domingo, 14 de fevereiro de 2021

Pensamento do Dia

 


Três generais e uma desonra

A ida do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde sempre incomodou o Exército. O sentimento foi explicado por um oficial numa frase: “Qualquer que fosse o desempenho dele iria morrer gente e essas mortes poderiam cair sobre as Forças”. O general tem tido o pior desempenho possível, está sendo investigado e pode ter que responder a uma CPI. O general Eduardo Villas Bôas entregou ao pesquisador Celso de Castro da FGV uma informação explosiva: em 2018 ele não estava sozinho quando ameaçou o Supremo. Tudo foi feito junto com o Alto Comando do Exército. Ao aderirem à campanha e depois ao governo Bolsonaro, as Forças Armadas entraram num labirinto. Ainda não sabem a saída.

Villas Bôas revelou que o texto, no qual tentou intimidar o STF, foi escrito junto com o Estado Maior do Exército e depois enviado “para os comandantes de áreas”. Não foi um improviso inconveniente. Foi uma conspiração. Ninguém mostrou ao ministro da Defesa da época Raul Jungmann. O episódio ilustra que o poder civil, quando dirigiu o Ministério da Defesa, jamais se impôs.

Os fatos se passaram na terça-feira, 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército postou dois tuítes. Era véspera do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula. Não creio que o STF tenha decidido por causa desse pronunciamento, mas o relevante é que o objetivo do Exército foi mesmo ameaçar o Supremo. O general disse, na rede social, que restava perguntar às instituições “quem estava pensando no bem do país” e quem “estava preocupado com os interesses pessoais”. Era um ato de apoio à candidatura de Bolsonaro. Um segundo tuíte dizia que o Exército compartilhava o anseio dos cidadãos de bem “de repúdio à impunidade, de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia” e terminava alertando que estavam atentos às suas missões institucionais. Soou como uma ameaça. Era. Villas Bôas luta contra terrível doença terminal e se afastou de tudo. Preserva, contudo, extremo prestígio dentro das Forças Armadas. Seus atos e palavras sempre ecoaram.


O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, disse em entrevista ao “Estado de S. Paulo” que não se envergonha do que fez. Deveria. Ele estabeleceu um balcão de negócios no seu gabinete para comprar votos em favor dos candidatos governistas no Congresso. Ele foi para o governo ainda na ativa. Depois de algum tempo foi para a reserva, mas acha até hoje que se sacrificou por ter passado para a reserva antes da hora.

O governo, defendido pelos generais, protegeu os interesses familiares do presidente, estimulou o conflito social, feriu a Constituição, ampliou a impunidade dos investigados por corrupção. Fez o avesso dos valores defendidos na postagem de Villas Bôas. Mas isso o general não define como “facada nas costas”. A expressão ele guarda para falar da Comissão da Verdade. A comissão não puniu um único militar, apenas recolheu as lembranças das vítimas do regime violento. Como disse a ministra Cármen Lúcia em memorável voto, dias atrás, contra o suposto direito ao esquecimento, “minha geração lutou pelo direito de lembrar”.

O terceiro Eduardo dessa trinca, o ministro Pazuello está sendo investigado pela lista enorme de irregularidades e atos de má gestão no comando da Saúde. As mortes no Brasil foram em número muito maior do que seriam se houvesse uma gestão responsável. Basta lembrar Manaus, cidade onde ele estava na escalada da crise. A cidade sufocava e o ministro prescrevia cloroquina.

As Forças Armadas continuam vivendo uma dualidade. Há os militares profissionais que não gostam da mistura com o governo e acham que o presidente é que faz questão de usar as Forças como se fossem instituições que o apoiam politicamente. E há os que foram para o governo ocupar cargos e para “ter protagonismo”, como me disse um deles.

Por coincidência, os três militares citados aqui se chamam “Eduardo”, os três chegaram ao generalato, e um deles permanece na ativa. Ajudaram, com vários outros, a construir uma desonra para a instituição, apoiam o governo que tira dos militares a exclusividade em armas pesadas, que podem estar sendo usadas na formação de milícias de extrema-direita como as dos Estados Unidos. Mostraram ao país que topam tudo pelo poder.

Com prova em contrário, todos inocentes


É por isso que me ufano do meu país! Nós somos a sociedade mais moderna da Terra! Os avanços brasileiros, principalmente das verbas públicas, nos colocam na vanguarda das civilizações.
Não existe mais crime no Brasil! Conseguimos alcançar essa forma suprema de convivência humana, motivo de inveja das grandes potências, de uma forma muito simples: abolimos qualquer transgressão, perdoamos qualquer ilegalidade, não tem mais bandido, todo mundo é inocente mesmo com prova em contrário

Bolsonaro age como comentarista de problemas do próprio governo

Outro dia, um sujeito parou na portaria do Palácio da Alvorada e reclamou do preço dos combustíveis. Disse que os impostos eram muito altos e que a margem de lucro das distribuidoras era grande demais. “Está todo mundo errado, no meu entendimento. Pode ser que eu esteja equivocado”, ponderou.

A queixa poderia ter sido feita por qualquer um dos apoiadores que passam por ali todos os dias, mas o autor daquele lamento foi o presidente da República.

Como se não tivesse poder nas mãos ou obrigações no cargo que ocupa, Jair Bolsonaro prefere agir como comentarista de assuntos espinhosos que cercam seu próprio governo.



O presidente fala dos problemas do país como se tivesse perdido a eleição de 2018 e voltado para a Barra da Tijuca. Na segunda-feira, ele citou o aumento de preços da cesta básica, mas não apresentou uma ideia razoável para amortecer os impactos dessa alta.

“O povo está empobrecendo”, refletiu. “Devemos buscar uma solução, e não passa apenas pelo presidente da República.”

Não é raro ver Bolsonaro como um palpiteiro instalado no Palácio do Planalto por acidente. No mesmo dia em que examinou a inflação dos alimentos, ele também citou a possibilidade de extensão do auxílio emergencial como algo que só tinha ouvido por aí. “Já se fala em novas parcelas”, afirmou. “Eu acho que vai ter, vai ter uma prorrogação.”

No caso da vacina contra o coronavírus, Bolsonaro foi mais eficiente em sua sabotagem às ações oficiais do que agora, depois que resolveu mudar de direção para evitar prejuízos políticos.

O presidente assumiu o papel de testemunha ao falar sobre o atraso na chegada de insumos: “Tudo é difícil no mundo”.

Na função de espectador, Bolsonaro persegue dois objetivos. Primeiro, busca demonstrar camaradagem com apoiadores que criticam o governo pelo diesel caro ou pela falta do auxílio emergencial. De quebra, ele tenta abrir mão de suas responsabilidades como governante –uma especialidade presidencial.

A confissão do general

Aliás, não existe caso mais exemplar do fracasso desta crença na superioridade do juízo militar do que passou com o próprio ex-Comandante em Chefe do Exército que autoconvencido de sua “genialidade estratégica” e de sua grande “sabedoria moral”, decidiu avalizar em nome das FFAA, e tutelar pessoalmente a operação que levou à presidência do país um psicopata agressivo….
J.L.Fiori, “Sob os escombros, as digitais de um responsável”, Jornal do Brasil, 1 de janeiro de 2021

Com a confissão pública de uma das partes, dispensam-se novas provas e argumentos, e só pessoas menos informadas podem seguir negando o envolvimento direto dos militares brasileiros na operação jurídica e midiática, nacional e internacional, que bloqueou a candidatura e prendeu o ex-presidente Luiz Inácio da Silva em 2018, instalando em seguida, na Presidência da República, um indivíduo que faz que governa o país há dois anos, em meio aos escombros de uma administração calamitosa.

Essa conspiração foi ficando cada vez mais transparente com a divulgação das conversas gravadas – verdadeiramente “obscenas” – entre os juízes e procuradores de Curitiba, apesar de que isto não fosse uma surpresa para os analistas mais atentos que já haviam diagnosticado há muito tempo o verdadeiro papel dos “curitibanos”. Mas agora as coisas mudaram de patamar, com a divulgação da entrevista do Gal Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército ao tempo da “operação Bolsonaro”, que foi concedida ao diretor do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, e que agora foi publicada no livro General Villas Boas: conversa com o comandante, editado por Celso Castro.

Na entrevista, o general explica com suas próprias palavras seu papel e o de seus oficiais do Alto Comando do Exército, na redação e divulgação da sua famosa postagem nas redes sociais, do dia 3 de abril de 2018, em que ele pressiona explicitamente o Supremo Tribunal Federal a não aceitar o habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula. Diz ele, textualmente, que “recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20 horas”. Deixa claro e explícito que atuou como Comandante em Chefe de uma instituição do Estado, com apoio de sua alta oficialidade, ao fazer uma intervenção anticonstitucional em uma decisão exclusiva do Poder Judiciário. E consta que também fez saber ao amedrontado presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, que dispunha de 300 mil soldados para fazer valer a sua opinião. E não há dúvida de que a divulgação, neste momento, dessa entrevista também tem a função política de advertir os atuais comandantes das FFAA, de que não tentem lavar as mãos e se afastar do governo porque todos estão comprometidos com o que passou, e com o que poderá passar daqui para a frente.

 

A “culpa” é um fenômeno psicológico e jurídico de natureza eminentemente individual, e é muito difícil ou mesmo incorreto atribuir culpa ou punir povos, nações, classes sociais ou instituições. Por isso também me parece incorreto falar da culpa das FFAA brasileiras – como uma instituição – pela “operação Bolsonaro”. Hoje, o foco do debate é outro, inteiramente diferente, e o problema central é o despreparo ou incompetência dos militares para o exercício de funções políticas e técnicas de governo, para as quais não foram preparados nem treinados em suas escolas de guerra. Porque a cada dia que passa aumenta, ainda mais, a distância entre as expectativas depositadas por certos setores da população brasileira no “mito salvacionista” das FFAA e o desempenho concreto, real e frustrante da maioria dos 6.200 oficiais da ativa e da reserva que ocupam postos-chave em vários níveis do governo Bolsonaro. Fica cada vez mais claro que, por mais bem-intencionados que sejam alguns desses senhores, a grande maioria deles não foi preparada nem capacitada para exercer funções e administrar políticas públicas que não aparecem em seus manuais.

A começar pelo caso patético do próprio presidente, que é capitão da reserva, e que fez sua formação intelectual na escola militar, assim como seu ministro da Saúde, que ainda é general da ativa. O presidente não consegue formular uma ideia que tenha início, meio e fim, e parece que tampouco consegue dizer uma frase que não tenha inúmeros “palavrões” e obscenidades e seu ministro da Saúde não sabe onde fica o Hemisfério Norte, não conhecia o SUS, e ainda não conseguiu entender o que seja uma pandemia, ou ter alguma ideia de como planejar uma campanha nacional de vacinação. Estes dois exemplos ultrapassam qualquer limite e já foram muito comentados pela imprensa nacional e internacional. E o que dizer do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, sempre tão agressivo e mal-humorado, que não conseguiu identificar um pacote de 39 quilos de cocaína dentro do avião do presidente da República que lhe toca proteger; ou do “ministro astronauta”, da Ciência e Tecnologia, que está simplesmente acabando com a pesquisa científica no Brasil; ou ainda do ministro de Minas e Energia, que não conseguiu prever nem sanar o problema do apagão energético em Amapá e Roraima, nem tampouco impedir o aumento do preço da energia, que está onerando pesadamente o orçamento doméstico dos brasileiros, e assim por diante, com uma lista interminável de militares da ativa e da reserva que foram alçados a suas posições governamentais graças – em última instância – à ingenuidade do homem comum desesperado e desamparado que acabou depositando suas esperanças na superioridade técnica e moral desses senhores de farda ou de pijama. Pessoas que até podem ser homens de boa vontade e boas intenções, mas que foram treinados para tratar de canhões, navios, cavalos, ou aviões de guerra, muito mais do que de ciência, educação, saúde, arte, infraestrutura, ou mesmo de tecnologias de ponta, para não falar do seu mais absoluto despreparo com relação à vida política dos partidos e dos demais poderes da República, com seus respectivos deveres e obrigações..

Assim mesmo, deve-se reconhecer que a maior derrota do governo atual, no tempo recente, não foi obra direta de nenhum desses militares e veio do campo da política internacional, sob responsabilidade de um homem do Itamaraty. Hoje todos já sabem que o atual chanceler vê o mundo contemporâneo como uma grande batalha final e apocalítica entre a civilização judaico-cristã e as demais “forças do mal” ao redor do mundo, tendo os chineses à frente de todos. E ele sempre se considerou um soldado a mais das “tropas do bem”, comandadas por Donald Trump, na guerra global em defesa da fé cristã e dos valores e arquétipos da civilização ocidental. Por isso mesmo, e pelo tamanho do despropósito, os chineses parecem nunca lhe terem dedicado maior atenção, e como são pragmáticos, apenas esperam que o tempo o devolva ao seu merecido anonimato anterior à sua surpreendente nomeação como ministro. Os europeus, pelo seu lado, também já colocaram o Brasil e seu ministro de Relações Exteriores em stand by, ao excluírem o Brasil de todas as iniciativas e reuniões sobre a questão climática e sanitária, e suspenderem seus acordos comerciais com o Mercosul até que Brasil mude sua política ambiental. São todos “gatos escaldados” e estão apenas esperando que esse senhor saia da chancelaria.

O problema mais grave e uma das mais recentes derrotas do Brasil, além da saúde e da economia, veio do campo da política externa, e da própria América do Sul. Tudo começou há mais tempo, dois anos atrás, e mais precisamente, dois dias depois da posse do novo ministro das Relações Exteriores do Brasil, quando o ministro compareceu à reunião do Grupo de Lima, em 4 de janeiro de 2019, ocasião em que foi “portador” da nova estratégia americana desenhada por Mike Pompeo com vistas ao cerco e à derrubada do governo venezuelano de Nicolás Maduro, que havia sido reeleito no ano anterior com o apoio de 67,8% dos votos, e que tomaria posse para seu novo mandato no dia 10 de janeiro. Logo antes de viajar, o chanceler brasileiro reuniu-se em Brasília com Mike Pompeo, chefe do Departamento de Estado norte-americano, que havia estado com o presidente da Colômbia a caminho de Brasília, e que também se reunira com o ministro das Relações Exteriores do Peru na capital brasileira antes de participar, por teleconferência, da reunião do Grupo de Lima, do qual os EUA não participam oficialmente.

A nova estratégia era clara e agressiva e visava à derrubada imediata do governo de Nicolás Maduro, envolvendo inclusive a possibilidade de uma invasão militar do território venezuelano. O novo chanceler brasileiro foi colocado à frente dessa operação, que começou com a autoproclamação e o reconhecimento imediato, pelo Brasil e pelos EUA, de Juan Guaidó como presidente da Venezuela, no dia 23 de janeiro de 2019; seguiu-se a fracassada “invasão humanitária” do território venezuelano, que foi tentada no dia 21 de fevereiro, comandada pelo novo chanceler brasileiro, sob as ordens de John Bolton e Mike Pompeo. Depois disso, ainda em 2019, o Brasil teve papel direto na derrubada do governo de Evo Morales e na instalação de um governo títere que rompeu imediatamente suas relações diplomáticas com o governo venezuelano. Até ali, todos os ventos pareciam soprar a favor da nova estratégia desenhada por Bolton/Pompeo e comandada pelo delirante chanceler brasileiro, com o apoio agora de todo o Grupo de Lima e Equador, com a exceção do México – a não ser, obviamente, pela hilária “invasão humanitária”, na qual o chanceler fez o papel do “bobo a corte”.

Assim, desde 2020, o chanceler brasileiro veio sofrendo sucessivos reveses que culminaram com a derrota completa de sua “estratégia venezuelana”, e do próprio projeto ideológico expansionista e de extrema-direita, do governo Bolsonaro. A virada começou de fato com a vitória das forças de esquerda no México, ainda em 2018, seguida pela vitória de Alberto Fernandez na Argentina, em outubro de 2019, e pela nova vitória da esquerda na Bolívia, em outubro de 2020, com o apoteótico retorno de Evo Motales ao país e a fuga, para os EUA, da maioria dos golpistas de direita protegidos e patrocinados pelo chanceler brasileiro. Depois, em fevereiro de 2021, as forças de esquerda venceram de novo, no primeiro turno, as eleições presidenciais do Equador e devem confirmar sua vitória no segundo turno que se realizará no mês de abril, quando o Chile irá eleger sua nova Assembleia Constituinte, que foi uma grande conquista das forças progressistas daquele país. E o mais provável é que essas forças saiam vitoriosas das eleições presidenciais que se realizarão em novembro de 2021. Também não é impossível que ocorra algo parecido nas eleições presidenciais do Peru em abril deste ano, e nas eleições presidenciais colombianas de 2021.

Mas além desta “virada à esquerda” na América Latina, o chanceler brasileiro sofreu mais dois reveses acachapantes: a derrota de Donald Trump nos EUA, e a decisão da União Europeia de retirar seu reconhecimento oficial de Juan Guaidó como presidente autoproclamado da Venezuela. É difícil que a política externa de algum país sofra uma sucessão de fracassos tão rápidos, tão arrasadores e em tão pouco tempo. E só se consegue entender este rápido isolamento do Brasil, dentro do seu próprio continente, tendo em conta a mais completa idiotice ideológica e geopolítica de um ministro das Relações Exteriores que pauta seu comportamento e sua política externa – em pleno século XXI – pela sua visão binária do mundo, e pela sua leitura medieval dos textos bíblicos.

A catástrofe administrativo deste governo de militares, e o fracasso de sua política externa sugerem com insistência que qualquer negociação a respeito do futuro do país deveria começar por pontos fundamentais: o primeiro, seria a devolução dos militares aos seus quartéis e funções constitucionais, sem nenhum tipo de concessão ou distinção entre “bons” e “maus” militares, apenas militares que cumprem ou que não cumprem suas obrigações legais; e o segundo, seria colocar uma pá de cal em cima da vergonhosa política externa deste governo, começando por um novo tipo de relacionamento com os Estados Unidos, sem fanfarronice nem arrogância, mas com altivez soberana e sem nenhum tipo de vassalagem, diplomática, jurídico eu militar.

A face econômica da necropolítica

Foram mais de 1.000 mortos por dia por causa da Covid-19 no Brasil, segundo a média móvel de sete dias. Apenas no dia 9 de fevereiro foram quase 2 mil mortes em 24 horas. Duas mil mortes em 24 horas são mais de 80 mortes por hora, o que equivale a mais de uma morte por minuto. Como números num papel não dão a experiência do tempo, convido o leitor a parar o que estiver fazendo agora e olhar o ponteiro dos segundos de um relógio, ou acionar o alarme do telefone. Deixe passar 60 segundos e pense: “Aqui, agora, enquanto eu nada faço além de esperar o tempo passar, mais de uma pessoa morreu de Covid no país”. Agora, considere: hoje é dia 12 de fevereiro e seria sexta-feira de Carnaval. Desde 31 de dezembro não temos auxílio emergencial ou orçamento para a Saúde. Mas temos discussão no Congresso sobre a autonomia do Banco Central.


Sei que há muitos indignados no Brasil. Sei também que, de modo geral, as pessoas no Brasil não têm o costume de olhar para o que está acontecendo no resto do mundo. Mas se o fizessem constatariam que o Brasil é dos únicos países que, em meio a uma severa crise humanitária, com variantes perigosas do vírus circulando em seu espaço, coloca em pauta tema arcano de política monetária como se prioritário fosse.

Como se isso não bastasse, tem o único governo que, neste momento, tenta enfraquecer sua própria economia “argentinizando-se”. Explico. Paulo Guedes e sua equipe querem que contas bancárias possam ser abertas em dólar no Brasil, instituindo um sistema bimonetário. É uma história com desfecho conhecido. Foi desse modo exato que teve início o processo de dolarização da economia argentina, há mais de 40 anos. De lá para cá, o país sofreu inúmeras crises econômicas, várias delas, se não todas, decorrentes da vulnerabilidade provocada por ter um sistema bimonetário.

Não há qualquer benefício na dolarização parcial que supere seus riscos. Quando a economia de um país passa a ser dependente de uma moeda que ele não é capaz de emitir, escancara as portas para a vulnerabilidade externa e para a volatilidade cambial. Trata-se de medida com alto potencial destrutivo, conforme testemunhei em meus anos de Fundo Monetário Internacional, onde trabalhei na crise da Argentina de 2001 e na crise do Uruguai de 2002. É imensurável a estupidez guediana.

O mais inquietante é que estejamos perdendo tempo com isso enquanto morre gente. Lidamos diuturnamente com pautas arcaicas, de um tipo de prática econômica que padeceu no mundo inteiro. Trata-se não mais de uma economia do sacrifício, mas de uma economia sacrificial. O mundo ruma para moldar a economia a desafios de saúde pública e meio ambiente. O mundo se orienta, pouco a pouco, para o que se tem chamado de economia do cuidado. Esse reposicionamento inclui países como China, Rússia e Índia, ou seja, países que hoje têm condições de vacinar boa parte dos emergentes e dos mais pobres. O Brasil poderia ser parte desse rol, se a orientação da política pública de Bolsonaro fosse o cuidado, não a destruição. Mas dá-se o contrário, e é importante que isso esteja claro.

O bolsonarismo se apresenta como uma necropolítica com desdobramentos na área ambiental, na Segurança Pública, na Saúde, na Educação e na Economia.

Ele atua para a construção de um país em que os que já eram tratados como seres humanos “inferiores”, dada nossa estrutura colonialista, passem a ser tratados como não cidadãos e não humanos. Constituição? Que Constituição? A existência da Carta Magna não importa para tipos como Paulo Guedes. Caso importasse, ele não teria tido a audácia de falar em Estado mínimo. Afinal, o tamanho do Estado foi pactuado pela sociedade e inscrito na Constituição, que é como se faz em uma democracia. O Brasil já não parece uma democracia. Pior, o que é triste não é sequer a constatação, mas o fato de que ela tenha se tornado banal. Ela é hoje tão banal que há quem insista em separar Bolsonaro de Guedes, talvez por preguiça, talvez por desconhecimento, talvez por falta de compreensão.

O bolsonarismo e sua necropolítica contam com isso. Contam com a não percepção, com a definição equivocada de que se trata de uma ideologia. O bolsonarismo não é uma ideologia, é um mecanismo de destruição e perseguição por meio da comunicação. Ele opera nas construções que as pessoas fazem de circunstâncias, para separar o que não é separável e relativizar aquilo que não é relativizável.

Imagino Guedes. Imagino os apoiadores de Guedes. Imagino os que vocalizam e os que calam. Imagino-os na Sapucaí. Imagino-os cantando: “Diga, espelho meu, se há na avenida alguém mais cruel que eu?”.