quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar
Bertolt Brecht

Esquerda ou direita?

Há uma contraposição entre as concepções do que é necessário para o desenvolvimento do Brasil. Quatro temas dominam os debates: justiça social, o tamanho do Estado, o déficit primário e a Previdência. As posições não são tão antagônicas como parecem e há aspectos relevantes que não estão sendo analisados. Todos perdem com isso.

As estatísticas do Banco Mundial apontam que os países que mais cresceram são os que têm mais justiça social. Os que têm renda per capita mais alta têm níveis de concentração menores que os de renda mais baixa. Os 20 mais ricos do planeta têm um índice de concentração de renda de Gini de 0,31, mais baixo que os 20 seguintes, de 0,36, e menor do que a vintena subsequente, de 0,39. O do Brasil é de 0,51, um dos dez piores do planeta.

A ordem dos fatores altera o produto. A prescrição é incluir para crescer. Por meio de políticas educacionais e de competitividade aumenta-se a produtividade da base da pirâmide e dessa forma a renda per capita aumenta e a desigualdade diminui. Os privilégios destinam-se às camadas sociais mais baixas e aos micro-empreendimentos. O assistencialismo é considerado necessário e transitório.


No Brasil a situação é o contrário. Há vantagens para os mais ricos e para as grandes corporações. São benesses que estão arraigadas na cultura e no quadro institucional brasileiro. Têm origem no Brasil colônia, com a concessão de direitos quase feudais ao capitão-mor, depois aos donatários das capitânias hereditárias. Após a vinda da família real as distorções se agravaram e continuam a piorar até os dias atuais.

A lista é extensa, grandes empresas têm acesso a créditos subsidiados, desonerações tributárias e proteções da concorrência externa; minorias de cidadãos têm aposentadorias especiais, tratamentos de saúde em hospitais caros e isenções de impostos, com consequências perversas para o resto do País. É injusto. É algo que indigna a todos os que acreditam que somos todos iguais, sem distinção de qualquer natureza.

O fato é que dando mais a uns, sobra menos para outros. Uma aposentadoria mais generosa para poucos ou subsídios para algumas empresas são causa direta ou de menos segurança, ou de menos educação, ou de menos saúde para muitos, ou, ainda, de mais dívida pública – portanto, mais juros e mais impostos e menos crescimento no futuro para todos.

Urge uma política de erradicação de privilégios para os mais favorecidos. É uma questão de justiça e de eficiência sistêmica. Um passo importante foi dado com a luta contra a corrupção. Há necessidade de mudanças que aumentem a competitividade das pequenas e microempresas, que simplifiquem a abertura de novas e facilite a adaptação das existentes a um mundo em transformação acelerada. Nesse quesito o Brasil está mal.

No mês passado, o Fórum Econômico Mundial publicou o Relatório de Competitividade Global 2018. O Brasil perdeu três posições, está em 72.º lugar num conjunto de 140 países. Note-se que a concorrência entre nações não é só para exportar bens e serviços, mas também para atrair investimentos. Essa perda de competitividade relativa implica que postos de trabalho reais e potenciais daqui sejam exportados para outros países.

Outro ponto central no debate entre esquerda e direita é o tamanho do Estado e o papel do livre mercado. Comparações internacionais mostram que os países com renda I mais alta têm maiores gastos governamentais na média. Mas a dispersão é grande. Ilustrando o ponto, a participação do governo da Suécia no PIB é mais que o dobro da Suíça. Como funciona é mais relevante que o tamanho.

A questão-chave é a eficiência na alocação de recursos, que em determinadas situações é feita pelo setor público e em outras, pelo privado. Para tanto se deveria pensar, por um lado, numa reforma do Estado para fazer mais com menos e análises mais detalhadas de como o governo gasta e arrecada, por que e para quem.

O livre mercado é a melhor maneira de alocar recursos, sempre e quando exista uma regulamentação e supervisão adequadas. Senão viram mercados libertinos, para benefício de poucos e prejuízo de muitos.

Os debates sobre o déficit primário e a Previdência refletem como os privilégios do passado estão enraizados na cultura nacional. É fato que a dinâmica das contas públicas é insustentável, deixa o País vulnerável a choques e é um peso para retomar o crescimento.

Mesmo assim, as propostas são de mudanças pontuais e graduais, como a junção de alguns impostos, redução da alguns gastos e algumas privatizações para fazer caixa. É pouco. Uma nova arquitetura previdenciária, tributária e fiscal é necessária. Remendos não resolvem.

A evolução da dívida pública/PIB também depende da taxa de juros, do estoque da dívida e do crescimento do PIB. Além de cortes de gastos e privatizações, há espaços para melhorar a sua dinâmica com alterações na política cambial, com medidas para reduzir a taxa neutra de juros e ajustes no quadro institucional da intermediação.

Além de trabalhar no numerador da relação dívida pública/PIB, é necessário aumentar o denominador. Fazer a economia crescer. A agenda inclui fatores como investimento, abertura externa, funcionamento adequado dos mercados e crédito, entre outros. Assim como uma inclusão produtiva, reformas do Estado, previdenciária, fiscal e tributária. O Brasil está tendo uma oportunidade de transformação significativa. Tem de ser aproveitada.

2019 começa com um novo governo, um Congresso renovado e capacidade ociosa na economia. O cenário externo é favorável, com preços de commodities elevados e fluxos financeiros abundantes. É hora de começar a debater a coisa certa. Não é escolher entre políticas de esquerda ou de direita, mas, sim, de políticas para fazer o Brasil parar de andar de lado e avançar.

Desilusões eleitorais

Eleições têm resultados, resultados promovem sequelas. Desilusões fora do estreito campo político, que, como o sarampo e a burrice, contaminam a vida rotineira, que simplesmente vive o mundo sem nele pensar. Nesse terremoto político que foi a eleição de Jair Bolsonaro, especulamos ansiosamente sobre tendências (no fundo, desejos), focalizando o campo financeiro e o político e deixando de lado a nova química emocional que tem afetado nossas casas, famílias e amizades. Por muitos motivos que não vale repetir, porque o jornal fala deles periodicamente, vivemos no Brasil uma inusitada fragmentação íntima, a qual veio abalar o rotineiro “em quem você vai votar?” e as razões morais do voto, o que tem levado a debates exaltados, reveladores de como o mundo público — o universo da “rua” — inapelavelmente penetrou a “casa” numa prova de mudança. Agora, sem dúvida, não éramos apenas pais e filhos, marido e mulher, professor e alunos, mas santos ou demônios, fascistas ou democratas.

Muitos amigos dormiram numa família para tomar café da manhã num comício político exaltado e foram para o trabalho descobrindo que o rebento, o colega e até mesmo a mulher amada eram intolerantes inimigos políticos.

Se fosse um exaltado, diria: “Não é a economia, e muito menos a política, seu burro! É a cultura, que tudo inventa e canibaliza!”
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Ele era baiano; ela, paulista. Ele demorava pra falar, e ela dizia coisas complicadas com a rapidez de um relâmpago. Ele a atraiu por sua voz melodiosa, e ela o atraiu pela sua altura. Jameson, digo logo seu nome, era fascinado por mulheres esguias, que exerciam sobre ele um poder fetichista. Meu código de cavalheiro impede revelar o nome da moça, mas acrescento que ambos eram “cientistas sociais”, solteiros e perfeitamente equilibrados, exceto quando se tratava da febre eleitoral que infectou todo esse Brasil de gente que “não sabe votar”...

Um olhar foi suficiente para o encontro, depois que cada qual discutiu a sua comunicação no “Seminário sobre Tolerância e Democracia” realizado um pouco antes da eleição na universidade. Ela estava em trânsito neste nosso Rio de Janeiro, que ainda é a “Cidade Maravilhosa” de muitos paulistas. Ele aqui morava e, naquela noite, seu plano era claro: saber mais dela e desfrutar de modo tranquilo e pós-moderno uma noite mágica de sexo à antiga. Admiravam os mesmos autores, tinham pesquisado assuntos semelhantes e adoravam vinhos macios ao paladar. Pediram ao mesmo tempo um Merlot, que causou uma auspiciosa risada confirmadora da afinidade que saía da garrafa e ia sendo saboreado pelo quase casal numa expressiva sincronia.

Quando o último bar fechava, e os garçons se entreolhavam, veio a tragédia: eles citaram o nome de um presidenciável, e o processo eleitoral — com tudo a que ele tinha direito —baixou entre eles.

Foi num surto de terror que cada qual descobriu no outro o inimigo.

— Eu já suspeitava disso num machista branco.

— Mas eu sou baiano, mulato e tolerante como Gilberto Freyre — retrucou ele, com um bafo do Merlot que azedava. —Vocês só pensam em sexo.

—E você, inumana, se satisfaz com a masturbação política!

— Grosso! Machista! Golpista! Na certa um homofóbico enrustido!

— Homofóbico não! Apenas um homem fuzilado por clichês fascistoides...

O bate-boca os levou até a fachada acolhedora do seu prédio. Ele trouxe de volta o seu plano original de convidá-la a subir. Mas estavam possuídos pela política, que estragava tudo. Foi-se, como o vinho, a tolerância democrática. A prática, como dizia Zhou Enlai (Chu En-Lai), tritura a teoria...

Um desesperado gesto de paz, de conscienciosa lucidez e de conciliação, o levou a pegar-lhe a mão e dizer:

— O que é isso, gatinha? Vamos com calma...

— Não me chama de gatinha, seu filho da puta! Agora você tirou a máscara!
Não passas de um safado machista branco e racista. 

—Repito: eu sou baiano.

—Não! És um branco, nazista e prepotente!

No dia seguinte, ele ligou e descobriu que ela o havia excluído — ofensa das ofensas — do seu Facebook.

Pensamento do Dia


15 de novembro

Escrevo esta no dia seguinte ao do aniversário da proclamação da República. Não fui à cidade, e deixei-me ficar pelos arredores da casa em que moro, num subúrbio distante. Não ouvi nem sequer as salvas da pragmática; e, hoje, nem sequer li a notícia das festas comemorativas que se realizaram. Entretanto, li com tristeza a notícia da morte da princesa Isabel. Embora eu não a julgue com o entusiasmo de panegírico dos jornais, não posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora.


Veio, entretanto, a vontade de lembrar-me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de República. Isso me acudiu porque topei com as palavras de compaixão do Sr. Ciro de Azevedo pelo estado de miséria em que se acha o grosso da população do antigo Império Austríaco. Eu me comovi com a exposição do Dr. Ciro, mas me lembrei ao mesmo tempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescas desta cidade.

Em seguida, lembrei-me de que o eminente Sr. Prefeito quer cinco mil contos para reconstrução da Avenida Beira-Mar, recentemente esborrachada pelo mar.

Vi em tudo isso a República; e não sei por quê, mas vi.

Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu2, tendo como repoussoir3 a miséria geral? Não posso provar e não seria capaz de fazê-lo.

Saí pelas ruas do meu subúrbio longínquo a ler as folhas diárias. Lia-as, conforme o gosto antigo e roceiro, numa "venda" de que minha família é freguesa.

Quase todas elas estavam cheias de artigos e tópicos, tratando das candidaturas presidenciais. Afora o capítulo descomposturas, o mais importante era o de falsidade.

Não se discutia uma questão econômica ou política; mas um título do Código Penal.

Pois é possível que, para a escolha do Chefe de uma Nação, o mais importante objeto de discussão seja esse?

Voltei melancolicamente para almoçar, em casa, pensando, cá com os meus botões, como devia qualificar perfeitamente a República.

Entretanto – eu o sei bem – o 15 de Novembro é uma data gloriosa, nos fastos da nossa história, marcando um grande passo na evolução política do país.

Lima Barreto, "Toda crônica"

Reajuste do Supremo virou um bale de elefantes

A encrenca do reajuste salarial dos ministros do Supremo Tribunal Federal transformou-se num balé de elefantes. A coreografia estava momentaneamente paralisada. Imaginou-se que o próximo passo seria executado por Michel Temer, a quem cabe sancionar ou vetar a proposta que elevou os vencimentos das togas supremas de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil. De repente, o ministro Luiz Fux, vice-presidente do Supremo, atravessou no palco declarações muito parecidas com uma chantagem.


A cúpula do Judiciário farejou na demora de Temer uma insinuação de que o reajuste não será sancionado enquanto o Supremo não extinguir o auxílio-moradia de R$ 4.377 pagos mensalmente a juízes e procuradores. Diante do cheiro de queimado, Luiz Fux cuidou de esclarecer que o julgamento das ações que questionam há cinco anos o pagamento do bolsa-moradia só o ocorrerá depois que o presidente da República liberar o reajuste dos contracheques dos magistrados.

Até a semana passada, tudo parecia simples como o ABC. A, o Supremo reivindicava um reajuste. B, o Tesouro Nacional está quebrado. C, o Senado mantinha o pedido da Suprema Corte no freezer desde 2016. De uma hora para outra, os elefantes de Brasília começaram a dançar à beira do abismo. O Supremo pressionou, os senadores cederam, Temer entrou na dança e Fux converteu uma reivindicação sindical em instrumento de desmoralização do Supremo.

O Supremo alega que não pede aumento, mas reposição da inflação. Justo, muito justo, justíssimo. O problema é que um empregado não pode exigir do empregador o que ele nãio pode pagar. E o Tesouro já está envididado até a raiz dos seus cabelos, caro contribuinte. Os juízes do Supremo, se quiserem, podem trocar a folha do Estado por uma banca privada. Sem essa alternativa, os 12,5 milhões de brasileiros desempregados preferem um Estado equilibrado, que não atrapalhe a recuperação da economia.

Bolsonaro existe? Foi esfaqueado mesmo, ou é tudo 'fake news'?

Talvez a História nunca tenha estado tão insegura entre a verdade e a mentira. Nunca, nem mesmo o presente foi posto tanto em dúvida. Será que descobrimos, de repente, que a verdade no estado puro não existe e que tudo pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo?

Vejamos o Brasil. Tudo parece ser uma coisa e o contrário. Há até quem chegue a perguntar a si mesmo se o capitão Jair Bolsonaro, que conseguiu 57 milhões de votos nas urnas não se sabe como, existe realmente ou é uma miragem. Coloca-se em dúvida até mesmo que tenha sido esfaqueado.

Em um mundo no qual até intelectuais chegam a pôr em dúvida a existência do Holocausto judeu, com um saldo seis milhões de pessoas — homens, mulheres e crianças — exterminadas nos campos de concentração, podemos ter a impressão de que a verdade não existe e não será possível conhecê-la.

Isso é positivo ou negativo? É verdade que dessa forma todos nos sentimos mais vulneráveis e inseguros ao não ser capazes de distinguir entre verdade e mentira. E, ao mesmo tempo, talvez tenhamos de nos acostumar a conviver em uma realidade mais complexa do que pensávamos, que nos obriga a estar mais vigilantes, já que os limites entre realidade e aparência, entre notícia e fake news, estão ficando cada vez mais tornam-se se fazem cada dia mais tênues e indefinidos.

O que sentimos hoje como uma inquietação, talvez porque estivemos séculos sentados tranquilos sobre nossas certezas, pode acabar sendo uma importante purificação. Durante séculos vivemos alimentados pelos dogmas que poder civil ou religioso nos impôs. Tudo era, sem que precisássemos nos preocupar em descobrir, branco ou preto, verdadeiro ou falso, bom ou mau, justo ou injusto. Era assim mesmo, ou será que tínhamos nos acostumado a conviver com a verdade imposta, o que nos dispensava da dúvida? As coisas eram como eram, porque sempre tinham nos ensinado assim. Teria dado muito trabalho colocá-las em discussão.

Sempre acreditamos nos livros de História, como se fossem textos sagrados que não pudessem ser discutidos. E se, na verdade, os livros de História nos quais bebemos durante séculos fossem, em sua maioria, uma grande fake news? Nós nos esquecemos de que, em grande parte, a História foi escrita pelos vencedores, nunca pelos perdedores. Como teriam escrito os mesmos fatos aqueles que perderam as guerras, as vítimas, os analfabetos que não podiam escrevê-la, mas que a sofreram em sua pele?


É melhor não sofrer tanto e aprender a conviver em um mundo que já não é nem será aquele em que nossos pais viveram

Será que estaria a salvo da contaminação das fake news o grande livro da Humanidade, a Bíblia, escrita no espaço de mil anos por autores desconhecidos, que as Igrejas cristãs consideram ter sido inspirada por Deus e, portanto, verdadeira? E se descobríssemos que historicamente a Bíblia não resistiria a uma crítica séria? Ou será que alguém pode acreditar que existiram seus personagens mais famosos, como Abraão, Noé, Matusalém e Moisés?

E analisando apenas os quatro evangelhos canônicos que os católicos consideram inspirados por Deus, quanto neles há de histórico e quanto há de catequese religiosa ou política? Qual é a versão verdadeira sobre o julgamento e condenação à morte do profeta Jesus se entre as versões dos quatro evangelistas há inúmeras diferenças bem visíveis? Qual é a figura real de Jesus, a que é apresentada aos judeus da época, cuja morte é totalmente atribuída aos romanos, ou aquela narrada aos gentios e pagãos, em que se carrega nas tintas contra os judeus e fariseus?

Talvez a inquietude que todos sentimos hoje, na nova era em que a Humanidade entrou ao não saber se estamos lidando com notícias verdadeiras ou falsas nem o quanto isso pode condicionar a convivência política e social, se deva, no fim das contas, a algo positivo, embora seja preciso se recompor e recuperar a serenidade para entender que vivemos em um mar agitado, no qual é difícil distinguir um peixe vivo de um pedaço de plástico.

Essa positividade que alguns pensadores começam a farejar na situação angustiante que vivemos, na qual verdade e mentira convivem abraçadas, talvez nasça de algo novo e ao mesmo tempo positivo que não existia no passado. Hoje, pela primeira vez, a crônica cotidiana, a história que estamos vivendo, não é narrada exclusivamente pelo poder, como no passado. Não é narrada pelos que se consideravam donos da verdade e a impunham com a espada na mão, se fosse necessário. Todos os poderes, civis e religiosos, fizeram isso. Hoje, a crônica começa a ser escrita e filtrada também pelos de baixo, pela periferia, por aqueles que não têm mais poder do que o oferecido pelas redes sociais.

Isso sem dúvida levará, como já está ocorrendo, a crises de identidade e à quebra de velhos paradigmas de segurança, como o que os dogmas e as verdades oficiais ofereciam antes. Era tudo mais cômodo e causava menos angústia. Mas não éramos também mais escravos do pensamento único do poder? O fato de não termos de nos preocupar em saber se o que nos ofereciam como história era verdade ou não, ou se era só a verdade de uma parte e não da outra, dava-nos tranquilidade. Hoje, estamos no meio de um ciclone que parece arrastar tudo e não é estranho que nos sintamos inseguros, irritados e até com medo.

Tão inseguros que ainda há quem não saiba realmente quem é Bolsonaro ou se ele é uma invenção, ou se os médicos de dois hospitais de prestígio inventaram a história da facada. E Lula? E Moro? Como se escreverá amanhã a história atual do Brasil? Será que os historiadores de hoje conseguirão nos contar no futuro a verdade ou a fake news sobre o que está vivendo uma sociedade que se sente presa entre a verdade e o boato, entre o que ela gostaria que fosse e o que efetivamente é a realidade — que, afinal, tem possivelmente tem tantas caras e nuances quanto as cores do arco-íris.

É melhor não sofrer tanto e aprender a conviver em um mundo que já não é nem será aquele em que nossos pais viveram. E essa sim é uma verdade. Se opressora ou libertadora, só poderemos saber quando baixar a poeira dessa agitação em torno de verdade e falsidade ou de meias verdades e meias mentiras. O famoso filósofo espanhol Fernando Savater me lembrava de que “se o mundo parasse de mentir, acabaria despedaçado em poucos dias”. Às vezes, uma meia verdade pode salvar o mundo de uma catástrofe. Até a Igreja católica, com seus séculos de experiência em conduzir o poder, cunhou as famosas “mentiras piedosas”.

Para terminar, é verdade que Bolsonaro existe, com mais sombras do que luzes e mais incógnitas do que realidades. E também existe Lula, com toda sua história e todas suas contradições. O que não sabemos é como a História nos contará um dia este momento, que em outras colunas em já chamei de dor de parto, mais do que de funeral e morte. E em todo parto existe, ao mesmo tempo, dor e felicidade, ansiedade e esperança.

E, acima de tudo, a certeza de que a vida, com todas suas amarguras e crueldades, verdades e mentiras, é o único e o melhor que temos. Que no Brasil predomine, apesar de tudo, a cultura da vida e não a da morte. Essa é a grande aposta e a grande resistência. Para isso, todos deveríamos andar de mãos dadas.