservadora.

A história da luta pela emancipação foi construída num processo longo e difícil, que começou antes e terminou depois do grito de dom Pedro em 1822, cercado por pequeno grupo de militares. Passou pela Conjuração Baiana, pela Revolução Pernambucana, revoltas influenciadas pelo iluminismo francês. Em seu caminho, marcado pela participação popular, pontilharam rebeliões violentas reprimidas pela Corte.

Esse é um dos pontos levantados por O sequestro da Independência, Cia. das Letras, de Carlos Lima Jr., Lilia M. Schwarcz e Lúcia Stumpf, que mostra como a iconografia produzida a respeito do ato contribuiu para forjar uma visão idealizada do processo de emancipação do Brasil de Portugal. Para os autores, o “sete de setembro” funciona como um mito fundacional, aquele que permite fazer as pazes com o passado, acomodar o presente e prever o futuro.

Em outro livro desse conjunto de obras questionadoras, Ideias em confronto: Embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825), da Todavia, a professora Cecília Helena de Salles Oliveira também confronta essa visão. Numa passagem, conclui que a versão oficial da Independência, que teve no grito do Ipiranga de 1822 seu momento de apoteose, foi uma construção idealizada pelo príncipe herdeiro.

Político hábil, o Imperador deixou as contradições de lado para criar em seus discursos um recorte histórico favorável. A obra desvincula a Independência de um episódio específico e rechaça a tese do continuísmo pacífico. Cita estudos recentes que apontam mais de 50 mil mortos, entre militares e civis, nas batalhas pela independência, especialmente no Norte e Nordeste.

Diferentemente do que muitos de nós aprendemos nos primeiros estudos, a luta pela emancipação envolveu outros centros além do Rio e Lisboa, enfrentou a violência em manifestações locais, contou com a participação de mulheres e negros escravizados e ganhou corpo em meio a uma crise econômica e fiscal de grande magnitude.

Na minha mais remota lembrança do 7 de setembro, eu estou marchando ao lado dos meus colegas do Grupo Escolar Modelo, em Goiânia. Vestido com o uniforme de gala azul e branco, passamos ao lado do Coreto para fazer uma parada em frente ao Palácio das Esmeraldas, na Praça Cívica, ao som do repique da bateria. Meus inimigos declarados nessa parada militar não eram os portugueses, mas os alunos do rival Grupo Escolar Padrão, aquele de onde se “entrava burro e saía ladrão”. A rima galhofeira para o meu Grupo Modelo era de que “entrava burro e saía camelo”. A Independência não passava daquela imagem que eu vira na tela de Pedro Américo: o monarca montado eu seu cavalo, cercado por outros cavaleiros, levanta a espada acima da cabeça, num gesto simbólico de conclamação. Não ouvia, mas imaginava que ele estivesse gritando “Independência ou Morte”. Dois séculos depois, Bolsonaro quer transformar o 7 de setembro na arena de Copacabana num ato contra a democracia, ecoando o brado de “Ditadura ou Morte”.

Bandidagem com imunidade


O mundo não é ruim, só está mal frequentado
Luís Fernando Veríssimo

Presença feminina é sinal de vida na campanha

O papel das mulheres foi um tema de destaque no debate entre os candidatos. Isso me alegra. Nas eleições no Chile e na Colômbia, o assunto surgiu no contexto do programa da esquerda, que venceu.

Aqui no Brasil, além de sua inserção clássica na esquerda, a dignidade e a importância das mulheres foram defendidas por uma candidata de centro e outra de centro-direita.

Isso me leva a considerar que as coisas foram tão longe que hoje não se pode associar a sociedade patriarcal ao capitalismo. A abertura para o imenso potencial humano relegado pelo machismo pode enriquecer o próprio sistema.

As mulheres são a maioria do eleitorado. Mas foi uma pergunta da jornalista Vera Magalhães que desfechou o debate, repercutindo até no exterior. Bolsonaro respondeu com agressões.


O fato de o estopim ter vindo do jornalismo não me é estranho. Faz muito tempo que as mulheres têm papel decisivo na nossa profissão.

Digo por experiência pessoal. Trabalho há oito anos na televisão. Fui contratado por uma diretora geral da GloboNews. Ao longo de todos os anos, o departamento a que me vinculo foi sempre dirigido por mulheres.

Tive a sorte de ser pai de duas meninas. A primogênita guarda até hoje as fotos das primeiras manifestações de mulheres de que participou ainda menina, na década de 1980, quando fui candidato. A mais nova resolveu se aventurar num esporte, o surfe de ondas grandes, dominado pelos homens. Aos 14 anos, ela percebeu que as meninas ficavam na praia, enquanto os meninos surfavam. E perguntou:

— Tem de ser assim?

O Brasil já estava maduro para que o tema fosse para o topo da agenda. Bolsonaro percebe isso e reage com desespero. Tem mais medo da ascensão das mulheres que do próprio socialismo. Daí seu apego ao que chama de guerra cultural.

Essa não é a única novidade que pode movimentar a campanha. A questão ambiental, tão presente nas eleições americanas e europeias, não consegue abrir caminho. Um dos candidatos a mencionou com destaque, mas para afirmar apenas a importância do mercado. Há coisas que o mercado não pode fazer, como combater o desmatamento ilegal, retirar garimpeiros das áreas indígenas. São ações típicas de Estado e, ainda assim, a prática mostrou que elas precisam também de apoio social.

Na campanha, quase não se fala do racismo, tão presente em nossa vida cotidiana. Pouco se pergunta também. Nem de longe tem o peso que teve nas eleições americanas. Mas lá matam negros asfixiados, diria alguém. Mas no Brasil se mata do mesmo jeito, às vezes até com requintes, como explodir a bomba de gás no porta-malas da viatura, com um preso lá dentro.

Concordo com todos os que dizem que o problema mais urgente é a fome. No entanto não apenas o combate à fome, ao racismo, à misoginia, à destruição ambiental —tudo, enfim, poderia ser visto sob um novo ângulo: a articulação entre Estado, mercado e sociedade.

De um modo geral, uma campanha se faz com propostas e críticas aos adversários numa dosagem equilibrada. Bolsonaro deixa muitos flancos. Além de sua atuação terrível na pandemia, há todos os erros de seu governo e também os tropeços da vida pessoal. A família negociou 107 imóveis em 30 anos, pelo menos 51 com dinheiro vivo. Mais que uma família, é uma agência imobiliária.

Mas os anos sombrios podem ficar para trás, e seria muito interessante olhar um pouco para o mundo, em busca das ideias necessárias para a reconstrução.

Um país com maioria de mulheres, rico em recursos naturais, com chances de superar o racismo e de iniciar uma experiência de que nossos filhos e netos possam se orgulhar, é algo que está no horizonte das nossas possibilidades.

Não podemos deixar que Bolsonaro defina nosso padrão de felicidade, limitando-o apenas à sua derrota. Existe toda uma vida pela frente, quando ele se tornar apenas uma lembrança amarga na História.

A sensatez democrática

Como um político que defende o justiçamento de suspeitos, o fuzilamento de “30 mil compatriotas”, o assassinato de um presidente pacífico e democrático, a tortura como método inquisitório, o fim a democracia política, que sustenta que o erro da ditadura não foi torturar, mas foi “não matar”, que explicita publicamente a sua admiração a Hitler e debocha da tortura sofrida por uma mulher digna – que estava sendo retirada da Presidência –, como este político foi covardemente naturalizado pelo “establishment” neoliberal e pelas grandes cadeias de comunicação, depois de ter cometido e repetido muitos crimes bárbaros e ainda ter feito uma consciente propaganda genocida contra a vacinação?

Ortega y Gasset defendia a discutível tese de que “o homem é um animal para o qual só o supérfluo é necessário”, ou seja, as necessidades do homem não são “naturais”, mas artificiais e a técnica é sobretudo “a produção do supérfluo”. Certo ou errado, o discurso do filósofo aponta para as possibilidades da barbárie quando a técnica solta no espaço, sem o controle da ética e da sensatez, passa a reinar induzida pela loucura.

As violências e as ilegalidades cometidas pelo presidente Jair Bolsonaro começaram muito antes do seu governo. Foi um longo período em que ele protagonizou uma série de absurdas violações legais, capazes de chegar a uma parte significativa dos “dominados” e dos “dominantes” na hierarquia de classes da sociedade. Milhares de pessoas estavam à espera de um líder para solucionar as suas demandas mais urgentes, tanto no seio dos dominados como dos dominantes, pois queriam uma rápida resposta à letargia da democracia liberal, já considerada inepta tanto para resolver as suas carências mais imediatas, quanto para ter uma vida digna em segurança.


Os setores dominantes – médios e superiores – queriam uma resposta para a superação daquilo que entendiam como os entraves trabalhistas e tributários que, no seu sentimento, bloqueavam a acumulação ou impediam a sua sobrevivência nos mercados oligopolizados. Toda a população, todavia, sofria com o avanço da criminalidade e em vastas regiões metropolitanas o crime organizado já rivalizava com o Estado no controle dos territórios. Entre todas as questões, uma delas, a que atravessava todas as classes foi a “chave” para o sucesso dos métodos fascistas da extrema direita no fazer político. Tanto junto às camadas mais desprotegidas e deserdadas do povo, como entre setores mais ricos da população: a segurança pública.

Explico-me: a política, ao contrário das disputas entre os animais pelo território ou pela alimentação, é essencialmente uma mediação humana, que restringe a animalidade e a necessidade de extinção do adverso, para que sobreviva o mais forte. E ela exige rituais e instituições que obrigam os sujeitos políticos a tratarem do “todo”, sem cuidar rapidamente dos problemas imediatos de cada um dos indivíduos singulares, que nunca se consideram dentro de um coletivo indiferenciado, que seria parte do “interesse público”.

Desta forma, a aplicação de uma “política pública” de médio e longo prazo, que não atente para o imediato da vida comum, faz pensar que as pulsões mais duras da vida só possam ser respondidas “por fora” dos rituais democráticos. Suas complexidades e demoras geram nos seus destinatários um turbilhão de ansiedades e desconfianças, mormente quando os seus territórios antes elitizados, as universidades, os aeroportos, os espaços de lazer coletivo, as vias públicas já são lotadas de automóveis dos pobres.

Sobre estas consequências é que o espírito do fascismo, formalizado numa doutrina ou expandido através de mensagens de cunho moral dos meios de comunicação tradicionais e das redes digitais, é que o fascismo prosperou. O fim da política, o fim da democracia, a insistência que a corrupção é siamesa da política e outras aparentes beatitudes, que aproximam as pessoas da sua animalidade biológica ancestral, passaram a padronizar condutas, prometer soluções rápidas e uniformizar expectativas para tornar tudo mais simples e rápido: sem política e, portanto, sem corrupção.

Para que isso seja possível, é preciso acabar com as mediações que caracterizam a política e trabalhar, sem pudor, para a ter a morte como companheira de viagem para uma sociedade decente. Essa é a mensagem central do fascismo, que se ampara nos mitos e destrói a socialidade democrática. A vitória do pensamento mítico não contraria o senso comum, mas se ampara nele potencializando a “impressão” de que a superação da desgraça dos seres humanos não está na história, mas reside numa soma de erros cotidianos que são pervertidos pela política.

No senso comum, a ruptura dos limites entre a vida e a morte são aceitáveis quando o ambiente é de guerra e a segurança do indivíduo e do grupo familiar fica ao dispor do crime e da fome. O clima de guerra é o clima que naturaliza a morte de quem interrompe a ação do mito, que ordinariamente cultiva os seus transtornos mentais e a sua sociopatia no chamamento à extinção do inimigo e das instituições políticas, onde supostamente reside o abrigo do mal.

Quando Jair Bolsonaro passou a promover gestos e discursos necrófilos, cujo auge foi aceito na Sociedade Hebraica, na qual uma pequena parte de uma das comunidades mais martirizadas da história moderna – sob os protestos e o horror de sua maioria – o Capitão despontou como “mito” e venceu, consagrando, a partir dali, as mesmas técnicas e práticas políticas que promoveram o Holocausto. Não há mais adversários, só há inimigos a serem abatidos pelas armas.

A oposição sincera ao fascismo em nosso país poderia dar uma lição histórica de dignidade e sensatez democrática, aos malfeitores que querem continuar governando a nação, fazendo – uma semana antes do pleito – um grande acordo político de governança e governabilidade, derrotando Jair Bolsonaro no primeiro turno, unida em torno do nome mais forte para vencer e conduzir a nação ao destino democrático e social que o nosso povo merece. Está em tempo! É a sensatez democrática contra a política de morte do fascismo.

200 anos de Independência: história de uma promessa quebrada

Pode-se narrar a história do Brasil como o conto de uma enorme promessa. A história de uma nação que, mais do que qualquer outra, tinha os melhores pré-requisitos para ser pacífica, rica e próspera.

O Brasil possui imensas áreas férteis, milhares de rios, em parte gigantescos, a maior floresta tropical do mundo, uma colossal biodiversidade, quase 11 mil quilômetros de litorais, cinco zonas climáticas diferentes e abundantes recursos naturais. Ele tem uma população que dificilmente poderia ser mais diversificada, combinando as influências, experiências e aptidões de quatro continentes.

Por que, então – é a grande questão – o Brasil não foi capaz de cumprir sua grande promessa? Por que hoje cerca de 63 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza? Por que a insegurança alimentar aflige 125 milhões? Por que apenas 1% da população concentra 50% da renda nacional, e por que menos de 1% dos proprietários agrícolas possui 45% da área rural do país?

Por que quase não há afro-brasileiros em postos de liderança, embora mais da metade da população seja negra? E por que a cada ano são assassinados 50 mil cidadãos, ou seja, 130 por dia? O "país do futuro", que o escritor vienense Stefan Zweig tanto louvava em 1941, tendo reconhecido aqui um enorme potencial, ainda está à espera desse futuro, 200 anos após sua Independência.
Uma monarquia e defeitos permanentes


Ao nascer, em 1822, a nação brasileira já veio com um defeito: ao contrário das colônias hispanófonas da América Latina, não se transformou numa república, mas numa monarquia. O primeiro chefe de Estado foi o imperador Pedro 1º, originalmente príncipe herdeiro de Portugal.

Já desde o século 16 a economia do país se baseava na produção de açúcar no Nordeste. O cultivo era controlado por algumas poucas famílias que apoiavam a monarquia e não tinham interesse em mudanças. A corrida do ouro do século 18 levaria mais tarde à ascensão da Região Sudeste e à transferência da capital colonial, de Salvador para o Rio de Janeiro.

As primeiras décadas do novo Estado transcorreram menos caóticas do que nas repúblicas hispanófonas do continente. No entanto, a popularidade de Dom Pedro caiu: para desagrado dos latifundiários, ele firmou tratados comerciais com a Inglaterra, comprometendo-se a dar fim à importação de escravos.

Porém, os comerciantes de escravos ignoraram a medida e continuaram seus negócios em regime mais ou menos clandestino. A elite branca considerava a exploração e repressão de outros seres humanos um direito seu, que justificava com argumentos racistas. Essa mentalidade permaneceu uma característica da elite brasileira, até hoje.

Em 1840, com apenas 15 anos, Dom Pedro de Alcântara assumiu os assuntos de governo, dando início a uma era que os historiadores consideram uma das mais frutíferas do Brasil. Pedro 2º era um monarca esclarecido: sério, modesto e intelectualmente curioso. Porém ele também travou a brutal guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, entre 1864 e 1870, matando mais da metade da população paraguaia.

Sob Dom Pedro 2º,  a economia nacional continuou se baseando em grandes plantações e trabalho escravo. Calcula-se que, dos cerca de 12 milhões de africanos forçados a cruzar o Oceano Atlântico a partir do século 16, a metade foi parar no Brasil: a rota marítima até aqui era mais curta, e os escravos, portanto, baratos.

Somente em 1888 foi proclamado o fim da escravidão no Brasil, o último país das Américas a abolir a prática. A decisão foi também expressão de um remanejamento do poder, pois a indústria açucareira do Nordeste perdera influência, enquanto a alta burguesia urbana e os plantadores de café do Sudeste exigiam ter mais voz ativa.

Chegou-se à conclusão de que a república combinava melhor com o capitalismo em ascensão. Nasceram novos ramos econômicos, sobretudo no Sudeste e no Sul, que empregavam muitos imigrantes europeus. Nos séculos 19 e 20, centenas de milhares de portugueses, italianos, espanhóis e alemães empobrecidos imigraram – sob condições iniciais totalmente diversas das dos escravos africanos.

Estes foram libertados – sem um capital inicial, formação, terras, empregos, sem sequer um pedido de desculpas. Desse modo, lançavam-se as bases para a continuação de sua dependência e exploração, com todos os problemas resultantes. Até hoje.

A escravidão é a grande vergonha do Brasil. Sua perpetuação sob outro nome e o que ela acarreta constituem um gigantesco empecilho para o país.

Ao longo de 200 anos, a ordem social vertical do Brasil mal se alterou, apesar de intermitentes impulsos de modernização – por exemplo, com a criação do Estado Novo sob Getúlio Vargas. Na década de 1950 o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol, a petroleira estatal Petrobras foi fundada, e a nova capital, Brasília, inaugurada em 1960, transformou-se no símbolo da tão sonhada grandeza da nação.

Apenas quatro anos mais tarde os militares acabariam com o sonho: em 1º de abril de 1964 os generais deram um golpe de Estado, com respaldo dos Estados Unidos e alegando como justificativa atividades comunistas no país.

Nos 21 anos da ditadura militar, segundo a Comissão Nacional da Verdade, foram assassinados 434 presos políticos, assim como 8.500 indígenas; e dezenas de milhares foram presos e torturados. Esses crimes nunca foram investigados judicialmente, e este é um dos motivos por que até hoje a política brasileira se encontra sob a influência negativa dos militares.

Nos primeiros anos após a redemocratização, contudo, ficou mais uma vez óbvio um problema ancestral do Brasil, que fora varrido para debaixo do tapete durante a ditadura: a corrupção. Também ela é primordialmente um problema das classes mais altas, com acesso a verbas públicas que aparentemente consideram normal desviar.

Apesar de todas as dificuldades, o Brasil possui uma tremenda força cultural, magia e criatividade, seja na música, nas artes plásticas ou na literatura. Ela vem sobretudo de baixo, das comunidades, da periferia, do Brasil profundo, de suas subculturas e da resiliência de seu povo.

É o Brasil que resiste. Euclides da Cunha conta sobre ele em sua obra-prima Os Sertões; assim como João Ubaldo Ribeiro no épico Viva o povo brasileiro, ou Itamar Vieira Júnior em Torto Arado. Eles sempre tratam também do abismo entre a cidade e o campo, dos "dois Brasis" que existem até hoje.

O sentimento de que o Brasil deveria finalmente se tornar mais justo colocou no poder, no começo do século 21, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), de esquerda. O ex-sindicalista implementou programas de combate à pobreza, o cruel flagelo da nação. Foram anos de crescimento econômico.

A seguir, porém, veio o tombo: o país resvalou para uma crise econômica, acompanhada por um gigantesco escândalo de corrupção em torno da Petrobras. Seguiram-se uma crise política, uma social e uma moral.

Crises são sempre tempos bons para os extremistas, e em 2018 o forasteiro político de ultradireita Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Ele representa um retrocesso, começou a demolir o Estado e a cortar maciçamente as verbas para educação, cultura e, sobretudo, proteção ambiental.

A destruição de um dos maiores tesouros nacionais, a Floresta Amazônica, se acelerou ainda mais durante o mandato de Bolsonaro. Além disso, ele trouxe os militares de volta ao aparato estatal e deu poder às Igrejas evangélicas ultraconservadoras, que há décadas prosseguem com sua ascensão desenfreada.

Nos 200 anos de sua Independência, o Brasil se encontra mais uma vez diante de uma encruzilhada: tornar-se mais moderno, mais justo, e finalmente ativar seu potencial para o bem de todos; ou retroceder ainda mais para um obscuro passado.