quarta-feira, 1 de novembro de 2023
Embaixador de Israel usa estrela amarela na ONU
O embaixador de Israel nas Nações Unidas exibiu uma estrela amarela em seu peito na segunda-feira ao discursar no Conselho de Segurança da organização, provocando críticas do memorial do Holocausto de Israel, o Yad Vashem, que classificou o ato como uma "desonra às vítimas" judaicas do nazismo.
Ao colocar o emblema durante a sessão plenária, o diplomata Gilad Erdan afirmou que pretende usar a estrela até que os membros do conselho condenem explicitamente as atrocidades cometidas pelo grupo terrorista Hamas contra cidadãos israelenses. "Usaremos essa estrela até que vocês acordem e condenem as atrocidades do Hamas".
A estrela amarela é um dos principais símbolos de perseguição aos judeus, que em diferentes momentos históricos foram obrigados a usá-la como um sinal de identificação. A prática teve início no século 8º, no Califado Omíada, por imposição de governantes muçulmanos. Mais tarde, foi introduzida na era medieval europeia pelos cristãos. Seu uso mais recente e conhecido ocorreu durante o Holocausto, no século 20, quando os nazistas obrigaram os judeus de territórios ocupados a portarem variações da estrela com a palavra "judeu" inscrita no meio.
Além do embaixador Erdan, outros membros da delegação israelense na ONU exibiram a estrela na sessão de segunda-feira. Ao justificar por que havia feito isso aos representantes do Conselho, o embaixador evocou a história do Holocausto: "Alguns de vocês não aprenderam nada nos últimos 80 anos. Alguns de vocês esqueceram por que esse órgão foi criado."
"Portanto, vou lembrá-los. A partir de hoje, toda vez que olharem para mim, vão se lembrar do que significa ficar em silêncio diante do mal", disse o embaixador, referindo-se ao ataque terrorista do Hamas a Israel em 7 de outubro. "Assim como meus avós e os avós de milhões de judeus, de agora em diante minha equipe e eu usaremos estrelas amarelas", disse, levantando-se para afixar no peito de seu terno a insígnia, com a inscrição "Never Again" ("Nunca mais", em inglês). "Usaremos essa estrela até que vocês acordem e condenem as atrocidades do Hamas."
Até o momento, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, formado por 15 membros, não chegou a um consenso sobre um posicionamento unificado em relação à guerra entre Israel e o Hamas, que resultou na morte de 1.400 israelenses e numa dura resposta de Israel, que vem travando operações militares na Faixa de Gaza, enclave palestino controlado pelo grupo fundamentalista. Até o momento, quatro propostas de resoluções naufragaram no conselho por causa de divisões entre os cinco membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França), que têm poder de veto.
Duas propostas russas que eram vagas em mencionar o Hamas foram vetadas pelos EUA ou não conseguiram votos suficientes. Um texto dos americanos, mais explícito no apoio a Israel, por sua vez, foi vetado pela Rússia e China. Um quarto texto, proposto pelo Brasil e que chegou a garantir 12 votos, foi vetado pelos EUA sob a justificativa de que não fazia referência aos direitos de autodefesa dos israelenses.
Até o momento, apenas uma resolução foi aprovada, na Assembleia Geral, que não tem o mesmo poder do Conselho de Segurança para impor decisões. O texto, que pede uma "trégua humanitária" na Faixa de Gaza, atualmente sob cerco de Israel, tem tom similar às propostas russas, evitando mencionar o Hamas.
O gesto de Gilad Erdan de exibir a estrela foi mal recebido por alguns setores da sociedade israelense. O Yad Vashem, o memorial oficial de Israel para lembrar as vítimas judaicas do Holocausto, que pediu que o diplomata usasse a bandeira israelense em vez da estrela.
O presidente do Yad Vashem, Dani Dayan, político e empresário que também teve uma controversa carreira como diplomata, disse "lamentar" a ação da delegação israelense em Nova York. "Esse ato desonra as vítimas do Holocausto, bem como o Estado de Israel", escreveu na rede X, antigo Twitter.
"A estrela amarela simboliza o desamparo do povo judeu e o fato de ele estar à mercê de outros. Agora temos um Estado independente e um exército forte. Somos os donos de nosso próprio destino. Hoje prenderemos em nossa lapela uma bandeira azul e branca, não uma estrela amarela", disse Dayan, que em 2015 chegou a ser indicado como embaixador no Brasil, mas nunca chegou a assumir o posto por causa da oposição de Brasília, que não simpatizava com a associação de Dayan ao movimento de assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada.
Ao colocar o emblema durante a sessão plenária, o diplomata Gilad Erdan afirmou que pretende usar a estrela até que os membros do conselho condenem explicitamente as atrocidades cometidas pelo grupo terrorista Hamas contra cidadãos israelenses. "Usaremos essa estrela até que vocês acordem e condenem as atrocidades do Hamas".
A estrela amarela é um dos principais símbolos de perseguição aos judeus, que em diferentes momentos históricos foram obrigados a usá-la como um sinal de identificação. A prática teve início no século 8º, no Califado Omíada, por imposição de governantes muçulmanos. Mais tarde, foi introduzida na era medieval europeia pelos cristãos. Seu uso mais recente e conhecido ocorreu durante o Holocausto, no século 20, quando os nazistas obrigaram os judeus de territórios ocupados a portarem variações da estrela com a palavra "judeu" inscrita no meio.
Além do embaixador Erdan, outros membros da delegação israelense na ONU exibiram a estrela na sessão de segunda-feira. Ao justificar por que havia feito isso aos representantes do Conselho, o embaixador evocou a história do Holocausto: "Alguns de vocês não aprenderam nada nos últimos 80 anos. Alguns de vocês esqueceram por que esse órgão foi criado."
"Portanto, vou lembrá-los. A partir de hoje, toda vez que olharem para mim, vão se lembrar do que significa ficar em silêncio diante do mal", disse o embaixador, referindo-se ao ataque terrorista do Hamas a Israel em 7 de outubro. "Assim como meus avós e os avós de milhões de judeus, de agora em diante minha equipe e eu usaremos estrelas amarelas", disse, levantando-se para afixar no peito de seu terno a insígnia, com a inscrição "Never Again" ("Nunca mais", em inglês). "Usaremos essa estrela até que vocês acordem e condenem as atrocidades do Hamas."
Até o momento, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, formado por 15 membros, não chegou a um consenso sobre um posicionamento unificado em relação à guerra entre Israel e o Hamas, que resultou na morte de 1.400 israelenses e numa dura resposta de Israel, que vem travando operações militares na Faixa de Gaza, enclave palestino controlado pelo grupo fundamentalista. Até o momento, quatro propostas de resoluções naufragaram no conselho por causa de divisões entre os cinco membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França), que têm poder de veto.
Duas propostas russas que eram vagas em mencionar o Hamas foram vetadas pelos EUA ou não conseguiram votos suficientes. Um texto dos americanos, mais explícito no apoio a Israel, por sua vez, foi vetado pela Rússia e China. Um quarto texto, proposto pelo Brasil e que chegou a garantir 12 votos, foi vetado pelos EUA sob a justificativa de que não fazia referência aos direitos de autodefesa dos israelenses.
Até o momento, apenas uma resolução foi aprovada, na Assembleia Geral, que não tem o mesmo poder do Conselho de Segurança para impor decisões. O texto, que pede uma "trégua humanitária" na Faixa de Gaza, atualmente sob cerco de Israel, tem tom similar às propostas russas, evitando mencionar o Hamas.
O gesto de Gilad Erdan de exibir a estrela foi mal recebido por alguns setores da sociedade israelense. O Yad Vashem, o memorial oficial de Israel para lembrar as vítimas judaicas do Holocausto, que pediu que o diplomata usasse a bandeira israelense em vez da estrela.
O presidente do Yad Vashem, Dani Dayan, político e empresário que também teve uma controversa carreira como diplomata, disse "lamentar" a ação da delegação israelense em Nova York. "Esse ato desonra as vítimas do Holocausto, bem como o Estado de Israel", escreveu na rede X, antigo Twitter.
"A estrela amarela simboliza o desamparo do povo judeu e o fato de ele estar à mercê de outros. Agora temos um Estado independente e um exército forte. Somos os donos de nosso próprio destino. Hoje prenderemos em nossa lapela uma bandeira azul e branca, não uma estrela amarela", disse Dayan, que em 2015 chegou a ser indicado como embaixador no Brasil, mas nunca chegou a assumir o posto por causa da oposição de Brasília, que não simpatizava com a associação de Dayan ao movimento de assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada.
A guerra da propaganda: lições do passado
Como estamos em guerra de novo, voltei ao meu manual de propaganda bélica de cabeceira. Que estamos em guerra, creio que ninguém duvidará. Não me refiro, claro, apenas às guerras em sentido estrito —Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina—, mas também aos conflitos políticos deflagrados como guerra cultural e guerrilha ideológica, que nem sempre matam, mas arrastam países à destruição e terminam em tentativas de golpes de Estado, como vemos seguidamente desde 2016.
E o manual a que me refiro é, na verdade, um tratado muito bem documentado sobre o uso da propaganda na Primeira Guerra. Chama-se "Propaganda Technique in the World War" e foi publicado por Harold D. Lasswell em 1927. Na guerra, diz ele, desde que a meta a ser alcançada passe por alguma forma de convencimento das pessoas, a propaganda tem que ser considerada.
Nos conflitos, as mentes são tão importantes quantos as armas e as pressões econômicas, pois são elas que mobilizam, motivam ou desmoralizam, recrutam, engajam, justificam, superam ou criam resistências à participação, dão ou retiram superioridades morais, tornam os sacrifícios toleráveis ou inaceitáveis. Por isso, as notícias e boatos da propaganda são tão importantes quantos mísseis, dinheiro e músculos; a propaganda é a guerra por outros meios, é a guerra por meio de ideias, conceitos, cognições, sentimentos e atitudes.
Lasswell dedica um inteiro capítulo à satanização do "outro lado" durante um conflito. Quando a guerra está prestes a iniciar, o trabalho da propaganda consiste em fazer com que se acredite que foi o inimigo quem deu início às hostilidades e que a guerra, a este ponto, não só é inevitável, mas o único recurso possível para se enfrentar o mal. Uma vez, contudo, que a guerra está em curso, é preciso reforçar a motivação para se manter em um conflito que já mostra o seu lado monstruoso e exige sacrifícios. E isso se faz por meio da reiteração de exemplos da depravação do inimigo, que demonstrem que se a guerra é feia, o inimigo é muito pior.
O código moral do público vai determinar os temas e as ênfases nos exemplos de maldade que precisam ser apresentados. De toda forma, ninguém resiste a responder com estupefação e ódio ao inimigo diante de exemplos de atrocidades. E quanto mais vulneráveis e inofensivos forem as suas vítimas, mais serão óbvias razões para odiar o inimigo. O que outro faz ou fez com "mulheres, crianças, idosos, padres e freiras, prisioneiros e não combatentes mutilados" não será esquecido nem perdoado.
A originalidade e a verdade dos relatos estão longe de ser indispensáveis, mas só um inimigo degenerado e cruel é capaz de degolar crianças ou matá-las de fome, de violentar mulheres e sequestrar velhinhas, de bombardear hospitais ou metralhar garotos.
Para rematar a convicção de que o inimigo é sombrio e perverso, a propaganda deve manter ativa uma lista de crimes perpetrados pelo outro lado, o catálogo de infâmias. Desumanidades, genocídio, impiedade, tudo listado e contabilizado. Tudo deve ser fartamente ilustrado com "fotografias de cadáveres mutilados e aldeias devastadas". Se possível, testemunhas oculares devem contar a sua própria história, depoimentos de quem esteve com o inimigo e mudou de lado, enojado com tamanha iniquidade, devem ser publicados, assim como relatórios assinados por pessoas de reputação.
A este pronto, a contrapropaganda do inimigo já estará ativada para a negação: "as histórias de atrocidade em massa e destruição intencional são generalizações maliciosas de alguns exemplos individuais lamentáveis", dirá; o inimigo é vil e falso, não se deve crer em uma palavra da sua boca. É quanto aparecem os exemplos de atrocidades e infâmias realizadas pelo lado que primeiro acusou.
Cem anos antes das invenções das fake news, Lasswell já advertia aos seus leitores que "a propaganda real, onde quer que seja estudada, tem um grande elemento de falsificação. Isso varia desde colocar uma falsa data em um despacho, passando pela impressão de boatos não verificados, chegando até à ‘encenação’ de eventos". Os exemplos são copiosos, vão do uso de imagens, em parte retocadas, do pogrom judeu de 1905 como se fosse uma nova atrocidade inimiga, à falsificação de edições inteiras de jornais do outro país. Ou a invenção pura e simples de fatos.
Nada há de novo sob o sol da propaganda entre as guerras do século 20 e as do século 21. Nem sequer o uso dos horrores como meio de criar animosidade, alimentar o ódio e manter as pessoas em estado permanente de conflito.
E o manual a que me refiro é, na verdade, um tratado muito bem documentado sobre o uso da propaganda na Primeira Guerra. Chama-se "Propaganda Technique in the World War" e foi publicado por Harold D. Lasswell em 1927. Na guerra, diz ele, desde que a meta a ser alcançada passe por alguma forma de convencimento das pessoas, a propaganda tem que ser considerada.
Nos conflitos, as mentes são tão importantes quantos as armas e as pressões econômicas, pois são elas que mobilizam, motivam ou desmoralizam, recrutam, engajam, justificam, superam ou criam resistências à participação, dão ou retiram superioridades morais, tornam os sacrifícios toleráveis ou inaceitáveis. Por isso, as notícias e boatos da propaganda são tão importantes quantos mísseis, dinheiro e músculos; a propaganda é a guerra por outros meios, é a guerra por meio de ideias, conceitos, cognições, sentimentos e atitudes.
Lasswell dedica um inteiro capítulo à satanização do "outro lado" durante um conflito. Quando a guerra está prestes a iniciar, o trabalho da propaganda consiste em fazer com que se acredite que foi o inimigo quem deu início às hostilidades e que a guerra, a este ponto, não só é inevitável, mas o único recurso possível para se enfrentar o mal. Uma vez, contudo, que a guerra está em curso, é preciso reforçar a motivação para se manter em um conflito que já mostra o seu lado monstruoso e exige sacrifícios. E isso se faz por meio da reiteração de exemplos da depravação do inimigo, que demonstrem que se a guerra é feia, o inimigo é muito pior.
O código moral do público vai determinar os temas e as ênfases nos exemplos de maldade que precisam ser apresentados. De toda forma, ninguém resiste a responder com estupefação e ódio ao inimigo diante de exemplos de atrocidades. E quanto mais vulneráveis e inofensivos forem as suas vítimas, mais serão óbvias razões para odiar o inimigo. O que outro faz ou fez com "mulheres, crianças, idosos, padres e freiras, prisioneiros e não combatentes mutilados" não será esquecido nem perdoado.
A originalidade e a verdade dos relatos estão longe de ser indispensáveis, mas só um inimigo degenerado e cruel é capaz de degolar crianças ou matá-las de fome, de violentar mulheres e sequestrar velhinhas, de bombardear hospitais ou metralhar garotos.
Para rematar a convicção de que o inimigo é sombrio e perverso, a propaganda deve manter ativa uma lista de crimes perpetrados pelo outro lado, o catálogo de infâmias. Desumanidades, genocídio, impiedade, tudo listado e contabilizado. Tudo deve ser fartamente ilustrado com "fotografias de cadáveres mutilados e aldeias devastadas". Se possível, testemunhas oculares devem contar a sua própria história, depoimentos de quem esteve com o inimigo e mudou de lado, enojado com tamanha iniquidade, devem ser publicados, assim como relatórios assinados por pessoas de reputação.
A este pronto, a contrapropaganda do inimigo já estará ativada para a negação: "as histórias de atrocidade em massa e destruição intencional são generalizações maliciosas de alguns exemplos individuais lamentáveis", dirá; o inimigo é vil e falso, não se deve crer em uma palavra da sua boca. É quanto aparecem os exemplos de atrocidades e infâmias realizadas pelo lado que primeiro acusou.
Cem anos antes das invenções das fake news, Lasswell já advertia aos seus leitores que "a propaganda real, onde quer que seja estudada, tem um grande elemento de falsificação. Isso varia desde colocar uma falsa data em um despacho, passando pela impressão de boatos não verificados, chegando até à ‘encenação’ de eventos". Os exemplos são copiosos, vão do uso de imagens, em parte retocadas, do pogrom judeu de 1905 como se fosse uma nova atrocidade inimiga, à falsificação de edições inteiras de jornais do outro país. Ou a invenção pura e simples de fatos.
Nada há de novo sob o sol da propaganda entre as guerras do século 20 e as do século 21. Nem sequer o uso dos horrores como meio de criar animosidade, alimentar o ódio e manter as pessoas em estado permanente de conflito.
Pesadelos para ficar
Que pensam, de nós, crianças, cães, gatos,
quando chovem, sobre eles, infernos,
numa Palestina de insensatos,
que tudo muda em escuros invernos?
Podem as crianças compreender
que seres humanos rebentem casas,
ponham o mundo todo a arder
e, a todos, eles cortem as asas?
Crianças e animais aterrados,
para sempre mutilados e mudos,
porque, subitamente atirados
para o meio da luta, como escudos!
Um horror que irá sempre visitar
os pesadelos dos que vão sobrar!
Eugénio Lisboa
quando chovem, sobre eles, infernos,
numa Palestina de insensatos,
que tudo muda em escuros invernos?
Podem as crianças compreender
que seres humanos rebentem casas,
ponham o mundo todo a arder
e, a todos, eles cortem as asas?
Crianças e animais aterrados,
para sempre mutilados e mudos,
porque, subitamente atirados
para o meio da luta, como escudos!
Um horror que irá sempre visitar
os pesadelos dos que vão sobrar!
Eugénio Lisboa
Os nossos criminosos de guerra e os outros
I
Quanto tempo ainda será necessário para que a grande audiência planetária possa perceber a dimensão do massacre que Israel está perpetrando na Palestina? Se é que um dia isso vai acontecer. Porque a verdade é que os vencedores não gostam de revelar seus crimes, têm recursos para impedir que venham à tona e até para fazer com que pareçam atos do mais puro heroísmo.
II
Centenas de milhares de civis foram incendiados vivos em dezenas de cidades alemãs ao final da Segunda Guerra, apenas para que a indústria bélica aeronáutica fizesse dinheiro, demonstrasse seu poderio e aperfeiçoasse sua tecnologia de matar. Quem quiser ter noção da magnitude desses ataques (e da ambição dessa gente) pode ler O Incêndio – Como os aliados destruíram as cidades alemãs do historiador Jorg Friedrich (Ed. Record, 2006). Esquecendo qualquer outro juízo que se possa fazer do recém-lançado Oppenheimer, há pelo menos uma cena digna de imenso louvor, justamente aquela que, ainda antes da metade do filme, registra o gozo orgiástico da pequena plateia que ouve o cientista chefe do projeto Manhattan anunciar a sucesso do lançamento da primeira das bombas. Como sabemos, e sabiam eles, porque era esse o propósito da coisa, o artefacto matou mais de 150 mil civis. A Alemanha havia se rendido três meses antes, no começo de maio. Então, qual era o propósito daquilo? Três dias depois, o gozo certamente terá se repetido (embora o filme do sr. Christopher Nolan não o mostre), com a morte de mais 80 mil pessoas em Nagasaki. E nós, desde criancinhas, aprendemos a celebrar o grande feito dos heróis que derrotaram os cruéis nazistas e seus aliados amarelos. Preto no branco. O bem e o mal. O mocinho e o bandido, como Hollywood nos ensinou.
III
Quando se tratava de Putin, ao primeiro indício já o processaram por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Não faz tanto tempo assim, está ainda bastante fresco na memória para quem quiser lembrar. O russo é atualmente um banido da grande maioria dos foros internacionais e se deixa o seu país é para visitar apenas os mais fiéis aliados, do contrário corre o risco de ser preso. Para Netanyahu, que manda bombardear civis ou os cerca como animais deixando-os à mingua, sem água, comida e energia, toda a condescendência humanitária da civilização ocidental. Pouco importam as evidências de brutalidade e o persistente assassinato de civis, em grande parte crianças, até agora à luz do dia e à vista de todo o planeta – as imagens dessas três semanas do ininterrupto ataque israelense a Gaza fazem com que os supostos crimes que tornaram Putin persona non grata ao Ocidente pareçam estórias da carochinha.
IV
É difícil encontrar na história do mundo moderno um momento no qual a suposta grande criação da modernidade – as tradicionais democracias ocidentais e suas instituições representativas – tenha descido a um patamar tão rasteiro de vileza e indignidade. E dessa debacle moral profundíssima não escapa, senão o contrário, a famigerada instituição que em tese deveria cuidar, em nome do bom público, da fiscalização dos chamados poderes do Estado: a imprensa livre. Será algum dia capaz de se recuperar dessa descida ao esgoto?
(Um parêntesis para registrar a performance absolutamente fora da curva de boa parte do jornalismo da RTVE, ou Radio y Televisión Publica Española.)
V
Desde o princípio, o Estado de Israel não tergiversou por um só instante acerca do ineditismo das medidas de represália que viria a tomar. Já pelas inesquecíveis palavras do primeiro-ministro israelense, as famosas “isso é só começo”, era muito fácil adivinhar o tamanho da retaliação. Dia após dia, semana após semana, sem que nem a Europa, nem aqueles que talvez pudessem injetar uma dose minúscula de inibição na testosterona ultra belicista de Netanyahu, os Estados Unidos, tentassem interpor obstáculos à desproporcional escalada de violência anunciada. Naturalmente, durante essas três semanas, tudo o que vimos foi justamente esse previsível crescendo de brutalidade bélica. Na madrugada de sexta para sábado, 27 para 28 de outubro, um passo a mais em direção às trevas. Quem saberá calcular o alcance desse passo? Como os criminosos preferem atuar sempre às escuras e como, aparentemente, passarão a um novo patamar de violência, ainda que talvez inimaginável para muitos de nós, antes de darem início ao ataque do final de semana cortaram todas as formas de comunicação a partir do interior da Faixa. Nenhuma imagem sairá mais dali, absolutamente nada que não queiram mostrar os perpetradores.
VI
Um amigo recorda para mim uma das cenas do documentário do cineasta sérvio Emir Kusturica sobre Maradona. Nessa cena, assim como se meio ao acaso, ao passar por um edifício bombardeado na cidade de Belgrado, Maradona se dirige ao diretor e pergunta: “Quem fez isso?”. Kusturica, algo poético e cortante, não titubeia: “Javier Solana”. O que faz o cineasta, com seu procedimento poético, é tirar a máscara institucional atrás da qual esses homens tão valorosos gostam de se esconder. Porque afinal são homens e têm nomes e sobrenomes os que afinal ordenam que as bombas sejam lançadas sobre as cidades e sobre as pessoas, chamem-se Netanyahu, Biden ou Javier Solana. O espanhol foi secretário-geral da OTAN entre 1995 e 1999, durante as guerras na extinta Iugoslávia. Semana passada, deixou momentaneamente sua confortável aposentadoria para declarar que a reação de Israel à incursão e aos assassinatos do Hamas era “muito desproporcional”. Ser secretário-geral da OTAN não é o mesmo que ser secretário-geral da ONU. Tem lá suas equivalências simbólicas, mas não é a mesma coisa. Assim que quando um António Guterres abandona a subserviência e num raro momento de crua sinceridade afirma de público que o Hamas “não nasceu do vácuo”, algo de valor deve ser creditado à sua declaração. Mas quando um ex-secretário geral da Armada Ocidental vem a público para condenar a hybris israelense é possivelmente porque todos os limites foram ultrapassados, e foram ultrapassados com sobras.
VII
A manchete no topo da página do El País (imagino que de muitos outros jornais) deve ter deixado escandalizados a todos aqueles que ainda são capazes de se escandalizar: Israel pede a demissão do secretário-geral da ONU e bloqueia os vistos dos representantes do organismo internacional – O embaixador israelense disse que é “o momento de ensinar uma lição” às Nações Unidas depois que António Guterres afirmou que os ataques do Hamas “não vêm do nada”, mas de 50 anos de ocupação asfixiante”. Ou seja, Israel exige que o secretário-geral da ONU seja castigado e sumariamente demitido pelas palavras que havia ousado pronunciar. Que liberdade é essa que toma o moderador-mor das Nações Unidas de dizer uma vírgula que ao Estado de Israel não agrade? Castigado, talvez não da mesma maneira como estão sendo castigados os palestinos de Gaza, mas de todo modo, castigado.
VIII
No meio da tragédia de incomensuráveis dimensões, vemos a farsa de grosso calibre e terrível falta de oportunidade ou senso de tamanho. Num artigo do The Economist de 24 último: “Que frágeis são as forças que tentam manter as coisas unidas. Quinze horas depois da explosão (do hospital em Gaza), aterrizou em Israel o presidente Joe Biden, um ancião com o peso do mundo sobre seus ombros ” – o itálico é de minha responsabilidade, claro.
IX
X
Uma mui modesta indagação final: por que Netanyahu – e Biden – não foram ainda (e não serão jamais) denunciados ao Tribunal Penal Internacional de Haia?
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