sexta-feira, 3 de abril de 2020

A renda básica emergencial

Na última segunda-feira foi aprovada por unanimidade no Congresso Nacional a Renda Básica Emergencial (RBE), um benefício de R$ 600 mensais a ser destinado a uma parte da população brasileira mais vulnerável, como os trabalhadores informais. Embora haja muito o que aprimorar, a RBE foi uma enorme conquista para o Brasil. Foi, também, um momento de protagonismo do Congresso, que tem tomado as rédeas da crise enquanto o governo, quando muito, dorme no ponto. Mas não vou tratar das andanças do presidente da República por Brasília, tampouco de suas conclamações ao vírus e à epidemia.


Apesar de a RBE ter sido uma conquista da sociedade junto ao Congresso, movendo o Estado a despeito da inércia do Executivo federal, não tardou para que o governo quisesse dela se apoderar. Ou melhor, quisesse se apoderar da medida para propaganda, porque o pagamento do benefício para quem já está passando fome o governo tratou mesmo foi de embromar. Nos lábios do ministro da Economia, Paulo Guedes, a RBE ganhou logo um nome inapropriado, insensível, de mau gosto, que beira o obsceno: “coronavoucher”. Parte da imprensa pôs-se a repeti-lo sem se dar conta de que um imenso equívoco havia sido cometido pelo ministro. Voucher, ou um “vale”, não é renda. O “vale” é um papel que dá ao detentor o direito de obter um desconto numa compra ou de trocá-lo por um bem ou serviço: vale-transporte, vale-alimentação. Renda é um fluxo de dinheiro para o recipiente, seja na forma de salários, de dividendos ou de transferências do governo. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população. A RBE é como o Bolsa Família, com a diferença de que o Bolsa Família exige contrapartidas dos beneficiários. Portanto, o ministro embrulhou conceitos econômicos, na melhor das hipóteses, para se fingir de pai da filha que não havia gerado.

Mas não ficou só nisso. Depois de ter tentado dar nome à filha que não era dele, o ministro disse ser muito difícil começar a pagar a RBE imediatamente. Inventou a necessidade de uma Emenda Constitucional para fazê-lo, o que, além de ser desnecessário, atrasaria o pagamento do benefício, colocando vidas em risco. Sim, vidas. Afinal, os beneficiários são pessoas que só comem aquilo que conseguem arrecadar de renda a cada dia. Pensem nos ambulantes, que, com a quarentena, não têm para quem vender. Pensem em todas as pessoas que têm de escolher entre comer ou arriscar ser contaminadas pela doença e, de quebra, transmiti-la a seus entes queridos. São essas pessoas que Guedes não quer abraçar.

Como fazer para pagar a RBE? O ministro deveria saber, pois não é difícil. Há duas maneiras. A primeira, mais fácil, seria o governo editar uma Medida Provisória (MP) para o pagamento do benefício, indicando como fonte de recursos o superávit financeiro da União — o superávit financeiro, proveniente de operações de câmbio e outras mais, é de dezenas de bilhões de reais, ou seja, muito mais do que o necessário para cobrir a RBE. Outra forma seria o governo emitir dívida.

Para isso, teria de abrir uma exceção ao cumprimento da regra de ouro, dispositivo constitucional que proíbe a emissão de dívida pública em determinadas circunstâncias. Abrir exceção para o cumprimento da regra de ouro não requer Emenda Constitucional alguma. Basta que o governo prepare uma MP indicando ao Congresso por que é necessário descumpri-la para determinada finalidade e que o Congresso aprove o projeto de lei autorizando o governo a fazê-lo. Dada a disposição do Congresso de ver a implementação da RBE, nada disso seria difícil e provavelmente poderia ser feito em menos de 24 horas. Contudo, ao invés de buscar soluções, Guedes busca empecilhos.

No calor desse momento de tamanha aflição, hashtags subiram imediatamente nas redes sociais pedindo o pagamento ou a saída do ministro. Até ministros do Supremo Tribunal Federal se pronunciaram sobre o descalabro.

A RBE será paga, de um jeito ou de outro. A RBE será aprimorada e ampliada, de um jeito ou de outro. A RBE haverá de tornar-se permanente, de um jeito ou de outro. Ela é a esperança para que, na saída dessa crise, tenhamos ao menos uma sociedade menos injusta. Da pandemia ainda nascerá um dos pilares da cidadania.
Monica de Bolle

O maluco tristeza

Todo dia ele faz tudo sempre igual e o Brasil espera, trancado em casa, cercado de medo por todos os lados, qual o perdigoto de ignorância destrutiva que o sujeito vai falar.

Não será surpresa para esta coluna se mais uma vez ele voltar atrás e - como se fosse um maluco tristeza parodiando o maluco beleza Raul Seixas - dizer hoje o oposto do que disse ontem. Suspender a ideia de combater o coronavírus com um dia nacional de jejum e orações. Pensou melhor. E conclamará a nação a colocar uma vassoura atrás da porta. O vírus, essa visita dolorosamente insistente, irá embora num instante. Se ela insistir em ficar mais um pouco, que se lhe ofereça um copo de leite com manga. Será mortal. 

A expressão acima, “não será surpresa para esta coluna”, foi inventada pelo colunista Zózimo Barrozo do Amaral (1941-1996). Era uma das marcas de seu fabuloso estilo, um repertório de charme que incluía a informação privilegiada, o texto fino, o humor farto e o uso de bordões. O “não será surpresa” era um truque também. Seu enunciado ocupava uma linha da coluna e, em dias de vacas magras, ela ficava mais próxima do fim.

A jornalista Miriam Leitão, que trabalhou na coluna nos anos 1980, lembra que numa noite de feriado o fechamento estava difícil, zero de notícias, e ainda faltavam três linhas. Zózimo botou o papel na máquina, tascou o bordão do “Não será surpresa para esta coluna” – e nada. Pensou muito – e veio-lhe a luz: “... nada mais será surpresa para esta coluna”.

O maluco tristeza espargindo perdigotos na porta do palácio virou a mais lamentável piada internacional em tempos de peste. E olhe que ele concorre com o bielorusso que mandou o povo tomar vodka. Com o sujeito do Turcomenistão, que proibiu a palavra corona até nas conversas. O das Filipinas, que autorizou a polícia a dar um tiro em quem saísse de casa. E o da Colômbia, que no manual de práticas sexuais recomendou à população se abster do sexo anal – e preferir masturbação. 

Diga o que disser Bolsonaro hoje (duas espadas de São Jorge em forma de cruz na porta de cada casa, galho de arruda atrás da orelha, atirar sal grosso por cima da cabeça, três dentes de alho num saquinho vermelho), Zózimo estava certo. Muita maluquez, pouca lucidez, os males do Brasil são. Nada mais será surpresa para esta coluna.

Brasil das covas

Coveiros no cemitério Vila Formosa, em São Paulo

Merecendo o capitão

Uma amiga minha, filha de um major do Exército, morou em Brasília em 1970, apogeu da ditadura. O apartamento de seus pais ficava numa superquadra reservada a militares, de frente para o Eixo Monumental. E, como a vida militar se regula pela hierarquia, seus prédios na cidade seguiam essa hierarquia. Mesmo que com diferença de um andar, um general sempre morava mais alto que um coronel e este idem que os majores e capitães. Aos tenentes, só devia restar o térreo e de fundos.

Como os militares se mudavam para Brasília com a família, a hierarquia se transferia automaticamente para esta —donde um filho ou neto de general tinha preferência, digamos, no elevador, sobre o neto ou filho do de outra patente. Segundo minha amiga, alguns desses meninos, já adestrados no espírito da categoria, exigiam que seus coleguinhas de prédio, filhos de oficiais subordinados, lhes batessem continência, como os pais destes faziam quando cruzavam nos corredores com o generalão.

Foi esse rigor hierárquico que impediu que certos pesos-pesados da ditadura atingissem os postos a que se julgavam destinados --suas patentes os levavam a bater a cabeça no teto e dali não passar. Um deles o general-de-divisão Albuquerque Lima, candidato à sucessão de Costa e Silva, mas que nunca chegaria lá por não ser general-de-Exército —como Médici. Se um general com uma estrela a menos não podia ser presidente, imagine um coronel como Mario Andreazza, que, naquela mesma sucessão, também delirou com a Presidência.

Mas os tempos mudam. Hoje, generais batem continência para um ex-capitão expulso do Exército por indisciplina e que depois se entregou a uma longa e bem paga sinecura de político profissional. Se isso diz algo sobre a nossa pobreza política, diz ainda mais sobre a militar.

Queiram ou não, os generais estão merecendo esse capitão.
Ruy Castro

Coro 'evangélico'

A relação de Malafaia com Bolsonaro é semelhante à de muitos empresários. Eles não querem abrir mão dos seus lucros e dos seus crescimentos. Silas Malafaia é um empresário da religião, que, junto com esses outros empresários, defende os seus interesses
Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

Vírus traz à tona nosso ‘deep state’; Bolsonaro governa o 'Bolsolavistão"

Nesta quinta, o presidente Jair Bolsonaro divulgou e pediu que se passasse adiante um vídeo em que uma senhora cobra que os militares saiam às ruas para pôr fim à quarentena. O público-alvo da exortação golpista —a de Bolsonaro— não são os brasileiros, mas os quartéis. Prega no vazio. Adequadas às suas particularidades, as Forças Armadas também aplicam medidas de isolamento social.

O presidente comete mais um crime de responsabilidade. Até a minha coluna passada, contavam-se 10. Agora, 12. Responderá por eles no tempo possível. À maneira cabocla, o coronavírus revelou a existência de um ‘deep state’ no Brasil. Pela Saúde, fala o ministro Luiz Henrique Mandetta. Pelo ordenamento geral, o general Braga Netto, da Casa Civil.


Governam o país. À margem, vitupera Bolsonaro, estimulando os perdigotos da desordem e da tragédia, prenhes de vírus. Governa o Bolsolavistão. Ademais, a Constituição reconhece a existência de um vice-presidente também eleito: general Hamilton Mourão. A Carta e a lei 1.079 trazem o regramento necessário para que a República sobreviva a vontades que a aniquilariam.

Entendo. Não é mesmo fácil a um presidente ter de vir a público para anunciar que, em alguns meses, de 100 mil a 240 mil cidadãos podem morrer vítimas da Covid-19, obrigando-se ainda a alertar que, sem medidas de distanciamento social, a cifra aponta para catastróficos 2,2 milhões.

Foi o que fez Donald Trump na terça. Pela primeira vez, o histrião pareceu um estadista. Economizou nos esgares. Terá de acertar contas com o povo americano. Até havia pouco, nos seus discursos, a doença era só uma gripe provocada pelo ‘vírus chinês’, e os riscos que corriam os EUA não passavam de um fantasma brandido por democratas para prejudicar sua campanha à reeleição.

Sua plateia se divertia a valer, com risos brancos, robustos e corados. Muitos estão agora contaminados, internados ou mortos. Não é justiça divina. Deus tem outros afazeres. É a educação pelo vírus. Até Trump é capaz de aprender.

O presidente dos EUA e a maioria dos líderes mundiais deixaram-se convencer pelo estudo liderado pelo Imperial College de Londres, que estimou o impacto da doença em 202 países, incluindo o Brasil. Por aqui, anteviu-se a morte de 1,15 milhão caso se adotasse o padrão milanês de combate ao vírus, como prega Bolsonaro.

As advertências do Imperial College foram referendadas por modelos matemáticos de especialistas dos EUA, da Europa e da Índia, entre outros países. Bolsonaro, em quem a revista inglesa The Economist —liberal, de direita!— tascou a pecha globalmente inapagável de ‘BolsoNero’, dispõe de suas próprias certezas.

À ciência, opõe as convicções de um fatalista tragicômico. Duas delas: “Todo mundo morre um dia” e “brasileiro tem de ser estudado porque pula no esgoto e não acontece nada”. A qualidade de um debatedor ou de um formulador de políticas públicas também se mede pelos argumentos irrespondíveis que é capaz de esgrimir.

Nota em defesa de Nero: nem tocou fogo em Roma nem foi dedilhar sua lira enquanto a cidade ardia, como no horrível filme ‘Quo Vadis’, baseado em romance ainda pior.

Já o nosso imperador lembra, às vezes, de fato, o Nero tresloucado que Suetônio, precursor dos blogueiros da difamação, inventou em ‘Os Doze Césares’, um clássico.

Bolsonaro não está só. O ditador Alexander Lukashenko, que governa Belarus desde 1994, defende que se combata o vírus com sauna e vodca. Gurbanguly Berdimuhamedow —não tente decorar—, que tiraniza o Turcomenistão desde 2007, proibiu a imprensa e os indivíduos de escrever ou pronunciar “coronavírus”. Jornalistas devem ainda evitar o vocábulo “problema”. Uma imprensa sem viés ideológico.

“Eu quero que cada americano esteja preparado para dias difíceis. Nós vamos passar por duas semanas muito brutais”, afirmou Trump ao reiterar a necessidade das medidas de isolamento social. Bolsonaro prefere passar adiante um vídeo que convida os quartéis a dar um golpe no Bolsolavistão.

Não vai ter golpe, vai ter lei. Melhor não morrer nem de vodca nem de vírus.

Bestialidade à Bolsonaro

Dia 19.

Já ninguém tem dúvidas que a pandemia da Covid-19 é o maior desafio que o mundo já enfrentou desde a Segunda Guerra Mundial. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas repetiu-o hoje, reafirmando que a situação pode levar a uma recessão sem paralelo e, por isso, exige resposta forte e eficaz.


Ninguém… ou quase ninguém. Enquanto a maioria dos países se fecham em casa, declaram estados de emergência e se concentram na luta contra o Covid-19, há políticos que, ainda assim, fazem exatamente o contrário, recusando a ameaça que se agiganta a cada dia que passa. Trump começou por seguir esse caminho, mas depois emendou a mão, adotando uma estratégia de avanços e recuos na mensagem que faz jus à sua habitual incongruência. É só o Trump a ser o Trump. Mais preocupado com o seu umbigo, a sua imagem e como sai disto tudo do que com a saúde dos americanos (“só quero ser reconhecido”, repetiu várias vezes na conferência de imprensa que assisti há dias numa emissão em direto e que dá vontade de ir às lágrimas).

Mas o campeão da cegueira em tempos de Covid-19 é mesmo Bolsonaro – uma verdadeira besta do obscurantismo. O que tem feito – e não feito – configura um crime de atentado contra a saúde pública, ou mesmo um crime contra a humanidade. O Presidente brasileiro tem sistematicamente ridicularizado o perigo e recusado implementar medidas de controle mais apertadas. O que todos veem como um perigo mortal, Bolsonaro chama de “gripezinha”. Coisa pouca, que não o deitará a ele abaixo – e é este o exemplo que dá aos brasileiros. Só falta chamar-se mariquinhas. Este fim de semana passeou-se por Brasília aconselhando as pessoas a voltarem à sua vida normal, indo contra os conselhos do seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

A coisa é de tal forma negligente que são as próprias redes sociais Twiter, Facebook e Instagram a filtrarem e apagarem os seus posts, por os considerarem capazes de criar desinformação que pode causar danos reais às pessoas perante um cenário generalizado de pandemia. Redes sociais mais zelosas pelo bem-estar das populações do que o Presidente de uma nação com 209 milhões de habitantes – acredita-se nisto?

Idiotas idênticos só mesmo outros dois senhores no poder, ambos aparentemente com o mesmo nível de bestialidade. Aleksander Lukashenko, líder da Bielorrússia, que desvaloriza a gravidade da Covid-19, e sugere muita sauna porque, segundo ele, o calor mata o bicho, e vodka com fartura, que é a “cura para tudo”. Ou Nicolás Maduro, que também recomendou uma bebida caseira para ajudar a acabar o coronavírus, e que também viu o seu post apagado no Twitter.

O que seria de nós, portugueses, se tivéssemos António Costa a recomendar-nos praia e vinho tinto?

Pensamento do Dia


Perdido por mil

Dúvida, já não há: o Brasil tem na Presidência da República um homem psicológica e emocionalmente perturbado. Não diria louco, pois seria, assim, tido como inimputável, e Jair Bolsonaro de alguma maneira, cedo ou tarde, terá de pagar pelo mal que vem causando ao país com seus atos e palavras de incentivo à quebra das regras de precaução no combate mundial à expansão da Covid-19.

Não faz isso apenas por ignorância ou pura teimosia. Faz também com algum objetivo que só está claro para ele e para os celerados que compartilham de suas posições.

Para detectar alguma lógica nessa desordem mental, algumas hipóteses são desenhadas. A mais radical aventa a possibilidade de o presidente tentar provocar um processo de impeachment para se pôr no papel de vítima e se eximir das responsabilidades às quais não consegue fazer frente por falta de vocação e preparo.

Outra, em linha semelhante, desperta a desconfiança de que esteja querendo forçar uma situação à moda húngara, que enseje a tomada de soluções autoritárias como o recurso ao estado de sítio. Tratando-se de Bolsonaro, não convém duvidar de nada, por mais absurdas e inexequíveis que sejam as ideias.

Ele quer fazer o diferente a fim de tentar se valer tanto de possíveis bons resultados das medidas de precaução, como se fossem a prova de que tinha razão, quanto do inevitável agravamento da situação econômica para, então, dizer: “Eu avisei”.

Em ambos os casos as opiniões de Bolsonaro têm tido peso zero nos ministros que o ignoram, na Justiça que derruba suas decisões, nos governadores e prefeitos que o contrariam, nas empresas servidoras de redes sociais que apagam suas mensagens, nos panelaços diários, na maioria da sociedade que não lhe dá ouvidos e, podendo, fica em casa.

No panorama de hoje, Bolsonaro pode dar adeus à reeleição para se concentrar na permanência no cargo até 2022

O perigo mora na minoria que embarca na canoa temerária do presidente e sai por aí pondo em risco a vida dos outros. Como mostrou várias vezes não levar o valor humanitário em conta (até que lhe doam os calos eleitorais ou seja pessoal e gravemente atingido pela doença), por vontade própria Jair Bolsonaro não vai parar. Ensaia recuo para ganhar tempo, como fez no pronunciamento de 31 de março, mas não desiste do confronto. É da natureza dele. Mesmo à beira do abismo, dá um jeito de prosseguir.

A boa notícia é que os desejos de Bolsonaro não se sobrepõem à força da sociedade que se encarrega de lhe impor um paradeiro. Não acontece de uma hora para outra, mas já começa a acontecer quando um ministro do Supremo pede à Procuradoria-Geral da República que examine notícia-crime contra o presidente e outro o proíbe de fazer campanha contra o isolamento, quando jornalistas fartos de ofensas abandonam uma entrevista, quando se estabelece um ambiente de desobediência cívica.

Criou-se, e vai se ampliando, o consenso de que estar do lado certo é estar do lado oposto ao do presidente da República. É um cenário inédito que já nos permite ensaiar projeções para as eleições de 2022, isso considerando que a menos danosa dessas projeções para Bolsonaro é não conseguir ser reeleito. Sim, porque ele precisa se segurar no cargo até lá antes de pensar numa reeleição que, na conta de hoje, só não estará perdida se houver uma improvável mudança radical do quadro.

Mantido o calendário eleitoral deste ano e realizadas as municipais em outubro, mesmo já tendo passado a fase crítica os efeitos da crise ainda estarão sendo sentidos pela população, o que evidentemente fará com que o tema domine a campanha. Ora, Bolsonaro, tendo se colocado na contramão das boas práticas de prevenção à disseminação do vírus e assumido, assim, a posição de protagonista-vilão, será o alvo preferencial dos candidatos e o centro das polêmicas no eleitorado.

Uma eleição que em condições normais teria como foco primordial questões locais, caso ocorra mesmo ainda em 2020, e será tomada pelo debate do enfrentamento das sequelas da pandemia, passando necessariamente pela conduta das lideranças políticas durante a crise.

Quesito esse em que Bolsonaro não terá bom desempenho. Mais que isso: apontado, antes do evento nefasto, como favorito em 2022 por falta de contendores competitivos, o presidente jogou fermento na concorrência.

Agora não faltam no horizonte adversários bem-vistos pela população. Os governadores João Doria (SP), no primeiro esquadrão dos já colocados, e Flávio Dino (MA), no time intermediário, e Luiz Henrique Mandetta e Ronaldo Caiado entre os que até então não estavam no cenário da eleição presidencial.

Sangue do meu sangue

Quando Bolsonaro se lançou em campanha, muita gente se identificou com suas propostas de combate à corrupção e aos privilégios e sobretudo para impedir a volta do PT ao poder. O que eles não sabiam era que os três filhos do capitão mandariam mais que qualquer ministro. Bolsonaro os adora e os considera inteligentíssimos e competentíssimos, especialmente o 02, Carluxo, a quem atribui os méritos de sua vitória eleitoral por ser “uma fera nisso aí de redes sociais”. Eduardo, escrivão de polícia, não conseguiu comer o filé da embaixada em Washington. Flávio está dependendo da Justiça e do silêncio do Queiroz.

Tanto a ala militar quanto a olavista do governo temem o poder dos filhos sobre o capitão. São os únicos em quem ele confia totalmente, porque Bolsonaro é paranoico, não confia em ninguém e vê conspiradores em cada canto. Seu lema é “a família acima de tudo” e não hesitaria em criar uma crise institucional e colocar seu governo em risco para salvar um filho da cadeia. Como pai de três, até entendo, mas não justifica.


No seu ótimo “Tormenta – O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos”, Thaís Oyama conta que quando Jair teve uma briga com Carluxo, que tem temperamento instável e passional e toma remédios tarja preta, e o filho sumiu por duas semanas, ficou desesperado com suas ameaças de nunca mais voltar a vê-lo. Sempre paranoico, Bolsonaro diz que tem medo de que ele “faça uma besteira”, velho eufemismo para suicídio. Carluxo, que ambiciona ser o filho predileto, o que não é difícil porque os irmãos são dois bobalhões que só criam problemas, tem o pai pelo cabresto afetivo. Criou e comanda o “gabinete do ódio” no Planalto, é o filho mais influente.

Por essa ninguém esperava. O país ser governado pelo presidente com um triunvirato de sangue, que não foi eleito nem tem qualquer qualificação para isso, mas é influência decisiva em qualquer posicionamento importante do pai, principalmente os errados, as fake news, desinformações e provocações estimuladas pelos garotos.

O silêncio da ignorância

Em outras palavras, hoje não há atores sociais nem políticos, nem mundiais nem nacionais nem de classe. Então o que acontece é o oposto de uma guerra, com uma máquina biológica de um lado e, do outro, pessoas e grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É o silêncio
Alain Touraine

Os populismos e o vírus

A estigmatização dos idosos é o mais temível monstro político que os populistas podem conceber e contra o qual o mundo terá de se vacinar rapidamente.

Os populistas sobrevivem e infetam o mundo alojando-se na culpa alheia, evitando compromissos próprios e responsabilizando os outros por todos os males que anunciam.

A pandemia não facilitou a vida aos populistas. A covid-19 é um “outro” com uma tipologia muito especial, invisível, escorregadio e, por isso, não fácil de instrumentalizar através de notícias falsas ou da manipulação das perceções dos contaminados e, ao mesmo tempo, difícil de colar aos adversários políticos sem salpicar quem o arremessa.


Não obstante todas estas dificuldades, os populistas tentaram aplicar a cartilha. Donald Trump não se cansou de designar a covid-19 como “o vírus chinês” e cavalgou até ao limite a ideia peregrina de que as recomendações de contenção para o conter eram uma cabala dos governadores e dos cientistas para impedir a sua reeleição. Bolsonaro seguiu, com uma argumentação ainda mais rasteira e abjeta, as pisadas do Presidente americano.

A ferocidade da contaminação e dos seus impactos nos Estados Unidos da América, no Brasil e no mundo foi atirando para o esgoto da História os argumentos de Trump, Bolsonaro e muitos dos seus sósias nos vários continentes, embora seja prematuro qualquer cálculo sobre o impacto político direto nos seus autores e na ideologia que promovem quando chegar o momento do julgamento popular nas urnas, nos países em que a democracia sobreviver.

A história passada e recente do populismo mostra que os seus arautos não desistem facilmente e, mesmo quando obrigados a recuos táticos, voltam em horda ao campo de batalha na primeira oportunidade ou brecha que encontram. Tenho um receio forte de que, inicialmente através de experimentações locais e, depois, em forma de mancha insidiosa, não podendo culpar o vírus, os populistas comecem a culpar aqueles que a ele são mais vulneráveis, ou seja, as gerações mais idosas.

Depois da estigmatização dos chineses ou de todos os que com eles fisicamente se aparentam e, mais recentemente, dos europeus nalgumas zonas do globo, a estigmatização dos idosos é o mais temível monstro político que os populistas podem conceber e contra o qual o mundo terá de se vacinar rapidamente.

Aliado ao espetro da morte, da pobreza, da fome, do desemprego e da desilusão de muitos sonhos destruídos, a estigmatização das gerações pode tornar-se um brutal pesadelo. É preciso evitá-lo com todas as forças que conseguirmos mobilizar para este combate. Um combate de geração, pela geração dos nossos pais e dos nossos avós.

No momento sombrio que estamos a viver, muitos vislumbram a oportunidade de um renascimento, de um reencontro dos indivíduos e da humanidade consigo própria, de uma nova e mais saudável forma de vivermos em sociedade, com mais justiça, menos desigualdades e mais respeito pelo planeta e pela sua diversidade. Estou alistado para não deixar escapar essa oportunidade e a sua antevisão ajuda-me a colorir os dias.

Mas não sejamos ingénuos. Antes de podermos usufruir de um sol mais brilhante e de uma sociedade mais justa, temos de vencer a pandemia e afastar as ameaças populistas que espreitam a oportunidade de capturar a dor para continuarem a reinar.

Brasileiro se dá conta da falta que faz um presidente

O governo estreou uma modalidade nova de apresentação dos dados sobre a guerra contra o coronavírus. Em vez das entrevistas no Ministério da Saúde, coletivas de imprensa no Planalto. No comando, o general Braga Netto (Casa Civil), não mais o doutor Henrique Mandetta, que agora passa a dividir os holofotes com outros ministros.

Na aparência, uma união de esforços contra o inimigo comum. Na realidade, uma evidência do estilhaçamento da tropa federal. Em meio a uma pandemia de contornos inéditos, o Brasil começa a perceber a falta que faz um presidente da República.


Num governo convencional, em que o presidente preside, o ministro segue as determinações do chefe. Se suas ações não ornam com os objetivos do presidente, ele é mandado embora. Se, ao contrário, o ministro recebe ordens para fazer algo de que discorda, é ele quem pede pra sair. No governo atual, marcado pela anormalidade, Mandetta defende uma coisa —o isolamento social— e Bolsonaro advoga o oposto —a reabertura do comércio e a volta dos mais jovens ao trabalho. O ministro valoriza a ciência. O presidente guia-se pelo achismo.

Sem uma coordenação central, governadores e prefeitos implementam o isolamento social meio na galega, cada um à sua maneira. O ministro pede à população que siga as recomendações dos governadores. O hipotético presidente ameaça baixar um decreto autorizando a volta às atividades de trabalhadores formais e informais.

Simultaneamente, o Ministério da Economia prepara a execução de medidas de socorro a pessoas e empresas vulneráveis, para dar fôlego ao confinamento que Bolsonaro quer interromper. Isso não se parece com um governo. Tem outro nome. Chama-se balbúrdia.

Produziram-se dois fenômenos políticos surpreendentes: 1) Bolsonaro conseguiu dar um conteúdo oposicionista à sua Presidência; 2) A oposição que o suposto presidente faz à sua própria administração gerou no Executivo uma instabilidade que inflou a relevância do Legislativo e do Judiciário. Há em Brasília uma articulação subterrânea de parlamentares e magistrados para deter eventuais anomalias surgidas nesse período em que o país se ressente da falta de um presidente da República.