Ortega y Gasset defendia a discutível tese de que “o homem é um animal para o qual só o supérfluo é necessário”, ou seja, as necessidades do homem não são “naturais”, mas artificiais e a técnica é sobretudo “a produção do supérfluo”. Certo ou errado, o discurso do filósofo aponta para as possibilidades da barbárie quando a técnica solta no espaço, sem o controle da ética e da sensatez, passa a reinar induzida pela loucura.
As violências e as ilegalidades cometidas pelo presidente Jair Bolsonaro começaram muito antes do seu governo. Foi um longo período em que ele protagonizou uma série de absurdas violações legais, capazes de chegar a uma parte significativa dos “dominados” e dos “dominantes” na hierarquia de classes da sociedade. Milhares de pessoas estavam à espera de um líder para solucionar as suas demandas mais urgentes, tanto no seio dos dominados como dos dominantes, pois queriam uma rápida resposta à letargia da democracia liberal, já considerada inepta tanto para resolver as suas carências mais imediatas, quanto para ter uma vida digna em segurança.
Os setores dominantes – médios e superiores – queriam uma resposta para a superação daquilo que entendiam como os entraves trabalhistas e tributários que, no seu sentimento, bloqueavam a acumulação ou impediam a sua sobrevivência nos mercados oligopolizados. Toda a população, todavia, sofria com o avanço da criminalidade e em vastas regiões metropolitanas o crime organizado já rivalizava com o Estado no controle dos territórios. Entre todas as questões, uma delas, a que atravessava todas as classes foi a “chave” para o sucesso dos métodos fascistas da extrema direita no fazer político. Tanto junto às camadas mais desprotegidas e deserdadas do povo, como entre setores mais ricos da população: a segurança pública.
Explico-me: a política, ao contrário das disputas entre os animais pelo território ou pela alimentação, é essencialmente uma mediação humana, que restringe a animalidade e a necessidade de extinção do adverso, para que sobreviva o mais forte. E ela exige rituais e instituições que obrigam os sujeitos políticos a tratarem do “todo”, sem cuidar rapidamente dos problemas imediatos de cada um dos indivíduos singulares, que nunca se consideram dentro de um coletivo indiferenciado, que seria parte do “interesse público”.
Desta forma, a aplicação de uma “política pública” de médio e longo prazo, que não atente para o imediato da vida comum, faz pensar que as pulsões mais duras da vida só possam ser respondidas “por fora” dos rituais democráticos. Suas complexidades e demoras geram nos seus destinatários um turbilhão de ansiedades e desconfianças, mormente quando os seus territórios antes elitizados, as universidades, os aeroportos, os espaços de lazer coletivo, as vias públicas já são lotadas de automóveis dos pobres.
Sobre estas consequências é que o espírito do fascismo, formalizado numa doutrina ou expandido através de mensagens de cunho moral dos meios de comunicação tradicionais e das redes digitais, é que o fascismo prosperou. O fim da política, o fim da democracia, a insistência que a corrupção é siamesa da política e outras aparentes beatitudes, que aproximam as pessoas da sua animalidade biológica ancestral, passaram a padronizar condutas, prometer soluções rápidas e uniformizar expectativas para tornar tudo mais simples e rápido: sem política e, portanto, sem corrupção.
Para que isso seja possível, é preciso acabar com as mediações que caracterizam a política e trabalhar, sem pudor, para a ter a morte como companheira de viagem para uma sociedade decente. Essa é a mensagem central do fascismo, que se ampara nos mitos e destrói a socialidade democrática. A vitória do pensamento mítico não contraria o senso comum, mas se ampara nele potencializando a “impressão” de que a superação da desgraça dos seres humanos não está na história, mas reside numa soma de erros cotidianos que são pervertidos pela política.
No senso comum, a ruptura dos limites entre a vida e a morte são aceitáveis quando o ambiente é de guerra e a segurança do indivíduo e do grupo familiar fica ao dispor do crime e da fome. O clima de guerra é o clima que naturaliza a morte de quem interrompe a ação do mito, que ordinariamente cultiva os seus transtornos mentais e a sua sociopatia no chamamento à extinção do inimigo e das instituições políticas, onde supostamente reside o abrigo do mal.
Quando Jair Bolsonaro passou a promover gestos e discursos necrófilos, cujo auge foi aceito na Sociedade Hebraica, na qual uma pequena parte de uma das comunidades mais martirizadas da história moderna – sob os protestos e o horror de sua maioria – o Capitão despontou como “mito” e venceu, consagrando, a partir dali, as mesmas técnicas e práticas políticas que promoveram o Holocausto. Não há mais adversários, só há inimigos a serem abatidos pelas armas.
A oposição sincera ao fascismo em nosso país poderia dar uma lição histórica de dignidade e sensatez democrática, aos malfeitores que querem continuar governando a nação, fazendo – uma semana antes do pleito – um grande acordo político de governança e governabilidade, derrotando Jair Bolsonaro no primeiro turno, unida em torno do nome mais forte para vencer e conduzir a nação ao destino democrático e social que o nosso povo merece. Está em tempo! É a sensatez democrática contra a política de morte do fascismo.
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