sexta-feira, 3 de abril de 2020

Os populismos e o vírus

A estigmatização dos idosos é o mais temível monstro político que os populistas podem conceber e contra o qual o mundo terá de se vacinar rapidamente.

Os populistas sobrevivem e infetam o mundo alojando-se na culpa alheia, evitando compromissos próprios e responsabilizando os outros por todos os males que anunciam.

A pandemia não facilitou a vida aos populistas. A covid-19 é um “outro” com uma tipologia muito especial, invisível, escorregadio e, por isso, não fácil de instrumentalizar através de notícias falsas ou da manipulação das perceções dos contaminados e, ao mesmo tempo, difícil de colar aos adversários políticos sem salpicar quem o arremessa.


Não obstante todas estas dificuldades, os populistas tentaram aplicar a cartilha. Donald Trump não se cansou de designar a covid-19 como “o vírus chinês” e cavalgou até ao limite a ideia peregrina de que as recomendações de contenção para o conter eram uma cabala dos governadores e dos cientistas para impedir a sua reeleição. Bolsonaro seguiu, com uma argumentação ainda mais rasteira e abjeta, as pisadas do Presidente americano.

A ferocidade da contaminação e dos seus impactos nos Estados Unidos da América, no Brasil e no mundo foi atirando para o esgoto da História os argumentos de Trump, Bolsonaro e muitos dos seus sósias nos vários continentes, embora seja prematuro qualquer cálculo sobre o impacto político direto nos seus autores e na ideologia que promovem quando chegar o momento do julgamento popular nas urnas, nos países em que a democracia sobreviver.

A história passada e recente do populismo mostra que os seus arautos não desistem facilmente e, mesmo quando obrigados a recuos táticos, voltam em horda ao campo de batalha na primeira oportunidade ou brecha que encontram. Tenho um receio forte de que, inicialmente através de experimentações locais e, depois, em forma de mancha insidiosa, não podendo culpar o vírus, os populistas comecem a culpar aqueles que a ele são mais vulneráveis, ou seja, as gerações mais idosas.

Depois da estigmatização dos chineses ou de todos os que com eles fisicamente se aparentam e, mais recentemente, dos europeus nalgumas zonas do globo, a estigmatização dos idosos é o mais temível monstro político que os populistas podem conceber e contra o qual o mundo terá de se vacinar rapidamente.

Aliado ao espetro da morte, da pobreza, da fome, do desemprego e da desilusão de muitos sonhos destruídos, a estigmatização das gerações pode tornar-se um brutal pesadelo. É preciso evitá-lo com todas as forças que conseguirmos mobilizar para este combate. Um combate de geração, pela geração dos nossos pais e dos nossos avós.

No momento sombrio que estamos a viver, muitos vislumbram a oportunidade de um renascimento, de um reencontro dos indivíduos e da humanidade consigo própria, de uma nova e mais saudável forma de vivermos em sociedade, com mais justiça, menos desigualdades e mais respeito pelo planeta e pela sua diversidade. Estou alistado para não deixar escapar essa oportunidade e a sua antevisão ajuda-me a colorir os dias.

Mas não sejamos ingénuos. Antes de podermos usufruir de um sol mais brilhante e de uma sociedade mais justa, temos de vencer a pandemia e afastar as ameaças populistas que espreitam a oportunidade de capturar a dor para continuarem a reinar.

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