terça-feira, 30 de agosto de 2022

Apoio policial à democracia enterra risco de golpe de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro tem cada vez menos espaço para tentar permanecer na Presidência a despeito do resultado das urnas eletrônicas. A viabilidade de uma aventura golpista começou a esvanescer em 2020, quando a demissão de Sérgio Moro retirou do presidente a bandeira da moralização da política. Afinal, o ex-juiz deixara o cargo em razão da interferência política na Polícia Federal, que, então, investigava o senador Flávio Bolsonaro, o filho do presidente que comprara uma mansão por R$ 6 milhões em Brasília.

Bolsonaro viu, desde então, minguar o apoio que recebia na caserna. O que restou virou expressão da defesa de salários milionários pagos a generais do governo, do reajuste muito acima do recebido pelo funcionalismo e do pagamento de auxílios revigorados. O bolsonarismo militar tem uma origem ideológica, uma visão de mundo comum, que liga parte da caserna ao presidente, mas até seus críticos nos quartéis lembram que sua manutenção é auxiliada pelas sinecuras distribuídas a oficiais e a seus parentes e amigos, fazendo da participação verde-oliva no governo uma espécie de projeto pessoal de parte dessa burocracia.


Em Os Donos do Poder, Raymundo Faoro já notara que a participação castrense no estamento condutor do País era parte indissociável da história do patrimonialismo. Ele ajudou a construir, nas palavras do jurista e cientista político, “essa civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra âmbula entre as sombras”.

A dificuldade de Bolsonaro de unir atrás de si as Forças Armadas pode ser medida pela decisão de substituir os comandantes militares em 2021; queria pessoas opacas, de luzes coadas por um vidro fosco, no lugar dos três que nomeara no começo do governo. Para a Força Aérea, nomeou o bolsonarista Carlos de Almeida Baptista Junior, brigadeiro tratado entusiasticamente já em 2019 pelos assessores do presidente. A Marinha foi entregue ao almirante Almir Garnier Santos, que achou normal fazer desfilar tanques pela Esplanada no dia em que o Congresso rejeitou a emenda do voto impresso.

Se o desfile era mera coincidência, porque, neste ano, durante o exercício em Formosa (GO), ele não se repetiu? Nem o presidente Bolsonaro foi assistir às manobras... Por que não se tentou, desta vez, fazer demonstrações na Praça dos Três Poderes? Movimentos políticos costumam prestar muita atenção ao que Émile Durkheim chamou de “dimensão simbólica que penetra a vida social”. Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, ele afirmou que, “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”.

Bolsonaro e os que o seguem precisam da reprodução constante desses símbolos e aproximá-los da forma como são vividos nas religiões. Em 2019, o desafio do presidente era fazer seu movimento político não ser percebido como mera captura do Palácio por antigos atores que sempre viveram em torno do Estado. Sabe-se, desde a Florença renascentista, que este tem o seu fundamento nas boas armas e nas boas leis produzidas por meio do consenso. Na ausência do último, apela-se à corrupção ou à força. Da queda de Moro ao 7 de Setembro de 2021, Bolsonaro pareceu manter a aposta naquela última.

Ao perceber que a maioria dos oficiais generais não o acompanharia em uma aventura e que a sociedade civil se organizava em defesa da democracia, sobrou ao presidente atrair o Centrão para o governo e, por meio do orçamento secreto, conseguir o que não obteve por meio de ameaças de ruptura institucional. Bolsonaro manteve, entretanto, o discurso de contestação do resultado das urnas. Quis condicionar sua decisão à aceitação de sugestões do Ministério da Defesa à Justiça Eleitoral, estratégia que parece fazer água.

Pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que até mesmo onde mais se temia a influência do bolsonarismo – as forças policiais – a adesão à ideia democrática é grande (84% de apoio) e o mais importante de tudo: 81% dos policiais entrevistados em todo o País querem que o candidato declarado vencedor pela Justiça Eleitoral suba a rampa do Planalto. É verdade que esse índice é maior entre os policiais federais (89,1%) e menor entre os militares (76,5%), mas ainda assim o alto porcentual afasta definitivamente o caminho do golpe para quem deseja contestar as eleições.

Sobraria ao bolsonarismo a mobilização de um turba, uma ralé armada que seria contida pelas forças de segurança com as mesmas consequências vistas nos Estados Unidos, após a derrota de Donald Trump: condenações e prisões dos envolvidos, ameaçando abrir as portas do cárcere ao ex-presidente. Assim, resta a seu candidato lutar para vencer nas urnas. Só isso pode lhe garantir mais quatro anos no poder. E é por isso também que ele decidiu comparecer no domingo ao debate entre os candidatos à Presidência.

Vedado o caminho golpista, resta a Bolsonaro a submissão às regras do jogo e à disputa pelo voto dos brasileiros nas urnas eletrônicas. Uma disputa que as pesquisas indicam envolver o presidente e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. No primeiro debate dessa campanha, a Defesa Nacional, suas Forças Armadas e os militares estiveram ausentes. Nenhum dos candidatos os citou. Nem as ameaças ao pleito. As pesquisas mostram que ameaçar a democracia contraria a maioria dos eleitores. Daí porque Bolsonaro tentou ligar Lula à Venezuela e o petista o chamou de mentiroso.

Mas o Brasil de 2022 não é o de 2018. Em 2018, o general Eduardo Villas Bôas tuitava para manter Lula na cadeia. Agora, manifesta-se na rede para defender a honra do Exército, tentando ligá-la à da Nação, como faziam os tribunos do século 19. Esqueceu o general que, aos olhos do marechal Deodoro da Fonseca, o soldado cidadão que proclamou a República se transformou em pouco tempo no “patriota de rua”, comprometendo a disciplina.

O novo tuíte de Villas Bôas trouxe ainda uma na ferradura. Ao se manifestar sobre a ordem do dia do general Freire Gomes, lida diante de Bolsonaro, no Dia do Soldado, ele escreveu: “Aos que nos atribuem possíveis intenções de agir fora do princípio da legalidade, legitimidade e estabilidade, nosso comandante disponibilizou uma didática fonte àqueles que, com boas intenções, desejam conhecer a alma do Exército.”

Assim, tenta-se fazer o Brasil chegar a mais uma eleição diante de seu passado. Buscou-se primeiro reviver as crises militares da República, em meio ao aparelhamento do Estado, típica sobrevivência do patrimonialismo descrito por Faoro. Procura-se agora o despertar de paisagens idílicas que nunca existiram e, dessa maneira, colocam-se outras armadilhas diante de nossa civilização, cobrindo-a, como escreveu o jurista e pensador, com uma “túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante”.

Celeiro Brasil

 


Coração de Pedro solitário narrador

Nestes 200 anos de independência do Brasil, a grande ideia do governo foi trazer o coração de Dom Pedro I para uma exposição no país.

Não sei bem o que isso revela sobre nós. Poderia ser o cérebro, as amígdalas, o pomo de adão, não importa, certamente um debate mais amplo cumpriria melhor o papel de entender o que se passou por aqui e em Portugal no momento da independência.

Um coração transportado numa urna de mogno, madeira que, por sinal, foi quase extinta pela civilização luso-brasileira, dificilmente aumentará a compreensão dos brasileiros sobre sua história.

Na semana passada foi lançado um livro, “Adeus, Senhor Portugal” (
Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira), em que os autores defendem a tese de que a conjuntura econômica teve um grande papel no surgimento do Brasil como país soberano. Eles não negam a importância das ideias iluministas que foram o pano de fundo da crise do absolutismo. Mas, ainda assim, afirmam nas primeiras linhas: “O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação”.


É delicado discutir o nascimento do Brasil sob esse prisma, pois corremos o risco de concluir que não aprendemos nada em dois séculos. A inflação continua sendo um problema sério, e o rombo no Orçamento cada vez maior, sobretudo com a proximidade das eleições.

O mais interessante nessa história é que tanto a revolta do Porto em 1820 como a rebelião no ano seguinte no Brasil tinham em seu ideário algum controle social do Orçamento, enfeixado nas mãos do governo joanino.

Duzentos anos depois, avançamos pouco nesse quesito. O que os rebeldes queriam, a fiscalização parlamentar do Orçamento, acabou se tornando um pesadelo aqui deste lado do Atlântico. Estamos às voltas com uma luta contra o orçamento secreto, produto do casamento entre Bolsonaro e o Centrão.

É um tema que o país ainda não considerou adequadamente, porque os escândalos começam a pipocar em estados distantes: Alagoas, Maranhão. Quando o Brasil se der conta de que quase R$ 20 bilhões escoam pelo ralo, talvez nos reunamos de novo na Praça Tiradentes, como em fevereiro de 1821.

Há um dado adicional: Bolsonaro não revela seus gastos pessoais pagos pelo Tesouro. Alega questões de segurança.

Muita coisa mudou na forma. O desespero inflacionário atingia na época o consumo de farinha de mandioca e carne-seca. Hoje, carne e leite estão se tornando proibitivos.

A propensão para gastar acima das possibilidades continua sendo uma caraterística insuperável. No tempo de Dom João VI, ainda se podia propor a venda das joias da coroa; hoje, essa proposta se estende às grandes empresas estatais. Mas o que adianta vender, se a propensão a gastar muito nunca é saciada?

Na crise do absolutismo, havia um fator inexistente hoje: os soldados se rebelavam também por falta de pagamento de seus soldos. Os militares de hoje ganham melhor e recebem em dia. Alguns mais de R$ 100 mil por mês, e um grupo seleto de generais alcançou a cifra de R$ 1 milhão mensal, o equivalente ao que ganham craques de futebol, pagos pela iniciativa privada.

Nada disso se expressa num coração guardado numa urna de mogno. E tantas outras histórias mereciam ser contadas nestes 200 anos. O que diria José Bonifácio, considerado o Patriarca da Independência, da política de destruição da Amazônia levada a cabo por Bolsonaro e apoiada numa superada visão de defesa nacional formulada pelo general Golbery? Em José Bonifácio aliavam-se a preocupação com o meio ambiente e o combate ao despotismo. Duzentos anos depois, talvez fosse um deslocado no seu país, triturado por gabinetes do ódio nas redes sociais.

Creio que Ruy Guerra e Chico Buarque talvez descrevam em seu “Fado tropical” a saga desse coração ambulante: “Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em/torturar, esganar, trucidar/Meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora”.

A política do demônio

Chegasse um marciano ao Brasil, ficaria certamente confuso, se não espantado, com narrativas político-religiosas do casal presidencial, dirigidas ao casal opositor mais forte e por ele contestadas. Primeiro, ficaria surpreso pelo uso indiscriminado da palavra demônio, como se estivéssemos tratando de pessoas reais, numa espécie de cruzada religiosa. Seria a luta dos bons contra os maus, de anjos contra demônios, uns representando a verdadeira religião, os outros, a falsa. Estranharia, segundo, que pouco se fala de soluções, ideias e propostas para o País, como a fome, a alta inflação dos alimentos, a irresponsabilidade fiscal do atual governo, que só procura dar benesses a seus apaniguados, frequentemente sob a forma das mais diferentes emendas parlamentares. Falta dinheiro de um lado, sobra de outro.

Provavelmente, seria ele tentado a dizer que se trata de um país de malucos, o que talvez fosse um juízo sensato diante deste manicômio em que se tornou a política brasileira. Se se tratasse de uma encenação de bruxos e demônios, certamente acharia mais interessante um filme de Harry Potter, com bons atores e boas atuações, algo muito diferente do que ocorre aqui, com atores deploráveis. Acharia que o mundo da ficção seria mais estimulante que a política ficcional atual, com a diferença de que essa é bem real. Nem conseguem fingir direito atos de compunção, que parecem francamente grotescos. É como se a cena brasileira tivesse se tornado uma história do capeta. Contudo, até essa comparação seria inapropriada, pois o capeta é muito mais esperto.


O pano de fundo de tal encenação político-demoníaca consiste na captura do voto evangélico, em detrimento manifesto, por exemplo, de religiões e cultos de origem africana, tratados com o maior desprezo. Na era da tolerância e de regimes políticos laicos, que fizeram a separação entre Igreja e Estado, volta-se a uma mistura extremamente perniciosa, que pode ter consequências graves do ponto das liberdades e da organização mesma do Estado. Note-se que a preocupação com o eleitorado evangélico é essencialmente político-eleitoral, visto que os seus fiéis tendem a seguir as orientações dos seus pastores, algo que não ocorre, por exemplo, com os adeptos das religiões católica e protestante.

Entretanto, isso não significa que os fiéis sigam os seus pastores como pessoas sem rumo próprio. Se o fazem, é porque defendem valores determinados como a luta contra o aborto, a ideologia de gênero, sobretudo nas escolas, a união civil de pessoas do mesmo sexo, em defesa da ideia tradicional de família. Se um pastor se desviar desses valores, seus fiéis dele também se distanciarão. Eis, aliás, a imensa dificuldade do ex-presidente Lula em ingressar neste segmento, pois a sua política e a do seu partido não somente discordam desses valores, como sempre buscaram colocar seus próprios princípios de uma maneira impositiva. É como se uma maioria devesse simplesmente seguir uma minoria por ser esta politicamente correta. Produziram, com isso, a adesão maciça dos evangélicos a Bolsonaro.

Sobra ao candidato petista aquele setor evangélico mais desfavorecido socialmente, o que tem dificuldades com emprego, com o preço dos alimentos nos supermercados, com educação pública ruim e precárias condições de saúde. Aqui, são outros valores – os da sobrevivência – que terminam por ganhar proeminência. Inteligentemente, o atual presidente procura desviar a atenção destes desfavorecidos, dando-lhes um auxílio socioeleitoral e procurando atraí-los para uma encenação canhestra, a de que o demônio estaria à espreita.

À espreita de quê? Comer a alma de alguém? Lançar os desavisados numa sucessão intermitente de pecados, como se a danação estivesse a todos ameaçando? Onde fica o País neste cenário tumultuado de crise social, política e econômica? Sairá à caça de exorcistas?

Ocorre que nossos exorcistas contemporâneos ganham uma roupagem política, atribuindo a si mesmos uma missão. É como se Bolsonaro fosse não Jair, mas um Messias autóctone, tendo como destino a salvação do País. Os demônios não são, nessa perspectiva, alguns credos assim representados, mas o comunismo, o ateísmo e os petistas e grupos esquerdizantes em suas várias correntes. Tudo entra e se configura num quadro político religioso, em que o “mito” de 2018 se apresenta como o Messias de 2022.

Naquele então, poder-se-ia dizer que se tratava de um abuso de linguagem, uma piada de mau gosto, mas uma piada. Todavia, nestes quatro anos, embora de uma forma tosca e teologicamente não elaborada, o discurso do demônio tende a adquirir uma significação real. Não estaríamos diante de um processo eleitoral normal, próprio da democracia e do rodízio dos que ocupam o poder, sempre de uma forma temporária, mas de uma cruzada religiosa, uma encruzilhada que a todos deveria aterrorizar. O marciano, apavorado, resolveu voltar ao seu planeta. Não entendeu nada!

Repetindo os mesmos erros

Mesmo um exame superficial da história revela que nós, seres humanos, temos uma triste tendência para cometer os mesmos erros repetidas vezes. Temos medo dos desconhecidos ou de qualquer pessoa que seja um pouco diferente de nós. Quando ficamos assustados, começamos a ser agressivos para as pessoas que nos rodeiam. Temos botões de fácil acesso que, quando carregamos neles, libertam emoções poderosas. Podemos ser manipulados até extremos de insensatez por políticos espertos. Deem-nos o tipo de chefe certo e, tal como o mais sugestionável paciente do terapeuta pela hipnose, faremos de bom grado quase tudo o que ele quer – mesmo coisas que sabemos serem erradas
Carl Sagan, "O mundo infestado de demônios"

Mudar é preciso, mas para onde?

Sente-se no ar um desejo de mudança. Tão forte que é como se pudéssemos apalpá-lo. Como está não pode ficar, ouve-se por toda parte. A democracia precisa ser defendida contra os arreganhos autoritários. A inflação come os bolsos da população, afeta os mais pobres de maneira vil. Os sintomas de uma crise aguda, múltipla, latejam sem cessar.

Os democratas se mobilizam, lançam cartas e manifestos que vocalizam a insatisfação e a disposição de luta. Atores posicionados em campos distintos se reúnem para defender a Constituição, as regras eleitorais, as urnas eletrônicas. Alerta-se para o risco que correremos se a mudança tardar, se o mau governo atual prolongar sua existência, com tudo o que exibiu nos últimos quatro anos: o desprezo pela política democrática, a falta de empatia, o descalabro administrativo, a grosseria, a ausência de compostura e de respeito presidencial ao cargo.

O desejo de mudança impregna o ar, mas não necessariamente irá vencer nas eleições de outubro próximo.

Antes de tudo, porque mudar é sempre difícil. Exige que personagens reconheçam erros e incompetências. Passa por deslocamentos (de pessoas, de ideias, de hábitos) que custam a se completar. Não é só uma troca de roupas, ou de governantes.


Mesmo que vençam os candidatos mais democráticos, não há consensos fortes sobre para onde o Brasil deve caminhar. Ninguém explica que país é este e como fazê-lo mudar de rota. Sabe-se que é preciso acabar com a fome, a miséria, as desigualdades, recuperar a economia, melhorar a educação e a segurança pública, reformar o sistema político para que produza mais governança. Mas tudo isso depende de uma logística política que não foi, até agora, explicitada. O pouco que temos tido de oferta programática (Ciro Gomes, por exemplo) não é acompanhado de uma ideia de “bloco histórico”, ou seja, de uma composição de forças com coragem e disposição para mudar a face da sociedade. Fica-se mais na periferia da agenda reformista do que em seu centro vital.

O desejo de mudança é diversificado e plural. Tem razões distintas e não se encarna em um único ponto do espectro político. Há muitos trânsfugas nos pontos mais fortes, Lula e Bolsonaro. Ambos parecem garantidos no segundo turno, mas ainda batalham para reter seus simpatizantes. Há um miolo que gostaria de achar uma saída para que se rompa essa polarização. Tampouco esse miolo está unido em torno de um só nome. Além da concorrência e da falta de entendimentos internos, a “terceira via” – o centro democrático – precisa enfrentar os apelos para que se resolva a eleição no primeiro turno, ou seja, para que os votos sejam depositados desde logo no candidato com melhores condições de derrotar o autoritarismo.

Esses apelos têm algum sentido, mas não consideram o quadro todo. E se o centro democrático puder sobrepujar o extremismo e chegar ao segundo turno? Seus candidatos não poderão contribuir para desgastar as posições autoritárias? O petismo mais encarniçado não se põe nenhuma dessas perguntas, preferindo estigmatizar a “terceira via”. O bolsonarismo treme só de pensar nelas.

Eleições em dois turnos são um artifício para contornar escolhas plebiscitárias. Para dar aos eleitores um leque de opções que reflita a diversidade de pontos de vista que há na sociedade. A dinâmica é conhecida: você vota com o coração no primeiro turno e com a razão no segundo. No primeiro turno, os candidatos trabalham para se autofortalecer. No segundo, negociam para fortalecer a melhor saída para o País. É um sistema inteligente, pensado para expressar a heterogeneidade social, reforçar a representatividade do eleito e aumentar suas chances de fazer um bom governo.

Com uma polarização em plena velocidade, a lógica dos dois turnos tem dificuldades para prevalecer. Não é o eleitorado todo que a compreende. Alguns não gostam dela. E há os afoitos, que preferem que tudo se resolva no primeiro turno, de um jeito ou de outro. Desejo de mudança, medo, ansiedade, insegurança e incerteza se acomodam no eleitorado, deixando-o indeciso.

Há uma cláusula aceita pelos analistas políticos que acompanham processos eleitorais mais recentes, no mundo todo: muitos eleitores fazem suas escolhas nos últimos dias das campanhas. Trancam seu voto numa caixinha de segredos, de modo a entender melhor o quadro eleitoral, ouvir vizinhos, amigos e familiares, ponderar com calma, mastigar suas dúvidas e indefinições, confiando em que da mastigação sairá a solução.

Não há bandeiras ideológicas desfraldadas nem utopias iluminando o futuro. Os polos muitas vezes são mais semelhantes entre si do que diferentes e não apresentam programas com intenções pedagógicas – que expliquem o que se pretende fazer. É razoável que o eleitor se sinta indeciso. Ele olha para seus interesses e suas expectativas, e percebe que está vazio de convicções. Não é culpa dele. Com a oferta política que tem à disposição, suas escolhas se tornam inevitavelmente dilemas.