quarta-feira, 8 de novembro de 2017
Armas, testosterona e alegria, só isso para o Brasil?
Escrevo esta coluna abalado pelo horror da matança em uma igreja do Texas, Estados Unidos, que deixou 26 mortos, entre os quais meninos e mulheres grávidas. No seu Facebook, o ex-militar autor do massacre tinha exibido, orgulhoso, acariciando-a, a arma do crime, à qual apelidava de “vadia do mal”.
Será verdade que também o sonho de todos os brasileiros é possuir uma arma, como acredita o ex-militar candidato à Presidência Jair Bolsonaro, ou que prefere a política da agressividade, como afirma Ciro Gomes? O mais provável é que sejam os políticos, empenhados em defender sua permanência no poder e manter seus privilégios, herança de um passado que a sociedade já não aceita, quem menos entenda o que está querendo nascer no coração do novo Brasil em trabalho de parto.
Salman Rushdie, o autor dos polêmicos Versos Satânicos, obra que lhe custou ser condenado à morte pelos islamistas intransigentes, acaba de afirmar que “é preciso dar passagem à nova geração que está chegando com vontade de transformar o mundo”. Segundo o escritor, a velha geração, com seus acertos e fracassos, já deu o que tinha de dar e tem de passar o bastão para a nova, permitindo-lhe que também ela se engane.
Se os políticos adquirirem o gosto de analisar, como simples observadores, o mundo das redes sociais em seu aspecto de relacionamento humano, poderão detectar, como uma corrente subterrânea, um esforço dos brasileiros para sair do anonimato, para serem reconhecidos no que cada um pode oferecer de melhor. Não se observa fome por armas, mas de demonstrar que existem, que estão vivos. O ódio, a violência e a intolerância que também correm pelas veias das redes são mais uma máscara que encobre uma confissão de frustração pessoal ou coletiva, que não é brasileira, mas mundial.
Quando os pré-candidatos à Presidência consideram que sabem, por exemplo, o que os brasileiros desejam, se esquecem de que este Brasil já não é o de apenas 20 anos atrás. Que a sociedade amadureceu. Quando, por exemplo, Lula diz que saberia como devolver a alegria a este país, talvez ignore que o Brasil não está triste, mas irritado, que mais do que em busca de alegria está atrás de uma forma nova de ser governado sem velhos paternalismos, porque é uma sociedade que já se sente adulta. Ou quando Bolsonaro, para atender às preocupações das pessoas com a segurança pública, fala em armar os brasileiros e matar todos os bandidos, como se isso fosse tão fácil, está propondo uma receita de infantilismo a uma sociedade adulta. E quando Ciro Gomes exalta a política agressiva da testosterona, age como se a sociedade brasileira, muito especialmente a feminina, não tivesse tomado consciência de sua dignidade como pessoa, que não passa pelos velhos clichês machistas. Neste campo o Brasil talvez seja mais moderno e avançado que muitos outros países desenvolvidos.
Os velhos políticos ainda não entenderam bem o que se move no interior do gigante brasileiro que busca recuperar o melhor de si mesmo. Este país sofre hoje mais que ontem porque conhece melhor a realidade, aspira a mais, é crítico e talvez por isso mais desiludido e inconformado. E está descobrindo o submundo da política do poder.
O Brasil é um suplicante por uma vida melhor. Não é um país ignorante, apesar do alto índice de analfabetismo funcional que o aflige, herança da velha escravidão. É um povo criativo, empreendedor, capaz de sair à tona de suas dificuldades e com uma paciência infinita. Não sou eu quem diz isso, quem diz são os caçadores internacionais de talentos. Não é autodestrutivo, talvez seja desconfiado daqueles que deveriam organizar uma sociedade menos cruelmente desigual e com oportunidades para todos. É um povo rico em recursos, unido, sem separatismos nem terrorismo. É religioso por história, antigo e moderno ao mesmo tempo.
Estarão entendendo isso os que pretendem guiar esta complexa e rica sociedade brasileira como se fosse a mesma de ontem, fácil de domesticar? O Brasil é mais vivo e mais maduro do que aparece na superfície. Que seus governantes pretendam conquistá-lo outra vez com espelhinhos ou falsas receitas de felicidade, como fizeram os primeiros conquistadores, lhes será cada vez mais difícil.
O Brasil, diz um religioso que trabalha em uma das comunidades marginais da periferia do Rio, “o que quer é que calem as armas, está farto de violência, quer paz”. Quer ser partícipe do banquete de um país rico e saqueado por aqueles que deveriam fazê-lo frutificar. Tudo isso sem perder tempo com desgastadas ideologias. Está descobrindo que poderia nadar em águas menos envenenadas. O Brasil mais jovem está de pé e quer, como no verso do poeta, “fazer o caminho ao andar”.
Vão deixar?
Será verdade que também o sonho de todos os brasileiros é possuir uma arma, como acredita o ex-militar candidato à Presidência Jair Bolsonaro, ou que prefere a política da agressividade, como afirma Ciro Gomes? O mais provável é que sejam os políticos, empenhados em defender sua permanência no poder e manter seus privilégios, herança de um passado que a sociedade já não aceita, quem menos entenda o que está querendo nascer no coração do novo Brasil em trabalho de parto.
Salman Rushdie, o autor dos polêmicos Versos Satânicos, obra que lhe custou ser condenado à morte pelos islamistas intransigentes, acaba de afirmar que “é preciso dar passagem à nova geração que está chegando com vontade de transformar o mundo”. Segundo o escritor, a velha geração, com seus acertos e fracassos, já deu o que tinha de dar e tem de passar o bastão para a nova, permitindo-lhe que também ela se engane.
Se os políticos adquirirem o gosto de analisar, como simples observadores, o mundo das redes sociais em seu aspecto de relacionamento humano, poderão detectar, como uma corrente subterrânea, um esforço dos brasileiros para sair do anonimato, para serem reconhecidos no que cada um pode oferecer de melhor. Não se observa fome por armas, mas de demonstrar que existem, que estão vivos. O ódio, a violência e a intolerância que também correm pelas veias das redes são mais uma máscara que encobre uma confissão de frustração pessoal ou coletiva, que não é brasileira, mas mundial.
Quando os pré-candidatos à Presidência consideram que sabem, por exemplo, o que os brasileiros desejam, se esquecem de que este Brasil já não é o de apenas 20 anos atrás. Que a sociedade amadureceu. Quando, por exemplo, Lula diz que saberia como devolver a alegria a este país, talvez ignore que o Brasil não está triste, mas irritado, que mais do que em busca de alegria está atrás de uma forma nova de ser governado sem velhos paternalismos, porque é uma sociedade que já se sente adulta. Ou quando Bolsonaro, para atender às preocupações das pessoas com a segurança pública, fala em armar os brasileiros e matar todos os bandidos, como se isso fosse tão fácil, está propondo uma receita de infantilismo a uma sociedade adulta. E quando Ciro Gomes exalta a política agressiva da testosterona, age como se a sociedade brasileira, muito especialmente a feminina, não tivesse tomado consciência de sua dignidade como pessoa, que não passa pelos velhos clichês machistas. Neste campo o Brasil talvez seja mais moderno e avançado que muitos outros países desenvolvidos.
Os velhos políticos ainda não entenderam bem o que se move no interior do gigante brasileiro que busca recuperar o melhor de si mesmo. Este país sofre hoje mais que ontem porque conhece melhor a realidade, aspira a mais, é crítico e talvez por isso mais desiludido e inconformado. E está descobrindo o submundo da política do poder.
O Brasil é um suplicante por uma vida melhor. Não é um país ignorante, apesar do alto índice de analfabetismo funcional que o aflige, herança da velha escravidão. É um povo criativo, empreendedor, capaz de sair à tona de suas dificuldades e com uma paciência infinita. Não sou eu quem diz isso, quem diz são os caçadores internacionais de talentos. Não é autodestrutivo, talvez seja desconfiado daqueles que deveriam organizar uma sociedade menos cruelmente desigual e com oportunidades para todos. É um povo rico em recursos, unido, sem separatismos nem terrorismo. É religioso por história, antigo e moderno ao mesmo tempo.
Estarão entendendo isso os que pretendem guiar esta complexa e rica sociedade brasileira como se fosse a mesma de ontem, fácil de domesticar? O Brasil é mais vivo e mais maduro do que aparece na superfície. Que seus governantes pretendam conquistá-lo outra vez com espelhinhos ou falsas receitas de felicidade, como fizeram os primeiros conquistadores, lhes será cada vez mais difícil.
O Brasil, diz um religioso que trabalha em uma das comunidades marginais da periferia do Rio, “o que quer é que calem as armas, está farto de violência, quer paz”. Quer ser partícipe do banquete de um país rico e saqueado por aqueles que deveriam fazê-lo frutificar. Tudo isso sem perder tempo com desgastadas ideologias. Está descobrindo que poderia nadar em águas menos envenenadas. O Brasil mais jovem está de pé e quer, como no verso do poeta, “fazer o caminho ao andar”.
Vão deixar?
A República e os farsantes
A desmoralização do Estado democrático de Direito continua em marcha. Nas últimas semanas os três poderes da república protagonizaram momentos lamentáveis. O Executivo comprando votos na Câmara. Entregou cargos na máquina do Estado com o claro objetivo de favorecer negócios ilícitos aos apaniguados dos deputados, isso como se fosse algo absolutamente natural, um instrumento da democracia que teria vindo lá da Atenas de Péricles — é necessário certo cuidado nessa afirmação pois a maioria dos deputados pode imaginar que o ateniense era um pagodeiro. Concedeu a liberação de verbas orçamentárias para favorecer interesses pouco republicanos dos deputados nas suas bases. Grande parte dessas obras são inúteis: é dinheiro público jogado fora. Serve para favorecer empreiteiras e políticos, mais ainda quando nos aproximamos de uma nova eleição, que deve ser a mais cara da história.
No Congresso, nada indica que haverá uma moralização dos costumes. Eles não se corrigem. Sentem-se acima do bem e do mal. Têm plena confiança na impunidade — e não faltam exemplos. Para a elite não é aplicável o caput do artigo 5º da Constituição. Continuam legislando em causa própria. A maioria desconhece o que significa interesse público. Estão lá para enriquecer, e rápido.
O STF protagoniza em cada sessão embates de baixíssimo nível.
Lembra discussões de botequim pouco antes do momento da saideira.
O STF — ah, o STF… — protagoniza em cada sessão embates de baixíssimo nível. Lembra discussões de botequim pouco antes do fechamento, no momento da saideira. Nada contribui para o País, nada contribui para a Justiça. Por sinal, o que menos importa é a justiça. Fazem descaradamente política. E os autos dos processos? Doce ilusão. São meros pretextos para tecer considerações sobre Deus e sua obra. Um ministro ataca o outro. Se odeiam. Luminares do Direito? Não! São os modernos Pachecos, aquele do “imenso talento”, célebre personagem de Eça de Queirós imortalizado no livro “A correspondência de Fradique Mendes”.
E a vida segue. Parece um filme. E de terror. Nós, cidadãos, somos apenas espectadores. Podemos, no máximo, vaiar, mas não conseguimos mudar a história. As Polianas de plantão — e são tantas — vão, como de hábito, elaborar ilusões sobre as possibilidades de mudança. Que nada! A via crucis deve continuar. O País pode mudar? Sim, no momento que o povo se recusar a ser levado ao Gólgota para o sacrifício.
Marco Antonio Villa
Brasil, um país de Luislindas
O artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal estabelece um teto salarial para o funcionalismo: "O subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal".
Apesar disso, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, foi manchete de vários jornais em razão de seu requerimento à Casa Civil, pedindo que fosse somado à sua aposentadoria como desembargadora (R$ 30,5 mil/mês) também o salário integral de ministra (R$ 30,9 mil/mês), o que traria seu ganho mensal para R$ 61,4 mil/mês, ultrapassando, em muito, os vencimentos dos ministros do STF (R$ 33,7 mil/mês).
O "argumento" da ministra (entre outros de validade tão duvidosa quanto se "vestir com dignidade") é que, devido ao teto, seu trabalho no ministério acrescenta "apenas" R$ 3.300/mês a seu rendimento, o que, no seu imparcial entendimento, configuraria trabalho análogo à escravidão, pois "todo o mundo sabe que quem trabalha sem receber é escravo".
Noto somente que o rendimento adicional da ministra supera, com folga, a média de todos os trabalhadores brasileiros, R$ 2.100/mês, e equivale à média da categoria com maior rendimento, o funcionalismo.
Da mesma forma, não podemos deixar passar que ninguém a forçou a assumir um ministério; nesse sentido, sua decisão se equipara à de milhares de pessoas que se dedicam ao trabalho voluntário, sem receber nada, e que, certamente, não se consideram escravas.
Não é esse, porém, o ponto central da coluna, por mais escandalosa que seja sua atitude. Em parte porque o fiasco de seu pedido —consequência da exposição à mídia— é a exceção, não a regra, em casos como esses.
Em agosto deste ano, houve também notícias sobre juízes cujos vencimentos superavam o teto constitucional, por força de vantagens eventuais, indenizações e demais penduricalhos que, por entendimento, vejam só, da própria Justiça, não estariam sujeitos a limitação do teto. E, diga-se de passagem, uma breve busca pelo Google nota casos similares em 2016, 2015, 2014...
Mais relevante ainda é que tais casos ainda não correspondem, nem de longe, à totalidade dos privilégios que tipicamente são conferidos pelo setor público a grupos próximos ao poder.
A triste verdade é que a sociedade brasileira se tornou, e não de hoje, prisioneira de um círculo vicioso de caça à renda (a melhor tradução que vi para rent-seeking ).
"Renda", no sentido econômico do termo, representa a remuneração a algum insumo acima do valor que seria necessário para mantê-lo empregado nas condições atuais. Parece abstrato, mas os exemplos abundam: de licenças para táxis (um caso bastante atual, a propósito) à proteção contra concorrência internacional, passando por subsídios e toda sorte de privilégios.
A caça à renda representa um imenso jogo de rouba-monte, com o agravante de que sua prática contribui para reduzir o tamanho do monte, pois recursos reais da sociedade são utilizados para esse fim, e não para a produção, além de tipicamente favorecer setores menos produtivos. Embora possa enriquecer alguns de seus participantes, esse jogo empobrece as sociedades que o praticam.
Curioso mesmo, porém, é como economistas autodenominados "progressistas" se engajam facilmente na defesa da caça à renda. Eu já passei da idade de achar que se trata apenas de ingenuidade.
Apesar disso, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, foi manchete de vários jornais em razão de seu requerimento à Casa Civil, pedindo que fosse somado à sua aposentadoria como desembargadora (R$ 30,5 mil/mês) também o salário integral de ministra (R$ 30,9 mil/mês), o que traria seu ganho mensal para R$ 61,4 mil/mês, ultrapassando, em muito, os vencimentos dos ministros do STF (R$ 33,7 mil/mês).
O "argumento" da ministra (entre outros de validade tão duvidosa quanto se "vestir com dignidade") é que, devido ao teto, seu trabalho no ministério acrescenta "apenas" R$ 3.300/mês a seu rendimento, o que, no seu imparcial entendimento, configuraria trabalho análogo à escravidão, pois "todo o mundo sabe que quem trabalha sem receber é escravo".
Noto somente que o rendimento adicional da ministra supera, com folga, a média de todos os trabalhadores brasileiros, R$ 2.100/mês, e equivale à média da categoria com maior rendimento, o funcionalismo.
Da mesma forma, não podemos deixar passar que ninguém a forçou a assumir um ministério; nesse sentido, sua decisão se equipara à de milhares de pessoas que se dedicam ao trabalho voluntário, sem receber nada, e que, certamente, não se consideram escravas.
Em agosto deste ano, houve também notícias sobre juízes cujos vencimentos superavam o teto constitucional, por força de vantagens eventuais, indenizações e demais penduricalhos que, por entendimento, vejam só, da própria Justiça, não estariam sujeitos a limitação do teto. E, diga-se de passagem, uma breve busca pelo Google nota casos similares em 2016, 2015, 2014...
Mais relevante ainda é que tais casos ainda não correspondem, nem de longe, à totalidade dos privilégios que tipicamente são conferidos pelo setor público a grupos próximos ao poder.
A triste verdade é que a sociedade brasileira se tornou, e não de hoje, prisioneira de um círculo vicioso de caça à renda (a melhor tradução que vi para rent-seeking ).
"Renda", no sentido econômico do termo, representa a remuneração a algum insumo acima do valor que seria necessário para mantê-lo empregado nas condições atuais. Parece abstrato, mas os exemplos abundam: de licenças para táxis (um caso bastante atual, a propósito) à proteção contra concorrência internacional, passando por subsídios e toda sorte de privilégios.
A caça à renda representa um imenso jogo de rouba-monte, com o agravante de que sua prática contribui para reduzir o tamanho do monte, pois recursos reais da sociedade são utilizados para esse fim, e não para a produção, além de tipicamente favorecer setores menos produtivos. Embora possa enriquecer alguns de seus participantes, esse jogo empobrece as sociedades que o praticam.
Curioso mesmo, porém, é como economistas autodenominados "progressistas" se engajam facilmente na defesa da caça à renda. Eu já passei da idade de achar que se trata apenas de ingenuidade.
Não longe da indignidade
Usávamos expressões emprestadas que eram uma forma de não pensar, de fugir daquela realidade a qual queríamos que as pessoas vissem, mas que nós mesmos agora mal conseguíamos encarar. Nós entronizamos a indignidade e a angústia. Não fomos mais longe do que issoV. S. Naipaul, "Os mímicos"
Justiça tardia
Todas as manhãs, funcionários de limpeza da escola primária da pequena comunidade de Piquiá de Baixo, no Nordeste do Brasil, esforçam-se para limpar a fuligem que se acumula no chão das salas de aula e nas carteiras durante a noite. Mas a fuligem continua a cair pelas telhas das salas de aula durante o dia.
“Ainda que os funcionários limpem as salas todas as manhãs, quem estuda no período da tarde logo volta a sentir a fuligem se acumulando nas carteiras e cadeiras”, disse Maria (nome fictício), uma moradora de Piquiá de Baixo que frequentou a escola primária até a quarta série.
Piquiá de Baixo é um povoado de cerca de 300 famílias, localizado em uma área rural do estado do Maranhão. Na década de 1980, um complexo industrial siderúrgico foi construído bem ao lado da comunidade, com algumas usinas situadas a apenas 50 metros das residências. A comunidade fica às margens da ferrovia que liga a mina de Carajás, no Pará, ao Porto de São Luís, no Maranhão. Os trens com minério de ferro, em direção ao porto, param em Piquiá de Baixo para que as indústrias transformem o minério em ferro gusa.
O que acontece em Piquiá de Baixo importa para todo o Brasil. Grandes projetos de desenvolvimento trouxeram poluição ambiental a diversas comunidades pelo país — como a de Santa Cruz, no Rio deJaneiro, e da Ilha de Maré, na Bahia. Outros grupos estão mapeando cerca de cem focos de poluição no país.
As autoridades ambientais do Maranhão não monitoram com frequência a qualidade do ar, do solo e da água em Piquiá de Baixo. Mas jovens da comunidade vêm medindo, desde 2016, a qualidade do ar da região com o auxílio de pequenos dispositivos portáteis. Os resultados, publicados no mês passado, estavam acima da concentração média anual recomendada pela Organização Mundial da Saúde e, em vários dias, ultrapassavam o limite diário recomendado.
No entanto, as autoridades não respondem aos resultados com a urgência necessária. Desde 2008, a Associação de Moradores de Piquiá de Baixo luta pelo reassentamento da comunidade.
Em maio de 2016, o governo federal assinou um contrato com a associação de moradores para o financiamento parcial da construção da nova comunidade sob o programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Mas o processo de reassentamento continua parado dentro do Ministério das Cidades, à espera da aprovação formal dos projetos. Especialistas em direitos humanos da ONU escreveram para o governo federal em 2015 perguntando quando o reassentamento vai ser realizado, mas não receberam nenhuma resposta até o momento.
“A cada dia que ficamos aqui estamos expostos à mesma poluição”, disse Maria. “Essa é uma comunidade periférica, e as autoridades se esqueceram de nós”. É hora, portanto, de acabar com o atraso. Justiça tardia é justiça negada, e já passou da hora de reassentar a comunidade.
Richard Pearshouse
“Ainda que os funcionários limpem as salas todas as manhãs, quem estuda no período da tarde logo volta a sentir a fuligem se acumulando nas carteiras e cadeiras”, disse Maria (nome fictício), uma moradora de Piquiá de Baixo que frequentou a escola primária até a quarta série.
Piquiá de Baixo é um povoado de cerca de 300 famílias, localizado em uma área rural do estado do Maranhão. Na década de 1980, um complexo industrial siderúrgico foi construído bem ao lado da comunidade, com algumas usinas situadas a apenas 50 metros das residências. A comunidade fica às margens da ferrovia que liga a mina de Carajás, no Pará, ao Porto de São Luís, no Maranhão. Os trens com minério de ferro, em direção ao porto, param em Piquiá de Baixo para que as indústrias transformem o minério em ferro gusa.
O que acontece em Piquiá de Baixo importa para todo o Brasil. Grandes projetos de desenvolvimento trouxeram poluição ambiental a diversas comunidades pelo país — como a de Santa Cruz, no Rio deJaneiro, e da Ilha de Maré, na Bahia. Outros grupos estão mapeando cerca de cem focos de poluição no país.
As autoridades ambientais do Maranhão não monitoram com frequência a qualidade do ar, do solo e da água em Piquiá de Baixo. Mas jovens da comunidade vêm medindo, desde 2016, a qualidade do ar da região com o auxílio de pequenos dispositivos portáteis. Os resultados, publicados no mês passado, estavam acima da concentração média anual recomendada pela Organização Mundial da Saúde e, em vários dias, ultrapassavam o limite diário recomendado.
No entanto, as autoridades não respondem aos resultados com a urgência necessária. Desde 2008, a Associação de Moradores de Piquiá de Baixo luta pelo reassentamento da comunidade.
Em maio de 2016, o governo federal assinou um contrato com a associação de moradores para o financiamento parcial da construção da nova comunidade sob o programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Mas o processo de reassentamento continua parado dentro do Ministério das Cidades, à espera da aprovação formal dos projetos. Especialistas em direitos humanos da ONU escreveram para o governo federal em 2015 perguntando quando o reassentamento vai ser realizado, mas não receberam nenhuma resposta até o momento.
“A cada dia que ficamos aqui estamos expostos à mesma poluição”, disse Maria. “Essa é uma comunidade periférica, e as autoridades se esqueceram de nós”. É hora, portanto, de acabar com o atraso. Justiça tardia é justiça negada, e já passou da hora de reassentar a comunidade.
Richard Pearshouse
Na publicidade de Temer, limão já virou limonada
Em reunião com ministros e líderes governistas, Michel Temer tropeçou no óbvio ao reconhecer, no início da noite desta segunda-feira, que a reforma da Previdência pode naufragar: “Se num dado momento a sociedade não quer a reforma da Previdência, a mídia não quer a reforma da Previdência e a combate e, naturalmente, o Parlamento, que ecoa as vozes da sociedade, não quiser aprová-la, paciência. Eu continuarei a trabalhar por ela.”
O mesmo Temer autorizara a divulgação de uma propaganda, pendurada horas antes na conta do governo no Twitter, que destoava do clima de caída de ficha da reunião noturna. “Fizemos do limão, limonada”, anota o texto que convida o internauta a assistir à peça. “A economia melhorou. Os empregos voltaram. Estamos de volta ao jogo.”
Recorrendo a um expediente manjado entre os maquiadores de imagem, a publicidade exibe cenas de torcedores nas arquibancadas. Sem citar Dilma Rousseff, a peça faz alusão à ruina que marcou a fase pré-impeachment: inflação de dois dígitos, assalto à Petrobras, desemprego lunar, juros escorchantes, o país “parado, desacreditado e desmoralizado”. Ao fundo, torcedores que pareciam sofrer as dores da derrota por 7 a 1 que o Brasil sofreu da Alemanha na Copa de 2014.
Súbito, aparecem no vídeo frases e imagens de deixar corado Lourival Fontes, o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, criador da expressão “pai dos pobres.” A batucada, que soava lenta, acelerou. Os torcedores amargurados foram substituídos por brasileiros eufóricos. “Mas aqui é Brasil”, diz a peça. “Viramos esse jogo”.
Muitos brasileiros, depois de comparar o timbre surpreendentemente realista do Temer da reunião com o tom ufanista do comercial avalizado por ele poderiam pedir para viver no Brasil que a publicidade oficial descreve com tanto entusiasmo. Um país onde o PMDB não foi sócio do PT na roubalheira, e cujo presidente não enxerga um culpado no espelho.
Neste Brasil, a exemplo do que ocorre nos dicionários, a celebração vem bem antes do trabalho. No outro país, aquele em que o governo culpa a sociedade e a mídia pelos votos que não consegue reunir no Congresso, os desempregados ainda compõem uma legião de 13 milhões de pessoas. E a celebrada recuperação econômica é um feito parcial sujeito a retrocessos.
O mesmo Temer autorizara a divulgação de uma propaganda, pendurada horas antes na conta do governo no Twitter, que destoava do clima de caída de ficha da reunião noturna. “Fizemos do limão, limonada”, anota o texto que convida o internauta a assistir à peça. “A economia melhorou. Os empregos voltaram. Estamos de volta ao jogo.”
Súbito, aparecem no vídeo frases e imagens de deixar corado Lourival Fontes, o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, criador da expressão “pai dos pobres.” A batucada, que soava lenta, acelerou. Os torcedores amargurados foram substituídos por brasileiros eufóricos. “Mas aqui é Brasil”, diz a peça. “Viramos esse jogo”.
Muitos brasileiros, depois de comparar o timbre surpreendentemente realista do Temer da reunião com o tom ufanista do comercial avalizado por ele poderiam pedir para viver no Brasil que a publicidade oficial descreve com tanto entusiasmo. Um país onde o PMDB não foi sócio do PT na roubalheira, e cujo presidente não enxerga um culpado no espelho.
Neste Brasil, a exemplo do que ocorre nos dicionários, a celebração vem bem antes do trabalho. No outro país, aquele em que o governo culpa a sociedade e a mídia pelos votos que não consegue reunir no Congresso, os desempregados ainda compõem uma legião de 13 milhões de pessoas. E a celebrada recuperação econômica é um feito parcial sujeito a retrocessos.
Inerte na periferia
O que aconteceu? — a perplexidade estava estampada nos rostos dos senadores da Comissão de Ciência e Tecnologia. Acabavam de ler a mensagem na tela: em 1963 o Brasil era o país que, depois do Japão, mais registrava patentes nos Estados Unidos, e agora ocupa um modesto 28º lugar. Singular regressão.
A hesitação na sala foi rompida por um senador do Acre, onde vive metade das tribos isoladas da Amazônia. Ele narrou seu assombro com o novo mundo tecnológico prenunciado pelo carro elétrico, tema de um projeto de lei do qual é o relator:
— Outro dia fui visitar o Nelson Piquet (tricampeão de Fórmula 1). Ele me mostrou o carro elétrico da Tesla que comprou.
Na garagem do ex-piloto, em Brasília, Jorge Viana (PT-AC) topou com um sedã grande — “coisa de americano”, definiu. Viu “um posto de gasolina” composto por fio e tomada, sem necessidade de licença estatal.
— Pedi para abrir o capô, para ver a inovação. Abri, zero de peça, só espaço vazio. Aí, abri a traseira, podia ser motor de traseira... Nada. Cadê o motor? As peças?
— Não tem. O motor está nas rodas...
O senador agachou-se para olhar, e o piloto continuou:
— Tem 400 quilômetros de autonomia. Faz 100 quilômetros em segundos...
Jorge, você tem noção de quantas peças há num carro convencional?
— Claro que não, não sou mecânico.
— Claro que não, não sou mecânico.
— Perto de seis mil. Sabe quantas peças tem nesse? Trezentas e poucas...
O senador percebeu que estava diante do símbolo de um novo mundo, sem gasolina, peças ou mecânicos.
A americana Tesla e seus carros elétricos não existiam há uma década, quando o Brasil ampliou exponencialmente os incentivos às montadoras convencionais em São Paulo, Rio, Minas, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás e Bahia.
Hoje, a Tesla vale tanto quanto GM, Ford e Volks. E o Brasil continua gastando US$ 10 bilhões anuais em subsídios estatais no seu parque industrial, quase todo obsoleto.
O Tesouro também paga metade do investimento em pesquisa e desenvolvimento, enquanto nos EUA, Ásia e Europa 75% desses gastos são das empresas privadas. O “fabricado no Brasil” ainda prevalece sobre o “criado no Brasil” .
O senador Omar Aziz (PSD-AM) permitiu-se um desabafo sobre a Zona Franca de Manaus:
— O que é que nós produzimos de tecnologia nossa? Absolutamente nada. Para produzirmos um computador, tudo é trazido de fora. Chega aqui, e o pessoal solda... Então, nada!
A audiência seguiu com cientistas implorando para se evitar um corte de 44% nas verbas para pesquisas em 2018. Lembravam a dimensão do retrocesso nacional. Em 1995, Brasil e Índia possuíam economias e políticas similares para ciência, pesquisa, desenvolvimento e inovação. Nesses 22 anos, a Índia cresceu à média de 7,3% ao ano, e suas empresas agora registram oito vezes mais patentes que as brasileiras. Inerte na periferia, o Brasil contentou-se com crescimento médio de 2,4% ao ano.
O que aconteceu?
Parte da resposta está na sucessão de erros do Executivo, Legislativo e Judiciário, que resultam na anarquia da edição de 13 mil regras tributárias por ano (250 novas por semana). Outra parte está nos autos da Operação Lava-Jato. Eles relatam o suicídio das maiores empresas de engenharia, que elegeram o suborno de governantes como atalho para vencer, crescer e perpetuar no novo mundo.
Temer deveria ter feito a redação do Enem
Imagino que quem leu os jornais da véspera das provas do domingo que passou ficou meio encrencado para fazer a redação proposta sobre a inclusão de surdos no sistema educacional. Isto é, se o candidato tiver visto os cortes promovidos por Temer no Orçamento, já enquadrado na nova regra do teto de gastos, com certeza gastou um bom tempo se perguntando: tenho eu que me colocar no reino do faz de conta e me imaginar presidente da República, mexendo no Orçamento? Ou devo ficar no plano da realidade e afirmar que a redação proposta não cabe nos objetivos do “Ponte para o Futuro”, lançado por Temer, quando ainda vice (“decorativo”, afirmava ele) de Dilma Rousseff.
Senão, vejamos: para a inclusão dos surdos no sistema educacional brasileiro, várias modificações teriam de ser introduzidas, muitas a um custo muito elevado. Desde o corriqueiro modo de chamar o início, o recreio e o fim das aulas, que envolve hoje ou uma sirene ou o badalar de um sino. A menos que a escola oferecesse a cada aluno um desses aparelhinhos contra surdez, anunciados quase como uma joia em revistas e jornais. Isso, evidentemente, para que fossem atendidos os que têm família nos estratos mais baixos da pirâmide da distribuição de renda no país.
Prossigamos: ou o Estado determinaria que os professores também dominassem a Língua Brasileira de Sinais – tornando o tempo de aula um tormento, com o mestre tendo de se virar para manter a disciplina, fazendo uma exposição oral e, depois, aquela por gestos. É provável que os alunos que não fossem surdos aproveitassem a deixa para toda sorte de modos de escapar do tédio: usar o celular para mandar WhatsApp para os amigos, bilhetinhos para o garoto que atualmente é seu crush, ou bater um papinho com as (os) colegas mais chegadas (os), exibindo sua pulseirinha nova ou o tênis recém-comprado.
Ou isso aí, ou cada sala de aula teria de comportar dois professores, que, num jogral sucessivo, iriam se sucedendo ora na linguagem usual, ora na gestual. E a lentidão do processo certamente impediria a utilização de outros métodos didáticos, como a discussão em grupo, por exemplo.
Isso porque toda inclusão ou é inclusão, e os alunos surdos frequentam as mesmas salas de aula, ou são amontoados todos juntos, por séries, o que não seria inclusão, mas formação de verdadeiros guetos entre as pessoas com deficiência e os outros.
No recreio, só brincadeiras livres. E haveria rodinhas só de surdos...
Acontece que, na véspera mesma da prova do Enem, Sua Excelência processou cortes violentos no gasto social, sendo que só no item “Promoção e defesa dos direitos de pessoas com deficiências” tascou uma diminuição de 44,2% em relação ao Orçamento de 2017: passou de R$ 23,3 milhões para apenas R$ 13 milhões.
Aí só mesmo o próprio Temer fazendo a redação proposta para discorrer sobre o milagre que o Enem exigiu neste ano.
Ou estou enganada?
Sandra Starling
Prossigamos: ou o Estado determinaria que os professores também dominassem a Língua Brasileira de Sinais – tornando o tempo de aula um tormento, com o mestre tendo de se virar para manter a disciplina, fazendo uma exposição oral e, depois, aquela por gestos. É provável que os alunos que não fossem surdos aproveitassem a deixa para toda sorte de modos de escapar do tédio: usar o celular para mandar WhatsApp para os amigos, bilhetinhos para o garoto que atualmente é seu crush, ou bater um papinho com as (os) colegas mais chegadas (os), exibindo sua pulseirinha nova ou o tênis recém-comprado.
Ou isso aí, ou cada sala de aula teria de comportar dois professores, que, num jogral sucessivo, iriam se sucedendo ora na linguagem usual, ora na gestual. E a lentidão do processo certamente impediria a utilização de outros métodos didáticos, como a discussão em grupo, por exemplo.
Isso porque toda inclusão ou é inclusão, e os alunos surdos frequentam as mesmas salas de aula, ou são amontoados todos juntos, por séries, o que não seria inclusão, mas formação de verdadeiros guetos entre as pessoas com deficiência e os outros.
No recreio, só brincadeiras livres. E haveria rodinhas só de surdos...
Acontece que, na véspera mesma da prova do Enem, Sua Excelência processou cortes violentos no gasto social, sendo que só no item “Promoção e defesa dos direitos de pessoas com deficiências” tascou uma diminuição de 44,2% em relação ao Orçamento de 2017: passou de R$ 23,3 milhões para apenas R$ 13 milhões.
Aí só mesmo o próprio Temer fazendo a redação proposta para discorrer sobre o milagre que o Enem exigiu neste ano.
Ou estou enganada?
Sandra Starling
De legados e cicatrizes
O Brasil é lugar estranho. Incapaz de cometer erros novos. Apenas repetimos os velhos. Tropeçamos repetidamente nas mesmas pedras. Acreditamos nos mesmos contos. Sofremos os mesmos golpes. Acreditamos nas mesmas mentiras. Contadas pelos mesmos mentirosos.
Talvez somente essa nossa credulidade atávica explique como conseguimos chegar até onde chegamos. E dar sentido a nossa capacidade de conviver com a ressaca pós olímpicos. E assistir moribundos elefantes brancos concentrados em grande cemitério à espera do abandono, da obsolescência, seguida de morte certa, dolorosa e cara.
Pudera. O urbanista que planejou os prédios, condomínios, shoppings, e ruas provavelmente achava que gente atrapalha. No chamado legado olímpico, tudo é feito para ser inacessível. Ali, sem carro, não se vai. E, sem muito dinheiro, não se fica. Escolha curiosa para uma cidade que sempre se orgulhou da hospitalidade e do contato humano.
Os shoppings, privilegiam exclusivamente o acesso por carro. E cobram caro por isso. São belíssimos por dentro. E vazios. Com lojas cuidadosamente embelezadas, esperando um povo que não vem. E que, pior, não pode ir. Mesmo assim, teimosamente, os preços permanecem caros. Até para o padrão de primeiro mundo.
Os restaurantes, de fazer inveja a qualquer um, estão escondidos, inacessíveis, portanto, vazios, em cidade onde se vive assustado, com medo. Hoje em dia, nem quem vive onde vida na rua existe, procura ficar em casa, protegido, seguro, na medida do possível.
Neste cemitério, os elefantes brancos longe de olhares curiosos. Tudo fica isolado, longe. No legado olímpico, gente não vai. Na rua não se anda. Não existe esquina, boteco ou alegria. Somente um bairro recém construído e já isolado, desprovido de vida. Em que placas de “aluga-se” unificam a paisagem desolada, pontuada de lindos prédios com salas comerciais desocupadas.
Não bastasse, o Rio não entrou para o circuito mundial do turismo. Os hotéis inaugurados com base no sonho olímpico sofrem com a capacidade ociosa. Sofrimento tão doloroso quanto inútil.
Não existe mesmo razão para visitar a cidade olímpica. É onde se vive a dor de já não ser e a vergonha de já ter sido. Sem, contudo, a coragem de encarar de frente as proporções olímpicas do erro.
O delírio olímpico morre de morte morrida, lenta e sofrida. Sem estrondos, mas com suspiros. Morre sem foguete, sem retrato e sem bilhete. Sem luar, sem violão. Apenas assiste, triste, a metamorfose do legado em cicatriz.
Elton Simões
Talvez somente essa nossa credulidade atávica explique como conseguimos chegar até onde chegamos. E dar sentido a nossa capacidade de conviver com a ressaca pós olímpicos. E assistir moribundos elefantes brancos concentrados em grande cemitério à espera do abandono, da obsolescência, seguida de morte certa, dolorosa e cara.
Os shoppings, privilegiam exclusivamente o acesso por carro. E cobram caro por isso. São belíssimos por dentro. E vazios. Com lojas cuidadosamente embelezadas, esperando um povo que não vem. E que, pior, não pode ir. Mesmo assim, teimosamente, os preços permanecem caros. Até para o padrão de primeiro mundo.
Os restaurantes, de fazer inveja a qualquer um, estão escondidos, inacessíveis, portanto, vazios, em cidade onde se vive assustado, com medo. Hoje em dia, nem quem vive onde vida na rua existe, procura ficar em casa, protegido, seguro, na medida do possível.
Neste cemitério, os elefantes brancos longe de olhares curiosos. Tudo fica isolado, longe. No legado olímpico, gente não vai. Na rua não se anda. Não existe esquina, boteco ou alegria. Somente um bairro recém construído e já isolado, desprovido de vida. Em que placas de “aluga-se” unificam a paisagem desolada, pontuada de lindos prédios com salas comerciais desocupadas.
Não bastasse, o Rio não entrou para o circuito mundial do turismo. Os hotéis inaugurados com base no sonho olímpico sofrem com a capacidade ociosa. Sofrimento tão doloroso quanto inútil.
Não existe mesmo razão para visitar a cidade olímpica. É onde se vive a dor de já não ser e a vergonha de já ter sido. Sem, contudo, a coragem de encarar de frente as proporções olímpicas do erro.
O delírio olímpico morre de morte morrida, lenta e sofrida. Sem estrondos, mas com suspiros. Morre sem foguete, sem retrato e sem bilhete. Sem luar, sem violão. Apenas assiste, triste, a metamorfose do legado em cicatriz.
Elton Simões
100 anos depois
O centenário da Revolução de Outubro, por causa da adoção do calendário gregoriano pelos russos, um legado dos bolcheviques, comemora-se hoje, dia 7. A Revolução Russa, que começou em fevereiro, com a destituição do czar Nicolau II, provocou grande entusiasmo entre os intelectuais brasileiros antenados no mundo. Já naquela época, havia socialistas de diversos matizes nos nossos meios intelectuais, mas o que predominava no movimento operário e sindical, que promoveu uma onda de greves por todo o país naquele mesmo ano, eram as ideias anarquistas.
Foi nesse meio que surgiu o Partido Comunista, sob a liderança de Astrojildo Pereira, em 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo. A mesma divisão que ocorrera na Rússia entre social-democratas e comunistas, a partir da tomada do poder pelos bolcheviques, se reproduziu em todo o mundo. No Brasil, não foi muito diferente. Num período conturbado da República, que estava sob comando das oligarquias, muitas das quais remanescentes do regime escravocrata, o antigo Partido Comunista (PCB) era uma seção da III Internacional, refletia a doutrina e seguia as orientações de Moscou, em confronto aberto com os social-democratas e outras tendências socialistas.
As ideias comunistas no Brasil eram consideradas muito exóticas e pouca influência tinham na vida nacional, até que Astrojildo Pereira viajou para Bolívia com uma mala de livros marxistas, entre os quais O Estado e a Revolução, de Lênin, para um encontro com Luiz Carlos Prestes. O líder tenentista havia se exilado, depois de percorrer 25 mil quilômetros, em 11 estados, a maioria a pé, à frente de 1.500 homens, a chamada Coluna Prestes. Tornara-se um mito. Foi assim que Prestes aderiu ao comunismo, se recusou a comandar a Revolução de 1930, que considerava burguesa, e agregou o seu prestígio popular e militar ao minúsculo PCB.
De Moscou, Prestes articulou a criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1934, da qual foi presidente de honra. Reuniu, entre outras personalidades, Herculino Cascardo (presidente), Amoreti Osório (vice-presidente), Francisco Mangabeira, Roberto Sisson, Benjamim Soares Cabello e Manuel Venâncio Campos da Paz, Moésia Rolim, Carlos da Costa Leite, Gregório Lourenço Bezerra, Caio Prado Júnior, Aparício Torelly, Miguel Costa, Maurício de Lacerda, Abguar Bastos, os ex-interventores como Filipe Moreira Lima (Ceará) e Magalhães Barata (Pará), o deputado federal Domingos Velasco e o prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto.
O programa da ALN foi lido no lançamento pelo jovem Carlos Lacerda. Seguia as orientações do VII Congresso da Internacional Comunista, para cujo burô (o Comintern) Prestes havia sido eleito. Na essência, era um programa anti-imperialista e antifascista, que expressava o célebre “informe” do búlgaro George Dimitrof, seu secretário-geral, sobre unidade das forças populares na luta contra o fascismo. Mas traduzia também a radicalização política em curso no país, com crescimento do integralismo e, sobretudo, a simpatias de Vargas e de parte do governo pelo Eixo (a aliança Alemanha-Itália-Japão).
Sentindo-se ameaçado, Vargas resolveu fechar a ALN, que já reunia um milhão de militantes. É aí que Prestes retorna ao país com a missão de organizar uma insurreição nos moldes soviéticos, como se tentara na Alemanha e na China, sem sucesso, o que aconteceu de forma precipitada em 27 de novembro de 1935, nos quartéis do Rio, Recife e Natal. O resto da história é mais conhecida. Foi nesse processo que se consolidou um pensamento hegemônico na esquerda brasileira, que parece renascer das cinzas sempre que surge uma oportunidade, apesar de ter se tornado anacrônico, principalmente depois da guerra fria. São ideias que não morreram completamente, mesmo depois do colapso da União Soviética e da queda do muro de Berlim, quando nada porque alguns de seus paradigmas estão vivíssimos.
Um deles é a ditadura do partido como força capaz de promover a modernização e combater as desigualdades sociais (China e Vietnã, na Ásia). Outro velho dogma é a tese de que um país periférico não pode se tornar uma nação desenvolvida sem romper as cadeias de dominação (Cuba, na América Latina). Finalmente, a tese de Lênin de que o capitalismo de Estado é a antessala do socialismo, que legitima governos autoritários em Angola, Moçambique e Venezuela. Já a Coreia do Norte é um caso à parte: ainda vive uma monarquia no “comunismo de guerra”.
Historicamente, o capitalismo de Estado foi uma via de industrialização, tanto para os regimes fascistas que tomaram conta da Europa, como para os regimes comunistas do Leste europeu. Há uma certa simbiose entre o modelo econômico e o regime político autoritário. No livro A Quarta Revolução, Adrian Wooldridge e John Micklethwait, seus autores, advertem que existe uma corrida mundial para reinventar o Estado, na qual regimes autoritários do Oriente estão levando certa vantagem em relação às democracias do Ocidente. Esse é o perigo.
Armadilhas do desejo
Conflitos dentro de nações nem sempre confrontam a balança de poder mundial. Cancelam afetos, insultam o sangue. Assim, é meio existencialista o desafio de fazer diferentes culturas conviverem num sistema comum. Vale a pena tentar, pois “nada pode ser bom para nós que não seja para todos”.
Sentimentos humanos não são suficientes para decidir disputas políticas. São várias as possibilidades de gerar e resolver o mal-estar entre regiões. O comércio, a diplomacia, costumes e leis ajudam na busca do reequilíbrio interno. Todavia nunca se devem subestimar os protagonistas inúteis que surgem no meio de crises políticas tentando dar um significado de ruptura aos fluxos normais de poder na sociedade de massa. Maquinações políticas não convivem bem com o direito de fazer perguntas. Muitas vezes escondem do público os verdadeiros motivos, articulados nas sombras de interesses restritos e privilegiados, que buscam converter pretensões de legitimidade em separatismo. Aberto o debate, reveladas as confidências, felizmente prevalecem vozes de quem acredita no progresso e sabe que o presente não é o destino final da história de ninguém.
Há um caminho muito estreito para as nações passarem. A sociedade anda certa de que está pagando aos governos uma conta muito acima do que devia. É essa maré de desilusão-iludida que vem carregando inúmeras regiões para falseados romantismos. Diferente da explosão nacionalista do século 19, que formou os Estados nacionais, os movimentos atuais não são resultado da descoberta da autoestima afirmadora da individualidade cultural. Nem, felizmente, reúnem capacidade militar capaz de rivalizar e se impor pela força. Mas o mundo está repleto de angústias e perspectivas morais contraditórias. E vez ou outra, em nome da liberdade, expressa como pode suas intuições.
Vivemos uma era ultraindividualista, sem espírito-criativo-coletivo, em que nada cessa em quietude. Com o avanço democrático e a abolição da distância e do tempo, na economia, na tecnologia, basta identificar um desejo para que logo se exija um direito. Mas desejo é falta que nem sempre está ao alcance da vontade. Embora a oferta de bens seja cada vez mais homogênea, a sociedade se finge heterogênea e exige distinção. O individualismo libertário exagerado lembra alpinistas agarrados uns aos outros empurrados para seu gueto, criando novas hierarquias para seu usufruto. Pois quanto mais se pede ao Estado, mais ele oferece, sorrateiramente, instituições, burocracias que manipulam a sua vida. A liberdade, em anúncios intermináveis, é a maior prisão em que vive o mundo atual. Fábrica de esperanças malogradas tão ao gosto da crispação política. Poder fazer o que quiser não muda ninguém, desmascara. Porque o todo de uma coisa exagerada sempre vem como doença.
A Catalunha separada da Espanha, mais do que o Brexit, que separou a Grã-Bretanha da União Europeia, assusta pela culpa que carrega a Europa sobre a imposição de força que usou nos casos da Croácia, da Bósnia e do Kosovo. Todos se perguntam o que é autodeterminação numa região multilinguística e tão pouco homogênea, material e culturalmente, como o continente europeu.
Qual o sentido de pleitear ser pequeno num mundo de gigantes? Não há uma grande visão que sustente uma Catalunha melhor, divorciada. As liberdades identitárias estão asseguradas e há benefícios diversos em se ter escala e poder sentar-se à mesa com os que deliberam sobre as questões mais universalmente relevantes do globo. Ser uma voz secundária e pro forma na Europa? Abdicar de Forças Armadas relativamente baratas e eficientes? Estabelecer uma inimizade regional imprevisível? Tudo isso por conta de um desacordo com a política fiscal da nação, apimentado por retórica nacionalista que não encontra justificativa no contexto atual. Após a ditadura de Franco é impossível argumentar que Madri e o resto das regiões dessa colcha de retalhos medieval não tenham cumprido os acordos firmados para garantir a união em torno do Estado central.
Pondo tudo na balança – a rivalidade, os amores imperfeitos, a vontade de afirmar a diferença e a autopercebida superioridade de cada parte –, nada isso justifica uma Espanha moderna sem a coexistência de Barcelona e Madri, indissociáveis da própria noção de pátria para os dois.
A questão catalã lança luz sobre uma realidade mais ampla. A visão de autonomia ancora-se, atualmente, numa profunda crise identitária pela qual regiões, mas também pessoas, estão passando. O que move as multidões incendiárias não é um projeto social amplo, inclusivo, acima dos indivíduos e visando um direcionamento para um destino romântico, altruísta e desapegado de pátria. É, antes de mais nada, a expressão, tecida e tornada possível pelas novas tecnologias da informação, do grito gutural de defesa dos interesses individuais. Alimentado por certa má-fé de detentores do poder regional que se esquivam de sua responsabilidade misturando-se à paixão da multidão de concidadãos/eleitores. O poder legítimo, para ser exercido, precisa de distanciamento. De que vale nas crises um político de horizonte igual ao do seu eleitor? Foram os políticos que afetaram os cálculos separatistas, diminuindo a confiança do povo no diálogo.
A inclinação humana para a sobrevivência alargou seu horizonte de tal forma que o sentimento de viver-mais-separadamente, se alastrou. Até na vida privada essa ilusão de ser feliz sozinho e poder tocar trombeta para as nuvens tem levado a desejos incontidos. Que impulsionam filhos a reivindicar já a herança a um pai vivo.
Essa dramática situação separatista, de contornos bíblicos, é recepcionada pelo direito internacional, que admite a precedência da integridade territorial sobre a autodeterminação. Ainda que ambas tenham igual legitimidade. Mas nem sempre as razões para querer ser um legitimam a quebra da integridade territorial que acolhe todos.
Paulo Delgado
Sentimentos humanos não são suficientes para decidir disputas políticas. São várias as possibilidades de gerar e resolver o mal-estar entre regiões. O comércio, a diplomacia, costumes e leis ajudam na busca do reequilíbrio interno. Todavia nunca se devem subestimar os protagonistas inúteis que surgem no meio de crises políticas tentando dar um significado de ruptura aos fluxos normais de poder na sociedade de massa. Maquinações políticas não convivem bem com o direito de fazer perguntas. Muitas vezes escondem do público os verdadeiros motivos, articulados nas sombras de interesses restritos e privilegiados, que buscam converter pretensões de legitimidade em separatismo. Aberto o debate, reveladas as confidências, felizmente prevalecem vozes de quem acredita no progresso e sabe que o presente não é o destino final da história de ninguém.
Há um caminho muito estreito para as nações passarem. A sociedade anda certa de que está pagando aos governos uma conta muito acima do que devia. É essa maré de desilusão-iludida que vem carregando inúmeras regiões para falseados romantismos. Diferente da explosão nacionalista do século 19, que formou os Estados nacionais, os movimentos atuais não são resultado da descoberta da autoestima afirmadora da individualidade cultural. Nem, felizmente, reúnem capacidade militar capaz de rivalizar e se impor pela força. Mas o mundo está repleto de angústias e perspectivas morais contraditórias. E vez ou outra, em nome da liberdade, expressa como pode suas intuições.
Vivemos uma era ultraindividualista, sem espírito-criativo-coletivo, em que nada cessa em quietude. Com o avanço democrático e a abolição da distância e do tempo, na economia, na tecnologia, basta identificar um desejo para que logo se exija um direito. Mas desejo é falta que nem sempre está ao alcance da vontade. Embora a oferta de bens seja cada vez mais homogênea, a sociedade se finge heterogênea e exige distinção. O individualismo libertário exagerado lembra alpinistas agarrados uns aos outros empurrados para seu gueto, criando novas hierarquias para seu usufruto. Pois quanto mais se pede ao Estado, mais ele oferece, sorrateiramente, instituições, burocracias que manipulam a sua vida. A liberdade, em anúncios intermináveis, é a maior prisão em que vive o mundo atual. Fábrica de esperanças malogradas tão ao gosto da crispação política. Poder fazer o que quiser não muda ninguém, desmascara. Porque o todo de uma coisa exagerada sempre vem como doença.
A Catalunha separada da Espanha, mais do que o Brexit, que separou a Grã-Bretanha da União Europeia, assusta pela culpa que carrega a Europa sobre a imposição de força que usou nos casos da Croácia, da Bósnia e do Kosovo. Todos se perguntam o que é autodeterminação numa região multilinguística e tão pouco homogênea, material e culturalmente, como o continente europeu.
Qual o sentido de pleitear ser pequeno num mundo de gigantes? Não há uma grande visão que sustente uma Catalunha melhor, divorciada. As liberdades identitárias estão asseguradas e há benefícios diversos em se ter escala e poder sentar-se à mesa com os que deliberam sobre as questões mais universalmente relevantes do globo. Ser uma voz secundária e pro forma na Europa? Abdicar de Forças Armadas relativamente baratas e eficientes? Estabelecer uma inimizade regional imprevisível? Tudo isso por conta de um desacordo com a política fiscal da nação, apimentado por retórica nacionalista que não encontra justificativa no contexto atual. Após a ditadura de Franco é impossível argumentar que Madri e o resto das regiões dessa colcha de retalhos medieval não tenham cumprido os acordos firmados para garantir a união em torno do Estado central.
Pondo tudo na balança – a rivalidade, os amores imperfeitos, a vontade de afirmar a diferença e a autopercebida superioridade de cada parte –, nada isso justifica uma Espanha moderna sem a coexistência de Barcelona e Madri, indissociáveis da própria noção de pátria para os dois.
A questão catalã lança luz sobre uma realidade mais ampla. A visão de autonomia ancora-se, atualmente, numa profunda crise identitária pela qual regiões, mas também pessoas, estão passando. O que move as multidões incendiárias não é um projeto social amplo, inclusivo, acima dos indivíduos e visando um direcionamento para um destino romântico, altruísta e desapegado de pátria. É, antes de mais nada, a expressão, tecida e tornada possível pelas novas tecnologias da informação, do grito gutural de defesa dos interesses individuais. Alimentado por certa má-fé de detentores do poder regional que se esquivam de sua responsabilidade misturando-se à paixão da multidão de concidadãos/eleitores. O poder legítimo, para ser exercido, precisa de distanciamento. De que vale nas crises um político de horizonte igual ao do seu eleitor? Foram os políticos que afetaram os cálculos separatistas, diminuindo a confiança do povo no diálogo.
A inclinação humana para a sobrevivência alargou seu horizonte de tal forma que o sentimento de viver-mais-separadamente, se alastrou. Até na vida privada essa ilusão de ser feliz sozinho e poder tocar trombeta para as nuvens tem levado a desejos incontidos. Que impulsionam filhos a reivindicar já a herança a um pai vivo.
Essa dramática situação separatista, de contornos bíblicos, é recepcionada pelo direito internacional, que admite a precedência da integridade territorial sobre a autodeterminação. Ainda que ambas tenham igual legitimidade. Mas nem sempre as razões para querer ser um legitimam a quebra da integridade territorial que acolhe todos.
Paulo Delgado
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