quarta-feira, 9 de maio de 2018

Balas Brasil S/A


Três cenas de ladroagem, sem PT

Desde 2014, quando uma pequena investigação bateu no doleiro Alberto Youssef e deu origem à Operação Lava Jato, não se via coisa igual. Em menos de uma semana, explodiram três bombas no andar de cima. Diferentes entre si, deverão trazer consequências comparáveis às decisões do juiz Sergio Moro e ao povoamento das carceragens de Curitiba. Recapitulando-as:

Na quarta-feira passada a polícia prendeu a nata dos operadores de câmbio paralelo nacional encarcerando 33 doleiros. Mesmo sabendo-se que o maior deles, Dario Messer, está foragido, pode-se especular que pelo menos 20 deles eram muito maiores que Youssef.

Se apenas cinco vierem a colaborar com a Justiça, caberão várias Lava Jatos na Operação Câmbio, Desligo. Ela está na vara do juiz Marcelo Bretas, que já botou na cadeia o ex-governador Sérgio Cabral e a cúpula da sua “gestão modernizadora” do Rio.


Por precaução, papeleiros ilustres já estão se afastando do mercado. Alguns deles sobreviveram às Operações Satiagraha e Castelo de Areia. Nos dois casos, a falta de cuidado de investigadores e procuradores permitiu que fossem atropelados pela cegueira da Justiça das cortes superiores. A equipe da Lava Jato tirou a venda da Justiça e deu no que deu.

No domingo soube-se que, em março, o PM paulista Abel Queiroz, funcionário de uma empresa de carros-fortes, contou à Polícia Federal que foi pelo menos duas vezes entregar dinheiro no escritório do empresário José Yunes, bom amigo de Michel Temer, e seu assessor especial no primeiros meses de governo. A PF acredita que esse ervanário valia R$ 1 milhão e saiu da Odebrecht.

No dia seguinte, outra novidade: autoridades suíças informaram que desde 2007 o engenheiro Paulo Vieira de Souza, o “Paulo Preto” do PSDB, transferiu US$ 34,4 milhões para bancos locais. O doutor abriu sua conta na Suíça 43 dias depois de ter sido nomeado diretor de engenharia da Dersa, a estatal de rodovias de São Paulo.

Num episódio inusitado, a existência desse dinheiro foi revelada já há meses pela própria defesa de “Paulo Preto”. Em 2010, quando seu nome foi associado a traficâncias no setor de transportes de São Paulo, ele disse que “não se larga um líder ferido na estrada a troco de nada, não cometam esse erro”. O estado é governado pelo tucanato desde 1995 e “Paulo Preto” está preso desde abril.

Uma eventual colaboração de doleiros ainda é matéria de especulação, mas os antecedentes permitem supor que algumas virão. Youssef foi uma peça vital para a Lava Jato, e os irmãos Chebar fritaram Sérgio Cabral. O sinal mandado por “Paulo Preto” sugere que ele já não está afim de ficar ferido na estrada.

A prisão dos doleiros terá efeitos multipartidários. De saída, ela bate em notáveis do PSDB e do MDB. A revelação do PM que levava dinheiro ao escritório de Yunes flamba Temer e seu MDB. Já a fortuna exportada por “Paulo Preto” vai ao coração do PSDB chique de São Paulo.

Nessa sucessão de novidades ainda há mais: pela primeira vez desde que a Lava Jato entrou nas petrorroubalheiras do PT, a rede caiu em cima de doutores que nada têm a ver com o comissariado. Pelo contrário, eram ilustres defensores da deposição de Dilma Rousseff em nome da moralidade pública. Quem foi para as ruas em 2016 deve se lembrar dessa esperança.
Elio Gaspari

O prazo como problema

Todo ano, o prazo para a entrega da declaração do Imposto de Renda, sintomaticamente, deflagra mais uma aflição nacional. Nele se encarna o fantasma da falta de coerência entre a sociedade e o Estado. Apesar dos lembretes e da aparente compreensão de que os impostos têm um papel fundamental na erradicação de imensas desigualdades sociais, milhões entregam suas declarações com atraso.

Todo ano, eu testemunho amigos cheios de uma culposa adrenalina porque deixaram para a última hora o preparo de suas declarações. Eles sabem do atraso, admitem não haver desculpa para uma inadimplência conhecida por parte de gente tão politizada, mas, mesmo assim, preferem ficar com a sua freudiana amnésia.

Para muitos, há um claro traço de rebeldia e vingança contra o Estado e o Estado encarnado num governo. Coisas do governo não são confiáveis; o Estado sempre está contra o povo, e leis absurdas são legião. Ademais, a estrutura do nosso Imposto de Renda é reversa: os muito ricos pagam menos do que os de baixa renda. Os pobres, eis um argumento geral e válido, são desfavorecidos e o prazo implacável para pagar impostos contrasta com a abusiva ausência de prazos para terminar estradas, escolas, hospitais e realizar as reformas que o próprio governo tem como insidiáveis.

A contradição entre prazos fatais para o cidadão e a total ausência de prazo para o governo e os privilegiados é acachapante e somente mostra a aguda desarmonia entre “Estado” e sociedade. Esta sempre mal- educada, atrasada e inadimplente; aquele sempre inspirado nas melhores leis, constituições e regras do “mundo civilizado”, mas, como compensação, com os mais cínicos e incompetentes administradores do mundo. Tanto, que eles foram descaracterizados de suas funções para serem desclassificados como “políticos”. Uma palavra equivalente, com o perdão do leitor e da leitora, a meliante, malandro, bandido e, no limite, f.d.p!

Nesse contexto, não esqueço de uma questão levantada por um colega muito respeitado quando explica o seu atraso e sua relutância. Por que, dizia ele, pegar e contribuir para um sistema injusto?

Não há dúvida que as coisas mudaram muito para pior. Sou de um tempo que escritores, jornalistas e professores eram isentos do Imposto de Renda pelo artigo 113 da Constituição Federal de 1934 (eu sou de 36). A obviedade em proteger formadores da opinião pública não precisa ser acentuada diante da índole ditatorial-patrimonialista do Estado Novo. Mas é paradoxal, como acentuei num ensaio sobre o “corporativismo” publicado na revista Interesse Nacional, no ano passado, que o governo revolucionário de Vargas, feito para os “trabalhadores” (netos de escravos!), tenha desobrigado de um imposto essencial jornalistas, escritores e professores, uma isenção removida três décadas depois, em 1964, pelo reacionário regime militar. Noto, de passagem, como tais paradoxos revelam os riscos de uma visão linear da sociedade.

Nesse contexto, cabe uma nota pessoal. Quando visitei Harvard pela primeira vez, deixando o Rio em setembro de 1963, fui ao Ministério do Trabalho solicitar um documento de isenção do meu Imposto de Renda, obrigatório para obter o passaporte, pois era professor do Museu Nacional. Quando voltei, em agosto de 1964, para viver no regime golpista do governo Castelo Branco, fui obrigado a entrar na lista dos contribuintes da Receita Federal. Verifiquei que minha corporação havia perdido um privilégio fundamental e, dali em diante, jamais deixei de entregar minhas declarações no prazo.

Quando comentei esse assunto com meu tutor Richard Moneygrand, dele ouvi um axioma cultural americano: na vida - disse - só havia duas coisas inexoráveis: morrer e pagar Imposto de Renda! Muito diferente da vossa democracia - continuou - na qual toda lei universal (esse apanágio da igualdade) sempre tem exceções. Vosso governo é mestre em bater simultaneamente na tecla do universal e do particular, daí o desajuste.

*
Como explicar esses costumeiros atrasos? Quando penso nos Estados Unidos e no Brasil me veem à mente situações com início e fim bem marcados por lá; e começos e fins gradativos ou intermináveis aqui. Tudo se passa como se houvesse nitidez nos Estados Unidos e a névoa do privilégio no Brasil. Porque entre nós, nada começa sem o mais importante, de modo que tudo tem um momento movediço cujo valor depende do prestígio e da importância dos que ocupam o topo da pirâmide. Somente nessa sufocante avalanche de crises é que estamos buscando clareza porque, em democracia, todos têm prazo, inclusive e sobretudo o governo.

Paisagem brasileira

Oeiras (PI)

Confortavelmente entorpecido

Todo o respeito ao amor, mas vamos mais longe sem ele, disse um abatido e atormentado Thomas Mann ao sair do funeral da irmã, que se fora tragicamente. Sentiu que “aquele raio que caiu de forma súbita tão desesperadamente perto” dele era a tempestade de profundo desamparo que chegava à sua volta. Especialmente porque era muito claro o sinal desencorajador da vida cultural, política e econômica da época. Pesa no peito ver que o cansaço que atinge o Brasil está ligado à dificuldade de mudar crenças enraizados na dinâmica institucional ultrapassada que nos conforma. Reforçada pela devastação da política de gozos ilimitados que produziu a crise atual.

Olá, apenas acene se puder ouvir. O rancor não matou o amor. Tristes deslizamentos. Por maior que seja a importância da opinião, não exagere seu papel. Olho na atitude e na origem dos juízos morais. Leia o lábio dos falantes, repare se o estertor do fútil se mistura ao limite do inútil. Costumes ruins sufocam outras formas de expressão, a novidade é calma e incompreendida. Cancele a entrada dos fantasmas no domicílio dos desejos. E se ponha em pé de novo. O que recordamos não é mais realidade.


Dito isto, recorro a Italo Calvino para afirmar que é inútil determinar se o Brasil deve ser classificado entre os países felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir os países nessas duas espécies, mas em outras duas: aqueles que continuam ao longo dos anos e das mudanças a dar forma aos desejos de seus habitantes e aqueles em que os desejos das pessoas conseguem apagar o país ou são por ele destruídos.

O ícone, comum na nossa mitologia, vira fantasma sem força para ser símbolo da sociedade que o admira. Normalmente a encontra disponível, penetra sua alma, termina fazendo de si mesmo o que ela rejeita. Alimenta-se da exultação pela esperança e aproveita para confundir “sujeito” com “objeto”. Apropria-se do já feito e opera na coisa uma transgressão. Transfere um problema material, concreto, para a esfera espiritual desviada do lugar. Essa paixão pela influência vem da fantasia alimentada pela imaginação corrompida, imaginação má, inflada pelo elogio. O narcisismo é despolitizante. Suas vítimas precisam mais de calmante que de conselhos. O ícone é bibelô pesado de sociedade arcaica, boneco de loja de brinquedos preenchido com cacos de razão do desejo de qualquer um.

A política, principal lugar de peregrinação da fantasmagoria da sociedade, é o ateliê do fabricador de ilusões. Pelo esboço da figura é possível antever a estátua inteira. Basta um clique no seu ego e temos um ser necessário à causa de si próprio.

Por isso não arrefecerá até outubro o tom elevado da paixão política como forma de produzir faísca para influenciar votos. Só que, envergado por baixo do estranho círculo que envolve “amabilidade” em eleição, o naufrágio atual é esse silêncio da massa, entregue aos seus segredos.

Não é de crítica da solidariedade que se trata, o mais caído dos homens merece ser considerado. O que falta é certa qualidade a esta representação da bondade. É desastroso fingir que só há um preso, um único processo errado, e sair mentindo pelo mundo o frio esquecimento de aliados condenados. O ativismo, neste caso, não contém elemento de mudança. Nada vai encobrir as condições problemáticas do ocorrido.

Não se pode querer ver numa coisa o que já não exista nela. Nem entender nada fixado no tempo que abasteceu e usufruiu do sistema que prometeu combater. Ninguém caiu por contestá-lo, mas por usá-lo ao limite. Foi a rotina da sua realidade que desabou. Assim, a luta da inteligência de esquerda pela pacificação do País não é se alistar na trincheira da autocomplacência. Engajamento político necessário é a filosofia da liberdade que alimenta correntes de opinião e pensamentos de união livre e espontânea, autonomia, recusa de toda coação, indignação contra a violência dos privilégios, humanismo, universalidade, tolerância, opiniões pacíficas.

Dos visitadores, alguns pela prudência do súdito diante do senhor, ecoam lisonjas e paradoxos truculentos, sem se darem conta do lado injurioso que é exigir de alguém o que ele não pode dar. Os que o perderam por excesso de fruição talvez não notem que o martirizam sabendo que ele não deve fazer, no momento, outra gestão da sua existência. Difícil entender organização coletiva tão descuidada da reputação das palavras onde tudo é padecido, colérico, interditado. Perseverança que o desumaniza, amarrada no irreal. Suscitar tal paixão pelo sagrado só interessa a devotos. A democracia brasileira está dominada por essa crise do individualismo e influência ostentatória. Esse fogo sem forma que tirou da política a grandeza da moralidade comum e acabou dando a tribunais a pretensão de herói civilizador. Ambiguidade, nossa fratura exposta. O país do próprio como impróprio.

Um passado tão próximo, por força de escolhas alienantes, torna-se um passado ideal, como se os elementos da desordem que se seguiu já não estivessem contidos na ordem que se foi como fumaça de um navio que some no mar. Sistemas sociais e políticas distributivistas se misturaram ao contexto político de corrupção e desviaram o foco do capitalismo para a aceitação de relacionamentos escusos que mais oligopolizaram a nossa economia. Estruturado sobre dádiva, egoísmo e apreços, estagnou a inteligência crítica e a compreensão do óbvio.

Enquanto isso, segue em sonolência o desfile dos candidatos. Quem usufruir um poderoso é obrigado a dizer meu caro, você está fazendo cada vez mais bobagem. Vamos revogar a regra que é sonhar com uma ação inaudita, desdobrada, de um herói. Não estamos submissos a pessoas espetaculares, nem estamos regredindo. Não é assim que nós somos. Bom governante não torna o povo confortavelmente entorpecido.

E a miséria...

O socialismo consiste em atribuir o bem aos vencidos, e o racismo aos vencedores. Mas a asa revolucionária do socialismo serve-se daqueles que, ainda nascidos em baixo, são por natureza e por vocação vencedores, e assim conduz à mesma ética 
Simone Weil, "A Gravidade e a Graça"

Juízes ganharam o trombone, agora falta o sopro

A demolição da marquise do foro privilegiado deu um poder insondável aos “juízes de piso”, como são chamados no Supremo os magistrados da primeira instância do Judiciário. Gilmar Mendes disse que deixar os processos que envolvem os poderosos da República “com essa gente” é um equívoco. “Vai dar errado”, sentenciou o supremo magistrado.

Não espanta que Gilmar Mendes seja incapaz de enxergar competência na primeira instância. Por vezes, o ministro passa a impressão de que, se pudesse, mandaria prender juízes como Sergio Moro, Marcelo Brettas e Vallisney de Souza. Surpresa mesmo haverá se os juízes de piso forem incapazes de demonstrar uma eficiência à altura do desafio.

Os processos começaram a escoar do Supremo para o primeiro grau. Dias Toffoli enviou os primeiros sete. Edson Fachin despachou um. Alexandre de Moraes mandou descer mais meia dúzia, entre eles os autos de uma ação penal envolvendo o grão-duque do tucanato Aécio Neves, amigo de Gilmar Mendes.

''Essa gente'' da primeira instância tem uma rara oportunidade para demonstrar que é parte da solução, não do problema. A conjuntura ofereceu aos juízes o trombone. Agora só falta o sopro.

Imagem do Dia

Albion Falls (Canada)

Os expectantes

Entre as definições da ilha planetária em que nos encontramos desterrados, uma das mais apropriadas seria: uma grande sala de espera. Uma terça parte da vida é anulada numa semimorte, outra gasta em fazer mal a nós mesmos e aos outros e a última esboroa-se e consome-se na expectativa. Esperamos sempre alguma coisa ou alguém - que vem ou não, que passa ou desilude, que satisfaz ou mata. Começa-se, em criança, a esperar a juventude com impaciência quase alucinada; depois, quando adolescente, espera-se a independência, a fortuna ou porventura apenas um emprego e uma esposa. Os filhos esperam a morte dos pais, os enfermos a cura, os soldados a passagem à disponibilidade, os professores as férias, os universitários a formatura, as raparigas um marido, os velhos o fim. Quem entrar numa prisão verificará que todos os reclusos contam os dias que os separam da liberdade; numa escola, numa fábrica ou num escritório, só encontrará criaturas que esperam, contando as horas, o momento da saída e da fuga. E em toda a parte - nos parques públicos, nos cafés, nas salas - há o homem que espera uma mulher ou a mulher que espera um homem. Exames, concursos, noivados, lotarias, seminários, operações da Bolsa - são formas e causas de expectativa.


(...) Todos, com diferentes paixões, esperam - sobretudo, as fortunas repentinas, as mudanças imprevistas, o insólito e, com frequência, o impossível. A imaginação trabalha, a fantasia floresce, a paciência suporta, a visão beatífica da hora de contemplação preenche as longas horas da vigília. Quando acontece ou se alcança o esperado, abrem-se todas as comportas da alegria. Mas por pouco tempo, pois a meta não é tão atraente como parecia de longe, ao longo do caminho - toda a vitória, no dia imediato, tem o mesmo sabor da derrota.

Ou então surge demasiado tarde, quando o espírito se modificou e já não dispõe de forças para saborear o bem esperado durante tanto tempo; a mulher perfeita que se oferece, finalmente, quando o jovem ardente se tornou um velho saciado, árido ou flácido. Todo o seu amor se consumou debaixo das janelas, no frio das noites infinitas - quando é lançada a escada, as pernas e os braços não obedecem ou o inflamado partiu.

Mas a desilusão, em vez de conduzir à renúncia, incita a novas expectativas. (...) E toda a vida do homem, apesar de todos os adiamentos e paragens, não passa de um esperar a vida, a bela vida, a verdadeira, a nossa. Todo o presente e o possuído afigura-se-nos apenas um adiantamento para a nossa fome ou um mau prefácio de um livro maravilhoso. E, enquanto esperamos a vida, esquecemo-nos de viver ou vivemos sem economia e prudência, não pensando em destilar dos minutos de hoje, única propriedade certa, todo o sabor e substância.

Giovanni Papini, "'Relatório Sobre os Homens"

Boff e a ideia

O teólogo Leonardo Boff, após visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, comparou o petista a dois ícones mundiais, o indiano Mahatma Gandhi, que liderou a independência da Índia com sua “resistência pacífica”, e Nelson Mandela, que comandou da prisão a luta contra o apartheid na África do Sul, que teve um braço armado. Boff disse que Lula é candidatíssimo e se coloca “acima das brigas jurídicas”.

Boff havia tentado visitar o ex-presidente em 19 de abril, mas o pedido foi negado. Entretanto, Lula foi autorizado a receber “assistência espiritual” às segundas-feiras, além de visitas de dois “amigos” às quintas. Aproveita essas oportunidades para fazer campanha. “Se ganhar, vou não só repetir aquelas políticas sociais que fiz, mas fazer com que sejam políticas de Estado, que entrem no Orçamento, que sejam o centro do poder econômico e político orientado para aqueles que sempre foram excluídos”, disse Lula ao teólogo.


Ao sair do encontro, Boff afirmou que o petista está “muito bem” e “tem uma indignação justa, de quem sofre por causa de falsificações, distorções e mentiras com o objetivo de liquidar a candidatura dele e enfraquecer o mais possível o PT”. A narrativa é puro messianismo, do tipo “dragão da maldade” contra o “santo guerreiro”, corroborada por um teólogo da libertação. Como se sabe, na década de 1960, Boff exerceu grande influência na Igreja Católica, não somente no Brasil, mas em toda a América Latina.

A Teologia da Libertação se baseou em três correntes teológicas: o Evangelho Social, a Teologia da Esperança e a Teologia Antropo-política, que inspiraram o teólogo Harvey Cox, em 1965, a contestar a obra clássica de Santo Agostinho, De Civitate Dei. No lugar da clássica divisão entre a cidade dos homens (o mundo terreno) e a cidade de Deus (o mundo espiritual), a cidade dos operários oprimidos (o mundo proletário), a cidade dos donos do poder (o mundo geopolítico) e a cidade dos capatazes opressores (o mundo burguês).

Na obra Uma teologia da esperança humana (cujo título original era Em direção a uma Teologia da Libertação, sua tese de doutoramento no Princeton Theological Seminary), o então pastor presbiteriano e teólogo brasileiro Rubens de Azevedo Alves, no exílio, estabeleceu o que pode ser chamado de “afinidade eletiva” entre as teses de Cox e o marxismo: a dualidade mundo terreno/mundo espiritual teria sido superada pela dualidade mundo proletário/mundo burguês. O passo seguinte, a criação das chamadas “comunidades eclesiais de base”, teve grande apoio do alto clero católico latino-americano que fazia oposição aos regimes militares.

Na Igreja Católica, os principais teólogos latino-americanos foram o peruano Gustavo Gutiérrez, dominicano, recentemente recebido pelo Papa Francisco, numa espécie de “reabilitação”, e Leonardo Boff, que era franciscano. As críticas de Boff à hierarquia da Igreja, no livro Igreja, Carisma e Poder, acabaram provocando forte reação de Roma. Foi punido pela Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida por Joseph Ratzinger, mais tarde o Papa Bento XVI.

O próprio Cardeal Ratzinger concluiu que as opções de Boff “são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar”. Em 1985, o franciscano foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso”, perdendo sua cátedra e suas funções editoriais na Igreja Católica. Em 1986, recuperou algumas funções, mas sempre sob observação de seus superiores. Em 1992, ante novo risco de punição, pediu dispensa do sacerdócio. Uniu-se, então, à educadora e militante dos direitos humanos Márcia Monteiro da Silva Miranda, divorciada e mãe de seis filhos, com quem mantinha uma relação amorosa em segredo desde 1981.

A Igreja Católica dedicou dois documentos à Teologia da Libertação na década de 1980, considerando-a herética e incompatível com a doutrina católica, mas o movimento se manteve vivo, com reuniões a cada dois anos. No Brasil, sob a liderança de outro teólogo, Frei Beto, que é amigo de Lula e de Boff, as “comunidades eclesiais de base” derivaram para a construção do PT, o que garantiu ao partido sua base popular fora do âmbito do movimento sindical, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Sem esse apoio, o PT jamais seria um partido nacional e de massas; e Lula também não seria uma “ideia”, pois o petista nunca defendeu uma doutrina política, sempre se considerou “uma metamorfose ambulante”.

A narrativa glauberiana de Boff não é gratuita, mira a punição imposta pela Justiça. Lula é tratado como um messias, que surge para anunciar a boa nova e trazer a esperança de volta àqueles que não a têm, uma espécie de cristo dos desvalidos, em torno do qual os excluídos e oprimidos devem se reunir. A ideia de que o petista está “acima das brigas jurídicas” é perigosa, pois subordina o Supremo Tribunal Federal (STF) à ambição de poder do PT.

Cuidado com o coração

Avulta-se grande expectativa em relação ao fim do foro por “prerrogativa de função” – essa preciosa “jabuticaba” das instituições brasileiras –, com o arranjo feito pelo STF, que cuidou, somente, da situação daqueles que exercem mandatos parlamentares. Ficaram fora juízes, membros do Ministério Público, governadores de Estado, oficiais das Forças Armadas e que tais.

Ultimamente, tudo tem sido mesmo muito confuso, quando se trata de decisões do Supremo. Vejam aí as idas e vindas do caso Lula, que nem goza de foro privilegiado. Por isso, o alerta acima: “Cuidado com o coração!” Acompanhar julgamentos do STF pode provocar taquicardia e arritmia. Em mim, tem provocado!

Deixo aqui meus pitacos. Em primeiro lugar, quanto ao foro privilegiado: não adianta “meia-sola”. Ou se tem o tal foro privilegiado para toda autoridade, ou não se tem para nenhuma. Ainda me lembro do então presidente Bill Clinton, em pleno exercício do mandato, sendo condenado por perjúrio por uma juíza federal de primeiro grau, Susan Webber Wright no processo que lhe moveu Paula Jones por conta de assédio sexual. Curioso aqui seria ver generais aceitarem ser processados perante uma auditoria militar, órgão de primeiro grau da Justiça castrense, em caso de crimes militares.

Vale notar que o foro privilegiado no Brasil começou exatamente com a criação da Justiça Militar por dom João VI... 

Por outro lado, a discussão sobre excesso de recursos que dificultam a execução da sentença penal condenatória “antes do trânsito em julgado” deixaria de existir se simplificássemos a sistemática processual com a extinção do recurso especial e, de quebra, com o fechamento do Superior Tribunal de Justiça. Heresia? De jeito nenhum! É assim que funciona nos Estados Unidos. Duas instâncias na Justiça estadual e duas instâncias na Justiça federal. Lá, a uniformização da interpretação da lei federal e a declaração definitiva de inconstitucionalidade das leis ficam por conta da Suprema Corte, que só examina casos que entenda serem realmente relevantes. Ademais, os contribuintes agradeceriam com o que deixaria de ser gasto pelo erário para manter o STJ, como muito bem registrou o historiador Marco Antonio Villa numa série de reportagens publicada há poucos anos.

No mais, para que tanta pompa e circunstância na judicatura? O leitor ainda se recorda de uma reportagem no “Fantástico”, da TV Globo, mostrando um juiz da Suprema Corte sueca indo para o serviço de trem e bicicleta e sem dispor de assessoria em seu gabinete? Só faltam mesmo as encaracoladas perucas brancas para nossos doutos ministros se equipararem aos membros da Court of the King’s Bench, do Reino Unido: já imaginaram a cena, transmitida pela TV Justiça, enquanto doutrina e jurisprudência da Europa e dos EUA são citadas aos borbotões?

República de verdade só teremos no dia em que cada magistrado do STF não precisar de um meirinho para puxar sua cadeira, como deve acontecer onde todos são iguais perante a lei...

Até lá, haja coração!

Sandra Starling