Sentimentos humanos não são suficientes para decidir disputas políticas. São várias as possibilidades de gerar e resolver o mal-estar entre regiões. O comércio, a diplomacia, costumes e leis ajudam na busca do reequilíbrio interno. Todavia nunca se devem subestimar os protagonistas inúteis que surgem no meio de crises políticas tentando dar um significado de ruptura aos fluxos normais de poder na sociedade de massa. Maquinações políticas não convivem bem com o direito de fazer perguntas. Muitas vezes escondem do público os verdadeiros motivos, articulados nas sombras de interesses restritos e privilegiados, que buscam converter pretensões de legitimidade em separatismo. Aberto o debate, reveladas as confidências, felizmente prevalecem vozes de quem acredita no progresso e sabe que o presente não é o destino final da história de ninguém.
Há um caminho muito estreito para as nações passarem. A sociedade anda certa de que está pagando aos governos uma conta muito acima do que devia. É essa maré de desilusão-iludida que vem carregando inúmeras regiões para falseados romantismos. Diferente da explosão nacionalista do século 19, que formou os Estados nacionais, os movimentos atuais não são resultado da descoberta da autoestima afirmadora da individualidade cultural. Nem, felizmente, reúnem capacidade militar capaz de rivalizar e se impor pela força. Mas o mundo está repleto de angústias e perspectivas morais contraditórias. E vez ou outra, em nome da liberdade, expressa como pode suas intuições.
Vivemos uma era ultraindividualista, sem espírito-criativo-coletivo, em que nada cessa em quietude. Com o avanço democrático e a abolição da distância e do tempo, na economia, na tecnologia, basta identificar um desejo para que logo se exija um direito. Mas desejo é falta que nem sempre está ao alcance da vontade. Embora a oferta de bens seja cada vez mais homogênea, a sociedade se finge heterogênea e exige distinção. O individualismo libertário exagerado lembra alpinistas agarrados uns aos outros empurrados para seu gueto, criando novas hierarquias para seu usufruto. Pois quanto mais se pede ao Estado, mais ele oferece, sorrateiramente, instituições, burocracias que manipulam a sua vida. A liberdade, em anúncios intermináveis, é a maior prisão em que vive o mundo atual. Fábrica de esperanças malogradas tão ao gosto da crispação política. Poder fazer o que quiser não muda ninguém, desmascara. Porque o todo de uma coisa exagerada sempre vem como doença.
A Catalunha separada da Espanha, mais do que o Brexit, que separou a Grã-Bretanha da União Europeia, assusta pela culpa que carrega a Europa sobre a imposição de força que usou nos casos da Croácia, da Bósnia e do Kosovo. Todos se perguntam o que é autodeterminação numa região multilinguística e tão pouco homogênea, material e culturalmente, como o continente europeu.
Qual o sentido de pleitear ser pequeno num mundo de gigantes? Não há uma grande visão que sustente uma Catalunha melhor, divorciada. As liberdades identitárias estão asseguradas e há benefícios diversos em se ter escala e poder sentar-se à mesa com os que deliberam sobre as questões mais universalmente relevantes do globo. Ser uma voz secundária e pro forma na Europa? Abdicar de Forças Armadas relativamente baratas e eficientes? Estabelecer uma inimizade regional imprevisível? Tudo isso por conta de um desacordo com a política fiscal da nação, apimentado por retórica nacionalista que não encontra justificativa no contexto atual. Após a ditadura de Franco é impossível argumentar que Madri e o resto das regiões dessa colcha de retalhos medieval não tenham cumprido os acordos firmados para garantir a união em torno do Estado central.
Pondo tudo na balança – a rivalidade, os amores imperfeitos, a vontade de afirmar a diferença e a autopercebida superioridade de cada parte –, nada isso justifica uma Espanha moderna sem a coexistência de Barcelona e Madri, indissociáveis da própria noção de pátria para os dois.
A questão catalã lança luz sobre uma realidade mais ampla. A visão de autonomia ancora-se, atualmente, numa profunda crise identitária pela qual regiões, mas também pessoas, estão passando. O que move as multidões incendiárias não é um projeto social amplo, inclusivo, acima dos indivíduos e visando um direcionamento para um destino romântico, altruísta e desapegado de pátria. É, antes de mais nada, a expressão, tecida e tornada possível pelas novas tecnologias da informação, do grito gutural de defesa dos interesses individuais. Alimentado por certa má-fé de detentores do poder regional que se esquivam de sua responsabilidade misturando-se à paixão da multidão de concidadãos/eleitores. O poder legítimo, para ser exercido, precisa de distanciamento. De que vale nas crises um político de horizonte igual ao do seu eleitor? Foram os políticos que afetaram os cálculos separatistas, diminuindo a confiança do povo no diálogo.
A inclinação humana para a sobrevivência alargou seu horizonte de tal forma que o sentimento de viver-mais-separadamente, se alastrou. Até na vida privada essa ilusão de ser feliz sozinho e poder tocar trombeta para as nuvens tem levado a desejos incontidos. Que impulsionam filhos a reivindicar já a herança a um pai vivo.
Essa dramática situação separatista, de contornos bíblicos, é recepcionada pelo direito internacional, que admite a precedência da integridade territorial sobre a autodeterminação. Ainda que ambas tenham igual legitimidade. Mas nem sempre as razões para querer ser um legitimam a quebra da integridade territorial que acolhe todos.
Paulo Delgado
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