quarta-feira, 29 de abril de 2020

Pensamento do Dia


Com popularidade firme, Bolsonaro acha que pode fazer o que quiser

Donald Trump nunca duvidou da lealdade de seus eleitores fiéis. Dez meses antes da eleição de 2016, o magnata subiu num palanque e exibiu a dimensão de sua autoconfiança: "Eu poderia ir para o meio da Quinta Avenida, atirar em alguém e não perderia nenhum eleitor".

Até aquele dia, o republicano só havia apresentado uma amostra grátis do repertório de atrocidades que usaria durante a campanha. Dali por diante, deu declarações absurdas, prometeu barbaridades e chegou à Casa Branca mesmo assim.


A despreocupação de Jair Bolsonaro com sua popularidade espelha a frase lançada por seu ídolo americano naquele comício. Os números da última pesquisa Datafolha mostram que a base de apoio do presidente se manteve inabalada.

Assim como no fim do ano passado, um a cada três brasileiros afirma que o governo Bolsonaro é ótimo ou bom. Nesse intervalo, o presidente empurrou o país em direção ao abismo do coronavírus, fez campanha contra alertas das autoridades de saúde e demitiu o ministro que cuidava da área. Seus apoiadores viram 5.000 mortes em menos de 40 dias, mas continuaram a seu lado.

A solidez dessa base abriu caminho para mais desatinos. Bolsonaro deu apoio explícito a uma turba que pedia um golpe militar e interferiu politicamente na Polícia Federal para proteger os filhos. Depois, nomeou um delegado próximo de sua família. "E daí?", rebateu.

O presidente provavelmente acredita que pode fazer o que quiser. Embora trincado pelo conflito com Sergio Moro, o discurso antissistema ainda prende os bolsonaristas a seu líder, assim como a promessa de uma agenda conservadora. O peso da máquina pública e os R$ 600 pagos a trabalhadores informais afetados pela crise inflam esse grupo.

Bolsonaro ainda precisará enfrentar os efeitos da disparada das mortes por coronavírus e da recessão provocada pela pandemia. Por enquanto, o país mantém no poder um presidente que fabrica disparates sem medo de perder popularidade.

A nova arte de varandear

Dia 45.

E ao 44º dia, sexto domingo de quarentena, não me apeteceu escrever. Normalmente, um cursor a piscar numa folha em branco costuma ser um desafio encarado com agrado. Gosto da sensação de desafio de ter uns milhares de carateres para debitar num ecrã. É engraçado como, por mais anos disto que se leve, quando nos sentamos para escrever, nunca sabemos bem quem vai sair vencido ou vencedor: se nós ou a folha (que ficaria melhor) em branco.


Mas ontem, confesso, padeci da humana preguiça. Atire a primeira pedra quem nunca. Sucumbi a ela e dediquei a tarde a varandear, embalada por uma playlist de jazz a tocar na coluna e o cão sempre deitado ao meu lado no chão. Ofereci-me umas horas sem nada para fazer. Como assim nada?, cheguei a perguntar, meio pasmada com a própria ideia, de mim para os meus botões. Nada, Mafalda, nada é nada, respondi-me. Nem livro, nem revistas, nem jornais para ler, nem notas no telemóvel para tirar. Nada, nadinha, será possível? É lamentável como hoje parece tão difícil desligarmos o cérebro e não fazermos nada. Não sei como deixámos que isto nos acontecesse.

Estendi-me numa cama de paletes improvisada e fechei os olhos. Tentei resistir ao apelo de estar, o tempo todo, a fazer listas ou a tentar resolver problemas na minha cabeça. Deixei-me estar. Quase que consegui ouvir Fernando Pessoa a dizer-me ao ouvido: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!”. Que coisa rara e nunca vista… Tenho uma varanda desde que me mudei para esta casa, há 12 anos. E foram, na verdade, tão poucas as vezes que realmente desfrutei dela com tranquilidade. Cuido das plantas com dedicação, rego-as e limpo-lhes as folhas secas, apanho a alpista que os pássaros que nos visitam espalham no chão, mas nunca me detive realmente por ali. Até agora, a varada era só mais um afazer na minha vida. Até a cama de rede que comprei foi, durante anos, vetada ao abandono e a desbotar ao sol.

Mas por estes dias, tudo mudou. A varanda tornou-se o segundo centro da casa, a seguir à cozinha. O lugar onde ouvimos os pássaros, olhamos o céu, fotografamos a chuva e os bichos, adivinhamos as formas das nuvens, vislumbramos ao longe um pedacinho de mar e fazemos apostas às ondas. Almoçamos e lanchamos na varanda, cantamos na varanda, pintamos e fazemos cerâmica na varanda, fazemos ginástica e ioga na varanda. A cama de rede já precisava de um sistema de senhas.

Desconfio que é algo que sucedeu a muitos portugueses. Nas nossas varandas, cabe agora o mundo todo. Acho comovente como redescobrimos este espaço, que muitos tinham a sorte de ter mas que para pouco mais servia do que estender a roupa, e lhe passámos a dar toda uma nova vida. Bastam, na verdade, pouco mais do que dois metros quadrados para dar um concerto, projetar cinema para os vizinhos ou recitar poesia, como as histórias que fui ouvindo por estes dias. Quem diria que podemos ser tão felizes nas nossas varandas…

Elas podem mesmo ser centros de convívio social. Na semana passada, a passear o cão, passei por um bairro de prédios altos aqui ao lado. Às 21h da noite, toda a vizinhança estava na varanda, para um novo ritual repetido diariamente. Fiquei a ver – eram dezenas de famílias, a falar umas com as outras. Uns lançavam palavras de ordem, outros acendiam luzes multicolores, outros punham música. No fim da catarse coletiva, a despedida: boa noite vizinhos, força, até amanhã! Encontramo-nos na varanda, à mesma hora. Será que depois de tudo isto passar vão esquecer-se das varandas e deixar de se falar nos elevadores?

Mafalda Anjos

Cidadania em país sério


Depois de mais de um mês de quarentena pela pandemia do novo coronavírus, as religiosas resolveram usar suas habilidades musicais para se divertir e também entreter a vizinhança. Juntas, elas animam os vizinhos com suas vozes e performances feitas da varanda da residência, de onde recebem aplausos e agradecimentos dos vizinhos. São as mesmas jovens monjas que fizeram viralizar um vídeo em que as vemos fazendo uma charmosa coreografia da chamada canção da quarentena, a Resistiré, da banda Dúo Dinámico.

Por que o bolsonarismo-raiz engendrado nos gabinetes do ódio não terá futuro no Brasil?

É difícil ser profeta nesses tempos conturbados, mas pelo que conheço de Brasil o bolsonarismo-raiz, o que se nutre nas cloacas do gabinete do ódio do clã familiar Bolsonaro, não terá futuro nesse país. Logo ficará reduzido a uma excentricidade política que ainda poderá fazer barulho, mas que não será um movimento de peso. Acabará sendo marginal quando aparecer uma proposta democrática alternativa capaz de tirar o país do pesadelo autoritário e grotesco no qual está chafurdando.

Em que me baseio? No fato de que o chamado bolsonarismo nasce do radicalismo da política vista como guerra, como confronto permanente, como morte mais do que vida.

É bom lembrar que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, descobriu, inspirado na filosofia grega, que o mundo se move entre duas grandes pulsões: a do eros, que seria o amor pela vida, à procriação, à sexualidade, ao prazer e ao amor, e de tanatos, que lembra o deus da morte. É o impulso da destruição, da violência e do sadismo.

Segundo Freud, o mundo continua de pé porque o impulso da vida é superior ao da morte. Do contrário, já não existiria. Nós teríamos nos autodestruído.

Acontece o mesmo na política. Há momentos em que o impulso de morte e destruição, o totalitarismo, parece triunfar, mas por fim vencem os valores da vida e da liberdade como aconteceu na Europa após a tragédia da Segunda Guerra Mundial.

Há países que sempre foram mais inclinados a viver sob o tanatos destrutivo e outros preferem crescer sob a força da vida e da liberdade que são as chaves da felicidade.

E o Brasil? Esse é um país que, apesar de um passado de bárbara escravidão que deixou marcas na pobreza e no abandono milhões de pessoas largadas a sua própria sorte, não pertence aos propensos a fomentar fantasmas de morte. Se o Brasil tem pecados, em certos momentos de sua história, é mais por passividade e servilismo ao poder do que pela guerra.

É um país com vocação, em suas diferentes e ricas culturas, ao desfrute da vida. Um país que não é geneticamente guerreiro.

De modo que o bolsonarismo, tal como se apresenta hoje sob a bandeira da violência e da morte, da política vista como um ringue de bairro, não pode criar raízes profundas nesse país.

Eu me atreveria a dizer que o bolsonarismo extremo, o da gritaria, que às vezes pode assustar, não é mais do que uma dessas seitas fanáticas que nascem e morrem sem deixar rastro. Essa política se nutre somente de negatividade. Cria inimigos imaginários e por fim se mostra de uma infantilidade espantosa.

Essas seitas são destrutivas, procuram brigas e se alimentam de símbolos de morte. Basta ver o caixão que levam nas manifestações como símbolo de sua morte anunciada.

Querem sempre guerra e luta porque a paz os assusta. E quando não existem inimigos os criam. Destroem tudo o que evoca o gosto pela vida, a alegria e a liberdade. Por isso não suportaram e assassinaram a jovem negra e favelada, a ativista Marielle Franco.

Essas seitas religiosas e políticas precisam de um mito para suprir sua nulidade como manada. Sofrem de complexo de castração. Professam uma sexualidade doentia adornada com símbolos que beiram a pornografia.

Cultivam os símbolos da morte e da destruição porque viver lhes dá medo. Sua vocação é a satânica de dividir. Agem nos meandros da obscuridade que é o reino da mentira.

Quando não encontram inimigos os inventam. Precisam manter vivo o diapasão do ódio. Por isso nadam com maestria nas águas escuras das fake news.

Negam a compaixão. A bile e o amargor são os primeiros ingredientes de suas cozinhas.

Essas seitas da morte acabam por fim como canibais devorando uns aos outros. A maior curiosidade mórbida, os melhores orgasmos políticos do bolsonarismo-raiz, vêm da paixão pelas armas e por todo o ritual gestual e simbólico da guerra.

O Deus da seita é o dos trovões e dos medos, o vingador, o deus que se compraz com a destruição dos inimigos. Eles que se dizem seguidores da Bíblia nunca entenderão a emoção de Jesus de Nazaré ressuscitando seu amigo Lázaro e ao ver um leproso curado.

Ao final, toda essa agressividade e fome de guerra e conflitos do bolsonarismo-raiz revelam sua incapacidade à felicidade. Eles se afogam em seus próprios instintos de destruição.

Os diferentes sexualmente lhes dão pânico porque ameaçam sua falsa virilidade. A ternura lhes dá medo porque condena sua índole machista.

Eles se sentem melhor às portas de um cemitério do que diante do berço de um recém-nascido. Seus impulsos de morte sempre superam os de vida.

Esses seguidores de morte e luta se assustam diante dos mansos porque definitivamente os desarmados lhes dão medo. Mostram coragem somente diante dos frágeis porque os verdadeiros fortes, que são os que não temem a morte, desnudam sua falsa hombridade.

Não, uma seita com essa força destrutiva e niilista nunca será a vocação de um Brasil que, apesar de todos os seus defeitos, não renuncia à alegria de viver em paz. Só poderão impô-la com a força dos tanques de guerra.

Os dois populares ministros, o da Saúde, Mandetta, e o da Justiça, Moro, ambos recentemente expulsos do Governo, representam juntos, de acordo com as últimas pesquisas, 75% do consenso popular. O que evidencia que o gabinete do ódio está se esgotando. Quem lhes resta? O Brasil não está mais com eles.

Muito otimista? Talvez, mas o pessimismo já deixou nossas gargantas secas demais.

Da nossa conta

Minha empregada está em casa no subúrbio, com marido, filhos e netos. Amigos meus fecharam seus escritórios, ateliês ou pequenos negócios, e também estão em casa. Atores e músicos que conheço estão igualmente parados, e em severa quarentena. Muitas dessas pessoas vivem em apartamentos modestos, que lhes bastavam quando podiam sair à vontade. Confinadas, as paredes começam a pesar-lhes. Elas gostariam de dar um pulo lá fora. Mas, conscientes que são, sabem que, enquanto as mortes pelo vírus não chegarem ao pico e só então declinarem, não é hora de abrir a guarda.


Em contrapartida, de minha janela, vejo jovens e velhos caminhando no calçadão da praia, pedalando ou correndo na ciclovia e até indo mergulhar. Sei pelo noticiário que em São Paulo também é assim. Uma coisa são os prestadores de certos serviços, que não podem parar de trabalhar. Outra são os que decidiram não abrir mão do lazer --nem querem privar disso seus garotos, a julgar pelos festivos playgrounds que também vejo daqui.

Não conheço a cor política dessas pessoas, mas quem continua a flanar, contra as recomendações dos agentes da saúde, está repetindo, até sem saber, o gesto de Jair Bolsonaro, para quem ninguém cerceará o seu direito de ir e vir. Por mim, Bolsonaro pode ir até para o diabo que o carregue, nem é da minha conta a saúde de quem sai em carreatas ou com ele partilha celulares, abraços e perdigotos.

Mas é da conta de todos nós, que estamos em casa, a saúde dos que continuam nas ruas como se tivessem passaportes de imunidade. O passeio de um deles, hoje, pode render uma internação só daqui a 15 dias. O problema é o que, por uma cadeia perversa, esses 15 dias custarão a quem ficou em casa.

Um amigo paulista, pioneiro da quarentena, está muito mal. Pode ter sido infectado pelo netinho assintomático. Não haverá tragédia maior para uma família.
Ruy Castro

Pra cova, Brasil!


Futebol para calar genocídio

A federação francesa de futebol cancelou o campeonato, liderado pelo Paris Saint Germain, dos brasileiros Neymar e Thiago Silva. Também estão suspensos, ainda sem definição, os torneiros nacionais da Alemanha, Itália, Portugal e Inglaterra. E La Liga, o milionário campeonato espanhol, foi suspenso. Todos movimentam milhões de euros e gastam outros milhões com suas equipes e estádios maravilhosos, praticamente lotados a cada jogo. Em tempo de pandemia, os europeus, e todos os países responsáveis por seus cidadãos, investem, como seus próprios jogadores fazem, em salvar vidas e garantir a quarentena. A volta aos campos mesmo sugerida em alguns deles, que já praticamente "controlaram" o coronavírus, gera severas críticas aos manipuladores de multidões.


No Brasil, este conhecido país fora do planeta Terra, que sofre apenas uma "gripezinha", Jair Bolsonaro, sob a chancela da CBF, está "estudando" a viabilização de um parecer do Ministério da Saúde, leia-se Nelson Teich, um perito da rede privada, para liberar a volta gradual de torneios de futebol com jogos sem público. A retomada, na contramão do mundo, do qual o país está cada vez mais isolado, e concorrendo a liderar o ranking de mortos, seria motivado pelo prejuízo dos clubes: "Não tem receita, bilheteria, não tem televisão”.

A preocupação governamental com o futebol faz-nos retornar no tempo, quando na ditadura Médici, o tricolor, adorava frequentar o Maracanã. Se extasiava diante daquela multidão, como se fosse o próprio ídolo em campo. E quando se gritava gol no estádio, se berrava de dor ou morte nas celas das prisões da ditadura. O futebol e a morte estavam juntos na foto do ditador no camarote presidencial.

A motivação de um presidente para a retomada dos jogos, em plena ascensão da pandemia no Brasil, é a fotocópia daquele passado. Messias, um ex-militar expulso da corporação, repete um dos seus ídolos ditatoriais e quer o povo, mesmo apenas pela televisão, em casa, se divertindo com o futebol, enquanto agora nos hospitais doentes com coronavírus e equipes de saúde lutam pela vida sob o cutelo da morte. Em segurança no Alvorada, infestado de ratos, vibrará com as jogadas em campo como o o ex-presidente militar no Maracanã, sob o mesmo signo de morte.

Médici e Messias são a mesma face da ditadura militar ou militarizada, que pode ser de golpe ou de eleição. Ambas só tem o compromisso com a defesa armada intransigente de seus propósitos contra os "adversários", os cidadãos que lhes pagam os salários, lhes sustentam a família - e no caso de Messias há 30 anos lhes dão emprego - e não têm direito à vida mas o dever patriótico de se calar. E bater continência, claro.
Luiz Gadelha

A República do 'E daí?'

Num só dia, o Brasil recebeu três más notícias sobre a pandemia do coronavírus. O país registrou um novo recorde de mortes: 474 em apenas 24 horas. Isso fez o total de vítimas superar a marca dos cinco mil. Para completar, o Brasil ultrapassou a China no ranking de países com mais mortos pela Covid-19.

Diante desses fatos, qualquer presidente razoável se sentiria obrigado a reconhecer a gravidade da situação. Mas os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro, que preferiu fazer piada com a tragédia. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse, ontem à noite.

A mistura de indiferença e deboche virou marca das declarações do presidente. No domingo, ele foi questionado por uma eleitora sobre a decisão de entregar o comando da Polícia Federal a um amigo dos filhos.

“E daí? Antes de conhecer meus filhos eu conheci o Ramagem”, ele respondeu, numa rede social. Em seu idioma particular, o capitão queria dizer que conheceu o delegado antes dos herdeiros. Mesmo assim, ele não se julgou obrigado a esclarecer o conflito de interesses.

Hoje o presidente fez questão de reforçar que Alexandre Ramagem foi presenteado com o cargo porque “passou a ser um amigo”. “Tomava café junto, leite condensado no pão, tá? E daí? Eu devo escolher uma pessoa que eu nunca vi na vida?”, questionou.

Bolsonaro quer transformar o Brasil na República do “E daí?”. Seu desejo é viver num país em que o governante pode ignorar as leis e não precisa prestar contas do que faz. Por isso, ele detesta a imprensa e incentiva ataques ao Congresso e ao Judiciário.

Nesta segunda, a Justiça Federal atendeu a um pedido do jornal “O Estado de S. Paulo” e determinou que o presidente apresente o resultado de seus exames para a Covid-19. A informação é de interesse público, mas o presidente se julga no direito de sonegá-la.

Questionado sobre a ordem judicial, ele voltou a fazer graça. “Daqui a pouco querem saber se eu sou virgem ou não. Vou ter que apresentar o exame de virgindade. Dá positivo ou negativo, o que vocês acham?”, perguntou, na porta do Alvorada.

Bernardo Mello Franco

Economia necrófila

Nós não queremos virar Argentina, nós não queremos virar a Venezuela. Estamos em outro caminho, estamos no caminho da prosperidade, e não no caminho do desespero
Paulo Guedes, ministro da Economia

'Vamos ter um luto pela falta de consciência'

“Como você está lidando?”, pergunta a médica Ana Cláudia Quintana Arantes, geriatra e especialista em cuidados paliativos. Em tempos de pandemia de coronavírus, a pergunta “tudo bem?”, costumeira em um cumprimento, nunca foi tão retórica. Neste momento em que o mundo contabiliza, dia a dia, o crescente número de infectados e mortos em decorrência da doença, um terço da população mundial está em casa em quarentena e muito se fala em perdas econômicas adiante, a médica contabiliza as perdas emocionais.

Especialista em cuidar de quem está muito próximo ao final da vida, ela já prevê que a humanidade passará por três tipos de luto. Além do luto real, das perdas objetivas, ela acrescenta o luto antecipatório —a percepção de que a morte está chegando. “Além disso, vamos ter um luto pela falta de consciência. Muitas pessoas vão se arrepender de não ter tido cuidado antes e vão pensar 'eu poderia ter ficado em casa, poderia ter convencido as pessoas a ficarem em casa”, afirma. “Haverá arrependimento coletivo também”, aposta.


Desde que a pandemia se instalou, o número de mortos já passaram de 210.000 ao redor do mundo e mais de 3 milhões de pessoas ficaram doentes. No Brasil, o mortos passam de 4.500 nesta segunda-feira. Há países, no entanto, que estão se mostrando mais eficazes em suas políticas de combate à doença, como a Coreia do Sul ou a Alemanha, que realizam testagem em massa na população. Mas em outros lugares, os símbolos de luto e dor são os mais fortes desde a Segunda Guerra Mundial. Na Itália, que começa a ver a diminuição de casos, mas ainda contabiliza duas centenas de mortos por dia, as imagens de caminhões transportando corpos para serem enterrados em outras regiões por causa do colapso dos cemitérios da Lombardia se tornaram a prova da agressividade da pandemia. Na Espanha, uma pista de patinação no gelo dentro de um shopping se transformou em um imenso morgue para receber os corpos. Necrotérios temporários, hospitais de campanha em campos de futebol, despedidas dos parentes feitas por meio de uma tela de celular, já que ninguém pode se aproximar de uma pessoa infectada. A pandemia do novo coronavírus que se alastrou por quase o mundo inteiro aponta para uma imensa cicatriz que será formada por cenas surreais e a sensação de um luto coletivo.

Para a médica, que é autora de dos livros A morte é um dia que vale a pena viver (Sextante, 2019) e Histórias lindas de morrer (Sextante, 2020), o momento de uma pandemia é peculiar também sob o ponto de vista da morte. “Num cenário de pandemia, não há condição de dar sentido ao processo [da morte]. As pessoas vão morrer sozinhas, ninguém vai poder pegar na mão, pois as visitas são proibidas”.

A despedida também já está sendo solitária. No Brasil, os casos confirmados de óbitos pela covid-19 devem obedecer a um protocolo que prevê a não realização de velórios, os corpos devem ser enterrados com os caixões lacrados e a uma distância dos familiares, já que um corpo ainda pode transmitir o vírus até 72 horas após o falecimento. Por isso, além das mais de 4.500 pessoas que já morreram com a doença confirmada, até mesmo os casos suspeitos da doença, ou cuja morte se deu por para respiratória ou por razões não definidas, estão passando pelo mesmo processo. A despedida está sendo privada até mesmo àqueles que não confirmaram ter o vírus no corpo. Quem perde um parente que mora longe também encontra dificuldades de transporte para chegar a enterros e despedidas. Há ainda quem está preso longe de casa, num contexto de queda drástica no número de viagens aéreas internas e externas. “A experiência da dignidade no meio disso tudo [da pandemia] está difícil de ser encontrada”, afirma Ana Claudia Quintana.

No meio de previsões ainda tão nebulosas, a médica, enfim, responde à pergunta feita no início desta entrevista. “Como estou lidando? Ajudando a fortalecer as campanhas de solidariedade”, diz. “É o único jeito.”

O pessoal contra o impessoal

Somos editados por nossas culturas e sociedades. Por nossas épocas, moralidade e — eis um óbvio ululante sempre olvidado — por nossos idiomas, que inventam a nossa realidade. Ter consciência do mundo, como ensina Shakespeare, é saber que se entra num drama que existia antes de nós; que nele atuamos e que um dia vamos deixá-lo.

Para variar, eis mais uma crise: o presidente usou mais uma vez contra si mesmo o seu bacamarte. Eu já sugeri nesta coluna como o suicídio político faz parte do inconsciente brasileiro. Sua data oficial é o 1808, quando a Corte portuguesa fugiu de Napoleão e aqui consolidou um estilo de vida aristocrático e escravista, mas a isso seguiram-se outras “renúncias” e impedimentos.

A divergência entre Bolsonaro e Moro é uma reedição de nossas dificuldades de aceitar o poder discreto e autônomo dos regimes republicanos. Nas monarquias absolutistas, como a de Dom João VI e na do modelar Luiz XIV, o Rei Sol, Estado e sociedade estão integrados. O governo é uma família: ser rei não é um cargo disputado, é um papel predestinado. Na realeza, o legal e o circunstancial se fundiam no “sangue azul” e num indiscutível “direito divino”. Reis e nobres eram "donos" do reino. Não se governava por consentimento eleitoral, mas através de um elo com o sagrado.



O republicanismo mudou tudo. Como revela Tocqueville na sua etnografia da América, a democracia criou uma sociedade movediça e consciente de si mesma. As motivações pessoais entram em óbvia colisão com as demandas dos cargos públicos. Nos Estados Unidos, cargos públicos não podem ser acumulados e são vistos como "serviços" — quem os aceita deve abrir mão de sua vida privada.

Nas repúblicas, cada papel público tem sua área de decisão protegida de interferências. Foi essa igualdade livre de pessoalismos que tanto assombrou o lado nobre de Tocqueville quanto o meu lado relacional e familístico de brasileiro branco, machista e de classe média quando vivi a experiência americana. Chocou-me saber que era bom ficar sozinho e que o ideal era ter sua própria opinião, e não ser um papagaio de sabedorias alheias. Assustou-me, igualmente, a vivência rotineira do limite e, sobretudo, do concordar em discordar. Algo inédito, mas que — espero — esteja nascendo no Brasil.

Não sei quantas vezes um presidente interferiu com superintendentes da PF. Noto, porém, que foi esse diálogo espúrio entre Estado e empresas que inventou a Operação Lava-jato, conduzida impecavelmente por Sergio Moro. As interferências corroem a igualdade e o anonimato relativo, mas crítico, das democracias. Quando ele é obscurecido ou ideologizado, como foi o caso dos governos petistas, viu-se que constituíam o tumor de protagonismos escusos e o berço da corrupção.

Eu fiz um estudo pioneiro do “você sabe com quem está falando?”. Lívia Barbosa analisou o seu contraponto: o “jeitinho” que tudo resolve. Tais brasileirismos rejeitam o impessoal e o anonimato imprescindíveis numa república.-

O conflito do magistrado com o presidente tem a ver não com a intenção de mudar. Não há como esconder que o projeto intenta “blindar” as investigações dos filhos de um presidente eleito para liquidar privilégios, mas que insiste em governar de modo absolutista.

Numa república, nada é mais delicado do que os cargos ligados aos limites da liberdade. Se as polícias sofrem interferências e têm elos extraoficiais com os poderosos, cria-se uma democracia selvagem, muito pior que o capitalismo que nasceu sem pai e, principalmente, sem mãe. Mas cujos abusos são corrigidos pela fidelidade à igualdade contra a sua brutal e constitutiva impessoalidade. A crise reitera esse combate do pessoal e de um aberto familismo, contra a impessoalidade estruturante das democracias.

Assistir em pleno século XXI a um enredo já equacionado no século XIX — um filme protagonizado por um presidente referendado com a promessa de liquidar esse personalista pilar da “velha política”, contra o ministro sem o qual ele jamais teria sido eleito, já que ambos queriam o controle do familismo aristocrático e ilegal — não é apenas ofensivo e deprimente. É uma merda!
Roberto DaMatta