segunda-feira, 25 de agosto de 2025
O custo trilionário da falta de água para o planeta
A Terra é formada por 70% de água, mas só 0,5% disso é própria para consumo e uso na agricultura e está ao nosso alcance. E esse recurso precioso está se tornando ainda mais escasso devido ao aumento na demanda por água e a um planeta cada vez mais aquecido e seco no contexto das mudanças climáticas.
Cerca de 2 bilhões de pessoas ao redor do mundo já vivem sem acesso regular a água potável fresca. E metade da população global enfrenta escassez de água numa parte do ano.
Da queda nos níveis de produtividade agrícola à insegurança alimentar, redução da capacidade energética e impacto do saneamento precário na saúde, o estresse hídrico custa caro.
O valor econômico de ecossistemas funcionais de água doce era estimado em cerca de 58 trilhões de dólares em 2023 (R$ 314 trilhões), segundo a ONG ambientalista WWF – o equivalente a cerca de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) global.
O alto estresse hídrico em países áridos e castigados pela seca na África e no Oriente Médio devem provocar uma queda de 25% em suas economias nacionais dentro dos próximos 20 a 30 anos, afirma o economista Quentin Grafton, chefe do departamento de economia da água da Unesco e professor na Universidade Nacional da Austrália.
Isso significa que haverá menos dinheiro disponível para importações cruciais de alimentos, ou para infraestruturas importantes para aplacar a falta d'água, como represas e plantas de dessalinização.
Grafton diz que é preciso lidar urgentemente com os impactos do estresse hídrico sobre economias globais: "Esse é um momento decisivo. Teremos que nos adaptar de uma forma muito mais rápida."
Grafton aponta que essas regiões podem sofrer com a instabilidade política, inclusive revoluções, à medida que a falta d'água afetar as cadeias de suprimento de alimentos, a atividade econômica e o emprego nessas regiões.
Como consequência, afirma, poderemos ver o deslocamento e migração em massa de povos. E à medida em que pessoas atravessam o Mar Mediterrâneo em direção ao sul da Europa para fugir de regiões em processo cada vez mais avançado de desertificação, essa instabilidade também chegará ao Velho Continente.
E como implementar soluções também custa muito dinheiro, o problema é amplificado.
Ecossistemas de água doce diversos podem reduzir a duração e intensidade de secas, mas têm sido esgotados pelo progresso e a irrigação excessiva dos campos agrícolas. Reabilitá-los demandará esforços maciços de reabilitação, já que desde 1970 o mundo perdeu um terço de suas zonas úmidas, segundo a WWF.
A crise da água também deve desacelerar economias em desenvolvimento poderosas. Grafton cita que a Índia, por exemplo, não tem água o suficiente para manter as usinas de carvão que produzem a eletricidade que permitiu o rápido crescimento econômico do país e ajudou a melhorar seus índices de pobreza.
"A meta deles é um crescimento de 7%, mas isso é uma ilusão", afirma Grafton. O país tem 18% da população do mundo, mas só 4% da água doce. "Não há água suficiente para todos."
A população rural pobre da Índia é a que mais sofre com esse quadro de falta d'água. A exploração predatória de aquíferos é uma preocupação central à medida que o lençol freático recua. Possíveis soluções incluem programas para fortalecer os reservatórios locais de água com barragens de terra que retêm melhor as chuvas de monções antes da estação seca.
O calor e a seca recordes que desaceleram rios e esvaziam lagos e reservatórios também afetaram o ciclo hidrológico – processo em que a água evapora e retorna à terra como chuva.
O resultado disso é o declínio permanente da umidade e da qualidade do solo, com impactos devastadores sobre a produção agrícola que sustenta economias na Ásia e na África.
Durante a seca severa de 2020-2023 no Chifre da África – e que se tornou cem vezes mais provável por causa da mudança climática –, produtores rurais perderam cerca de 13 milhões de animais, além de colheitas inteiras. Ao menos 20 milhões de pessoas sofreram com a falta aguda de alimentos e perderam seu sustento.
Enquanto isso, na África Subsaariana, 40 bilhões de horas são perdidas todos os anos com a coleta de água – tempo que poderia ser usado para trabalhar e obter renda, ou estudar –, segundo a The Water Project, ONG que atua para mitigar a crise hídrica na região.
A escassez de água também aumenta na Europa, uma região que tem esquentado mais rápido que qualquer outro continente do planeta, com exceção da Antártica.
Depois de a Europa registrar seu ano mais quente em 2024, a Alemanha teve, neste ano, sua mais seca transição de inverno para primavera. A seca se estendeu por grande parte do continente, do Reino Unido à Europa Central, enquanto países no Mediterrâneo sofreram com o calor extremo, incêndios florestais e falta d'água.
Ao mesmo tempo, cada vez mais setores da indústria competem por recursos hídricos limitados, observa Sergiz Moroz, especialista em gerenciamento de água da rede Escritório Europeu do Meio Ambiente (EEB).
"O setor de TI de repente começou a vir até Bruxelas e dizer que nós precisamos de um monte de água de alta qualidade para todo o crescimento que vai acontecer", afirma Moroz. "Fazendeiros vêm e falam: 'Olha, não podemos plantar sem água'."
A União Europeia está lidando com o consumo significativo de água por data centers, que dependem de sistemas de resfriamento para evitar o superaquecimento e estão se expandindo rapidamente junto com sistemas de computação em nuvem e a inteligência artificial. A estratégia de resiliência de água da UE, que deve entrar em vigor em 2026, planeja impor limites no consumo de água às empresas de tecnologia.
Enquanto isso, na Inglaterra a mudança climática, o crescimento populacional e as pressões ambientais devem provocar uma falta d'água até 2055 equivalente a um terço do que é usado hoje diariamente no Reino Unido, segundo a agência ambiental britânica. O déficit deve ser maior na região sudoeste do país, que é mais densamente habitada.
"Os recursos hídricos do país estão sob pressão enorme e cada vez maior", afirma o chefe da agência ambiental britânica, Alan Lovell. Segundo ele, o déficit põe em risco o crescimento econômico e a produção de alimentos.
Nos Estados Unidos, moradores com acesso limitado a água também estão sob pressão econômica. O número crescente de lares sem água e saneamento suficientes gastam em média 15,8 mil dólares a mais por ano com saúde do que outros domicílios (R$ 85,7 mil), e viram seus níveis de rendimento no trabalho e na escola caírem, segundo um estudo de 2022 da ONG DigDeep.
"À medida que a água se torna mais escassa, o número de pessoas sem acesso deve crescer por causa de pressões relacionadas a eventos climáticos", avisa George McGraw, fundador e diretor da DigDeep.
"O jeito mais fácil de proteger a economia dos EUA desses choques é universalizar o acesso à água", afirma McGraw à DW. Isso inclui investimentos em "sistemas de água inteligentes e sustentáveis, dentro e fora da rede", para fazer frente aos "obstáculos ao acesso" em sistemas de distribuição de água ultrapassados que não são resilientes ao clima.
Cerca de 2 bilhões de pessoas ao redor do mundo já vivem sem acesso regular a água potável fresca. E metade da população global enfrenta escassez de água numa parte do ano.
Da queda nos níveis de produtividade agrícola à insegurança alimentar, redução da capacidade energética e impacto do saneamento precário na saúde, o estresse hídrico custa caro.
O valor econômico de ecossistemas funcionais de água doce era estimado em cerca de 58 trilhões de dólares em 2023 (R$ 314 trilhões), segundo a ONG ambientalista WWF – o equivalente a cerca de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) global.
O alto estresse hídrico em países áridos e castigados pela seca na África e no Oriente Médio devem provocar uma queda de 25% em suas economias nacionais dentro dos próximos 20 a 30 anos, afirma o economista Quentin Grafton, chefe do departamento de economia da água da Unesco e professor na Universidade Nacional da Austrália.
Isso significa que haverá menos dinheiro disponível para importações cruciais de alimentos, ou para infraestruturas importantes para aplacar a falta d'água, como represas e plantas de dessalinização.
Grafton diz que é preciso lidar urgentemente com os impactos do estresse hídrico sobre economias globais: "Esse é um momento decisivo. Teremos que nos adaptar de uma forma muito mais rápida."
Grafton aponta que essas regiões podem sofrer com a instabilidade política, inclusive revoluções, à medida que a falta d'água afetar as cadeias de suprimento de alimentos, a atividade econômica e o emprego nessas regiões.
Como consequência, afirma, poderemos ver o deslocamento e migração em massa de povos. E à medida em que pessoas atravessam o Mar Mediterrâneo em direção ao sul da Europa para fugir de regiões em processo cada vez mais avançado de desertificação, essa instabilidade também chegará ao Velho Continente.
E como implementar soluções também custa muito dinheiro, o problema é amplificado.
Ecossistemas de água doce diversos podem reduzir a duração e intensidade de secas, mas têm sido esgotados pelo progresso e a irrigação excessiva dos campos agrícolas. Reabilitá-los demandará esforços maciços de reabilitação, já que desde 1970 o mundo perdeu um terço de suas zonas úmidas, segundo a WWF.
A crise da água também deve desacelerar economias em desenvolvimento poderosas. Grafton cita que a Índia, por exemplo, não tem água o suficiente para manter as usinas de carvão que produzem a eletricidade que permitiu o rápido crescimento econômico do país e ajudou a melhorar seus índices de pobreza.
"A meta deles é um crescimento de 7%, mas isso é uma ilusão", afirma Grafton. O país tem 18% da população do mundo, mas só 4% da água doce. "Não há água suficiente para todos."
A população rural pobre da Índia é a que mais sofre com esse quadro de falta d'água. A exploração predatória de aquíferos é uma preocupação central à medida que o lençol freático recua. Possíveis soluções incluem programas para fortalecer os reservatórios locais de água com barragens de terra que retêm melhor as chuvas de monções antes da estação seca.
O calor e a seca recordes que desaceleram rios e esvaziam lagos e reservatórios também afetaram o ciclo hidrológico – processo em que a água evapora e retorna à terra como chuva.
O resultado disso é o declínio permanente da umidade e da qualidade do solo, com impactos devastadores sobre a produção agrícola que sustenta economias na Ásia e na África.
Durante a seca severa de 2020-2023 no Chifre da África – e que se tornou cem vezes mais provável por causa da mudança climática –, produtores rurais perderam cerca de 13 milhões de animais, além de colheitas inteiras. Ao menos 20 milhões de pessoas sofreram com a falta aguda de alimentos e perderam seu sustento.
Enquanto isso, na África Subsaariana, 40 bilhões de horas são perdidas todos os anos com a coleta de água – tempo que poderia ser usado para trabalhar e obter renda, ou estudar –, segundo a The Water Project, ONG que atua para mitigar a crise hídrica na região.
A escassez de água também aumenta na Europa, uma região que tem esquentado mais rápido que qualquer outro continente do planeta, com exceção da Antártica.
Depois de a Europa registrar seu ano mais quente em 2024, a Alemanha teve, neste ano, sua mais seca transição de inverno para primavera. A seca se estendeu por grande parte do continente, do Reino Unido à Europa Central, enquanto países no Mediterrâneo sofreram com o calor extremo, incêndios florestais e falta d'água.
Ao mesmo tempo, cada vez mais setores da indústria competem por recursos hídricos limitados, observa Sergiz Moroz, especialista em gerenciamento de água da rede Escritório Europeu do Meio Ambiente (EEB).
"O setor de TI de repente começou a vir até Bruxelas e dizer que nós precisamos de um monte de água de alta qualidade para todo o crescimento que vai acontecer", afirma Moroz. "Fazendeiros vêm e falam: 'Olha, não podemos plantar sem água'."
A União Europeia está lidando com o consumo significativo de água por data centers, que dependem de sistemas de resfriamento para evitar o superaquecimento e estão se expandindo rapidamente junto com sistemas de computação em nuvem e a inteligência artificial. A estratégia de resiliência de água da UE, que deve entrar em vigor em 2026, planeja impor limites no consumo de água às empresas de tecnologia.
Enquanto isso, na Inglaterra a mudança climática, o crescimento populacional e as pressões ambientais devem provocar uma falta d'água até 2055 equivalente a um terço do que é usado hoje diariamente no Reino Unido, segundo a agência ambiental britânica. O déficit deve ser maior na região sudoeste do país, que é mais densamente habitada.
"Os recursos hídricos do país estão sob pressão enorme e cada vez maior", afirma o chefe da agência ambiental britânica, Alan Lovell. Segundo ele, o déficit põe em risco o crescimento econômico e a produção de alimentos.
Nos Estados Unidos, moradores com acesso limitado a água também estão sob pressão econômica. O número crescente de lares sem água e saneamento suficientes gastam em média 15,8 mil dólares a mais por ano com saúde do que outros domicílios (R$ 85,7 mil), e viram seus níveis de rendimento no trabalho e na escola caírem, segundo um estudo de 2022 da ONG DigDeep.
"À medida que a água se torna mais escassa, o número de pessoas sem acesso deve crescer por causa de pressões relacionadas a eventos climáticos", avisa George McGraw, fundador e diretor da DigDeep.
"O jeito mais fácil de proteger a economia dos EUA desses choques é universalizar o acesso à água", afirma McGraw à DW. Isso inclui investimentos em "sistemas de água inteligentes e sustentáveis, dentro e fora da rede", para fazer frente aos "obstáculos ao acesso" em sistemas de distribuição de água ultrapassados que não são resilientes ao clima.
Sísifo entre nós
Grande e terrível, e complicado, parecia o mundo aos olhos dos nossos avós há cem anos ou pouco mais. Era uma época de democracias liberais em retirada, de fascismos aparentemente irresistíveis e de um comunismo primitivo com características rigidamente estatistas. Apesar de tudo, os que mantiveram a lucidez em meio ao caos puderam achar gradualmente um fio condutor. Em última análise, e não sem conflitos ásperos, havia um fundo comum – iluminista – entre as democracias liberais e o comunismo soviético, com todas as suas falhas e mesmo os seus crimes fartamente conhecidos.
De fato, a destruição da razão, total e inapelável, era a marca dos fascismos: contra estes deveriam unir-se todos os demais para travar o que então se chamaria a mais justa das guerras. Os otimistas julgavam que se atravessava uma fase de “interregno”, passada a qual a razão iluminista acabaria por se impor, fosse qual fosse o futuro modelo de sociedade ou a forma de Estado. E, de fato, uma parte desse otimismo se materializaria no imediato pós-guerra, com a construção do sistema das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma espécie de atestado, obtido em meio a sacrifícios gigantescos, de que o progresso moral é afinal coisa deste mundo.
A ordem internacional então nascida teve a óbvia direção norte-americana. A URSS e o campo socialista, presos ao modelo original, nunca abandonaram a posição defensiva e a mentalidade de cerco – com a nefasta e permanente compressão interna das liberdades. No clima da guerra fria, a “guerra civil das ideologias” – capitalismo ou comunismo – constituiria o dado negativo a enrijecer corações, vontades e mentes. Mas o “interregno” parecia desembocar em boas novidades, como comprovado pelas quase quatro décadas gloriosas da social-democracia e pela continuidade do experimento rooseveltiano no outro lado do Atlântico.
Em rápidas palavras, o que acima descrevemos foi o nosso “mundo de ontem”, para retomar uma expressão irreparavelmente nostálgica de Stefan Zweig a propósito de um outro tempo, o que terminara em agosto de 1914. Dele nos separa, para sempre, o colapso de uma das duas superpotências, a afirmação e a crise subsequente da supremacia norteamericana, bem como, e muito especialmente, a ascensão da China nominalmente comunista no quadro de uma globalização que parecia caminhar por si só.
Menos felizes do que nossos avós, sequer temos a certeza de algum futuro luminoso, passado o atual “interregno” ou superadas as dores do parto. Do próprio coração do Ocidente político vem a mensagem inesperada – a mais antiga democracia dos modernos declina de sua prévia função hegemônica e, para enfrentar o enigma chinês, afirma cruamente o próprio interesse bruto. Seu horizonte agora é “corporativo”, suas atitudes oscilam entre o espírito dito transacional e o puramente predatório. E as ideias para uma ordem mais universalista simplesmente definharam.
Para cada uma das nações “ocidentais”, entre elas a nossa, a recomendação é igualmente seca – e inaceitável. Encharcado de ideologia reacionária, o vice-presidente americano, J.D. Vance, ainda recentemente advertiu os ex-aliados europeus de que o “inimigo principal” era interno e morava dentro de cada um deles mesmos, a saber, a democracia constitucionalmente organizada e a sociedade civil aberta e plural. O remédio para os males contemporâneos consistiria em abandonar tais concepções e deixar livre a fúria destruidora das correntes nacional-populistas, inclusive as que, como na Alemanha, reatualizam ritos e símbolos de um passado mais que imperfeito.
Não sendo o trumpismo um breve parêntese e estando longe de esgotar seu espírito de conquista, a solução mais fácil para muitos, até para a esquerda, é saudar sem espírito crítico o nascente desafio chinês, quando não acorrentar-se à distopia de Putin, esta última com os pés plantados na eslavofilia e a cabeça imersa no sonho imperial.
A ascensão chinesa – e da Ásia, mais generalizadamente – é um destes fenômenos que dão forma a toda uma época “histórico-universal”. A globalização seria essencialmente neoliberal, dizíamos antes com dose maior ou menor de veneno; talvez agora devamos dizer que, na verdade, era chinesa. Rótulos à parte, o certo é que a exitosa China sacrifica inflexivelmente uma das pontas do conhecido trilema formulado pelo economista Dani Rodrik: soberana e participante da globalização, ela esmaga a democracia política da qual os “ocidentais” não podemos abrir mão sem nos desfigurarmos existencialmente.
Tanto quanto nos anos 1930, os neoiluministas estão na defensiva, resistindo a duras penas ao poderio e ao canto da sereia das autocracias. Submetidos como fomos às “duras réplicas da História”, para o bem e para o mal perdemos para sempre a crença ingênua em amanhãs radiosos. A única coisa que podemos prever, sem possibilidade de erro, é que haverá luta – e muito provavelmente será conveniente assumir a ética do Sísifo camusiano, acostumando-nos à felicidade só possível numa luta que recomeça a cada dia.
De fato, a destruição da razão, total e inapelável, era a marca dos fascismos: contra estes deveriam unir-se todos os demais para travar o que então se chamaria a mais justa das guerras. Os otimistas julgavam que se atravessava uma fase de “interregno”, passada a qual a razão iluminista acabaria por se impor, fosse qual fosse o futuro modelo de sociedade ou a forma de Estado. E, de fato, uma parte desse otimismo se materializaria no imediato pós-guerra, com a construção do sistema das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma espécie de atestado, obtido em meio a sacrifícios gigantescos, de que o progresso moral é afinal coisa deste mundo.
A ordem internacional então nascida teve a óbvia direção norte-americana. A URSS e o campo socialista, presos ao modelo original, nunca abandonaram a posição defensiva e a mentalidade de cerco – com a nefasta e permanente compressão interna das liberdades. No clima da guerra fria, a “guerra civil das ideologias” – capitalismo ou comunismo – constituiria o dado negativo a enrijecer corações, vontades e mentes. Mas o “interregno” parecia desembocar em boas novidades, como comprovado pelas quase quatro décadas gloriosas da social-democracia e pela continuidade do experimento rooseveltiano no outro lado do Atlântico.
Em rápidas palavras, o que acima descrevemos foi o nosso “mundo de ontem”, para retomar uma expressão irreparavelmente nostálgica de Stefan Zweig a propósito de um outro tempo, o que terminara em agosto de 1914. Dele nos separa, para sempre, o colapso de uma das duas superpotências, a afirmação e a crise subsequente da supremacia norteamericana, bem como, e muito especialmente, a ascensão da China nominalmente comunista no quadro de uma globalização que parecia caminhar por si só.
Menos felizes do que nossos avós, sequer temos a certeza de algum futuro luminoso, passado o atual “interregno” ou superadas as dores do parto. Do próprio coração do Ocidente político vem a mensagem inesperada – a mais antiga democracia dos modernos declina de sua prévia função hegemônica e, para enfrentar o enigma chinês, afirma cruamente o próprio interesse bruto. Seu horizonte agora é “corporativo”, suas atitudes oscilam entre o espírito dito transacional e o puramente predatório. E as ideias para uma ordem mais universalista simplesmente definharam.
Para cada uma das nações “ocidentais”, entre elas a nossa, a recomendação é igualmente seca – e inaceitável. Encharcado de ideologia reacionária, o vice-presidente americano, J.D. Vance, ainda recentemente advertiu os ex-aliados europeus de que o “inimigo principal” era interno e morava dentro de cada um deles mesmos, a saber, a democracia constitucionalmente organizada e a sociedade civil aberta e plural. O remédio para os males contemporâneos consistiria em abandonar tais concepções e deixar livre a fúria destruidora das correntes nacional-populistas, inclusive as que, como na Alemanha, reatualizam ritos e símbolos de um passado mais que imperfeito.
Não sendo o trumpismo um breve parêntese e estando longe de esgotar seu espírito de conquista, a solução mais fácil para muitos, até para a esquerda, é saudar sem espírito crítico o nascente desafio chinês, quando não acorrentar-se à distopia de Putin, esta última com os pés plantados na eslavofilia e a cabeça imersa no sonho imperial.
A ascensão chinesa – e da Ásia, mais generalizadamente – é um destes fenômenos que dão forma a toda uma época “histórico-universal”. A globalização seria essencialmente neoliberal, dizíamos antes com dose maior ou menor de veneno; talvez agora devamos dizer que, na verdade, era chinesa. Rótulos à parte, o certo é que a exitosa China sacrifica inflexivelmente uma das pontas do conhecido trilema formulado pelo economista Dani Rodrik: soberana e participante da globalização, ela esmaga a democracia política da qual os “ocidentais” não podemos abrir mão sem nos desfigurarmos existencialmente.
Tanto quanto nos anos 1930, os neoiluministas estão na defensiva, resistindo a duras penas ao poderio e ao canto da sereia das autocracias. Submetidos como fomos às “duras réplicas da História”, para o bem e para o mal perdemos para sempre a crença ingênua em amanhãs radiosos. A única coisa que podemos prever, sem possibilidade de erro, é que haverá luta – e muito provavelmente será conveniente assumir a ética do Sísifo camusiano, acostumando-nos à felicidade só possível numa luta que recomeça a cada dia.
O Big Brother e a Casa dos Segredos
O Big Brother e a Casa dos Segredos não são sobre privacidade, mas sobre segredo. Os concorrentes sabem estar a ser observados e “atuam” para o público. O programa pode causar-nos desconforto e ser alvo de crítica por explorar a situação económica dos concorrentes, mas não torna o público um “intruso” ou “voyeur”. No caso do intruso, a vítima desconhece estar a ser observada e vê, por isso, a sua privacidade invadida. O espaço é exclusivamente seu e, sobre o qual, tem uma expectativa de, para terceiros, não ser criada qualquer informação.
A perguntas intrusivas sobre a nossa intimidade, não respondemos “é segredo”, mas sim “é privado”.
Sentimos a violação do nosso espaço pessoal, ainda que o “voyeur” nunca venha a partilhar com ninguém o que viu. O facto de um terceiro observar – num momento que assumíamos como pessoal – e criar uma imagem na sua mente (seja lasciva ou não) cria-nos desconforto, asco.
A violação da privacidade foi o principal instrumento utilizado pela elite da Alemanha Democrática para se manter no poder. Aquando da queda do Muro de Berlim, em 1989, a Stasi tinha mais de 90 mil funcionários e 180 mil colaboradores, com acesso ilimitado a todos os registos e a meios de obtenção intrusiva de informação: escutas, fotografias… A perceção de uma vigilância constante erodia a confiança no outro e contribuía, de forma efetiva, para silenciar pensamentos dissidentes.
Na sociedade da hiperconetividade e da informação, tudo o que fazemos, online ou em interação com equipamentos ligados à web (carros, eletrodomésticos…) é convertido em dados. Informação sobre a qual o algoritmo – e quem os controla – infere quem somos, o que desejamos, o que tememos.
Quando se afirma “não tenho nada a esconder, não me incomoda que recolham os meus dados”, e respondemos “todos temos algo a esconder”, capitulamos à propaganda da vigilância, e confundimos “privacidade” com “segredo”. Sem privacidade não temos um espaço nosso, longe da vigilância de terceiros. Privacidade é vital ao desenvolvimento e ao bem-estar humano, da mesma forma que o são a liberdade e a possibilidade de participarmos no espaço público. Um espaço seguro onde podemos descansar, pensar e crescer.
A legislação atual, ao focar-se na recolha de informação e no controlo sobre a mesma, não protege de forma efetiva e plena o nosso espaço privado, sobre o qual deveríamos ter o direito de não ser criada qualquer informação.
Hoje, a recolha massiva de dados, ou a possibilidade de o fazer, cria uma perceção de vigilância constante. Uma prisão virtual, para a qual já alertava Michel Foucault, no livro Vigiar e Punir, no qual comparava os sistemas de arquivo do Estado moderno e as suas instituições com a prisão panótica, proposta pelo filósofo do séc. XVIII Jeremy Bentham. O edifício-prisão panótico é uma estrutura em círculo com um ponto de observação central, de onde o guarda pode vigiar os presos, atrás de persianas. Os presos nunca podem realmente ter a certeza de haver alguém na torre, mas essa possibilidade tolhe o seu comportamento e induz a disciplina.
Ainda que fisicamente sozinhos, não nos sentimos em privado se, ao fazermos uma pesquisa na net, o Google (ou qualquer outra app) recolher (como recolhe) os nossos dados. A legislação ao permitir a recolha massiva de dados, ao invés de a impedir e de impor o seu imediato apagamento, não valoriza a privacidade e limita-se a regular a utilização de um bem. Trata a privacidade como segredo, como um bem económico, que trocamos por um serviço. Impõe-se proteger o valor da privacidade, ainda que tal implique pagar pela utilização de motores de busca, Large Language Models (como o ChatGPT) ou redes sociais. Importa assegurar que não somos meros produtores de dados e consumidores, prontos a ser vendidos a quem pague mais, mas cidadãos com direitos e deveres.
A perguntas intrusivas sobre a nossa intimidade, não respondemos “é segredo”, mas sim “é privado”.
Sentimos a violação do nosso espaço pessoal, ainda que o “voyeur” nunca venha a partilhar com ninguém o que viu. O facto de um terceiro observar – num momento que assumíamos como pessoal – e criar uma imagem na sua mente (seja lasciva ou não) cria-nos desconforto, asco.
A violação da privacidade foi o principal instrumento utilizado pela elite da Alemanha Democrática para se manter no poder. Aquando da queda do Muro de Berlim, em 1989, a Stasi tinha mais de 90 mil funcionários e 180 mil colaboradores, com acesso ilimitado a todos os registos e a meios de obtenção intrusiva de informação: escutas, fotografias… A perceção de uma vigilância constante erodia a confiança no outro e contribuía, de forma efetiva, para silenciar pensamentos dissidentes.
Na sociedade da hiperconetividade e da informação, tudo o que fazemos, online ou em interação com equipamentos ligados à web (carros, eletrodomésticos…) é convertido em dados. Informação sobre a qual o algoritmo – e quem os controla – infere quem somos, o que desejamos, o que tememos.
Quando se afirma “não tenho nada a esconder, não me incomoda que recolham os meus dados”, e respondemos “todos temos algo a esconder”, capitulamos à propaganda da vigilância, e confundimos “privacidade” com “segredo”. Sem privacidade não temos um espaço nosso, longe da vigilância de terceiros. Privacidade é vital ao desenvolvimento e ao bem-estar humano, da mesma forma que o são a liberdade e a possibilidade de participarmos no espaço público. Um espaço seguro onde podemos descansar, pensar e crescer.
A legislação atual, ao focar-se na recolha de informação e no controlo sobre a mesma, não protege de forma efetiva e plena o nosso espaço privado, sobre o qual deveríamos ter o direito de não ser criada qualquer informação.
Hoje, a recolha massiva de dados, ou a possibilidade de o fazer, cria uma perceção de vigilância constante. Uma prisão virtual, para a qual já alertava Michel Foucault, no livro Vigiar e Punir, no qual comparava os sistemas de arquivo do Estado moderno e as suas instituições com a prisão panótica, proposta pelo filósofo do séc. XVIII Jeremy Bentham. O edifício-prisão panótico é uma estrutura em círculo com um ponto de observação central, de onde o guarda pode vigiar os presos, atrás de persianas. Os presos nunca podem realmente ter a certeza de haver alguém na torre, mas essa possibilidade tolhe o seu comportamento e induz a disciplina.
Ainda que fisicamente sozinhos, não nos sentimos em privado se, ao fazermos uma pesquisa na net, o Google (ou qualquer outra app) recolher (como recolhe) os nossos dados. A legislação ao permitir a recolha massiva de dados, ao invés de a impedir e de impor o seu imediato apagamento, não valoriza a privacidade e limita-se a regular a utilização de um bem. Trata a privacidade como segredo, como um bem económico, que trocamos por um serviço. Impõe-se proteger o valor da privacidade, ainda que tal implique pagar pela utilização de motores de busca, Large Language Models (como o ChatGPT) ou redes sociais. Importa assegurar que não somos meros produtores de dados e consumidores, prontos a ser vendidos a quem pague mais, mas cidadãos com direitos e deveres.
A política externa de Israel e o paradigma da guerra permanente
A sucessão de ataques contra o Líbano, a Cisjordânia, o Irã, o Iêmen e de forma brutal e contínua, contra Gaza, evidenciam que os bombardeios aéreos conduzidos contra a Síria, mais uma vez sob a justificativa da “autodefesa preventiva”, não são eventos isolados, tampouco uma ação reativa à geopolítica regional. Trata-se de mais uma expressão de um padrão estratégico de política externa de um Estado que se sustenta sobre a necessidade estrutural da guerra permanente.
Desde sua fundação em 1948, Israel articula sua coesão interna em torno de uma lógica de confronto contínuo no plano internacional, ancorada em uma retórica da ameaça existencial que legitima qualquer forma de violência sob a justificativa da sobrevivência nacional, ou, em outras palavras, pelo direito de Israel de existir. Essa narrativa, evocando constantemente a memória do Holocausto e a longa história de perseguições sofridas pelo povo judeu, tornou-se um pilar ideológico que vincula a identidade nacional à manutenção de um estado permanente de guerra.
A lógica da excepcionalidade é acionada a todo instante. Cada inimigo é construído como a quintessência do mal (Fanon, 1968). Ações ofensivas são enquadradas como preventivas, e mortes de civis normalizadas como fatalidades inevitáveis. O colonizador transforma o colonizado em inimigo ontológico, desprovido de humanidade, para justificar sua dominação total de forma a apagar sua existência como possibilidade histórica. A guerra é mais do que um instrumento: é um modo de ser. A narrativa da segurança nacional legitima o estado de exceção constante e esconde um projeto político e ideológico de dominação regional.
O paradigma do Hard Power como eixo da política externa israelense serve, em última instância, para mascarar suas contradições internas. Enredado em sucessivas crises políticas, o governo de Benjamin Netanyahu mantém-se de pé graças à mobilização constante contra inimigos externos. A ameaça do Irã e seus aliados, composto por Hamas, Hezbollah e Houthis, incorpora uma dramaturgia estatal voltada à produção do medo como técnica de governo. O recente ataque à Síria encaixa-se perfeitamente nessa engrenagem como uma reafirmação do seu lugar como potência bélica regional, disposta a absolutamente tudo para preservar o monopólio da violência na região.
Entretanto, é na Faixa de Gaza que a política externa israelense revela sua face mais brutal. Ali, não se trata de confronto entre Estados ou forças armadas simétricas. Gaza é um laboratório que combina racismo, militarismo e colonialismo, produzindo o experimento deliberado e intencional mais brutal e sanguinário do século XXI: o genocídio palestino. O governo de Tel Aviv, nesse paradigma, exerce, para além do direito de matar, também de negar completamente a humanidade de seus alvos. A distinção entre combatentes e civis é abolida, o direito internacional é reconfigurado como obstáculo à “segurança nacional”, e a destruição em massa torna-se um método sistemático de governo.
Após a ofensiva do Hamas em outubro de 2023, o que se observa na Faixa de Gaza é uma campanha de extermínio. Mais de dezenas de milhares de mortos, a maioria civis; hospitais e escolas bombardeadas, campos de refugiados transformados em alvos, crianças soterradas sob escombros e a fome instrumentalizada como arma de guerra. Tudo isso é racionalizado sob o discurso da luta contra o “terrorismo”, enquanto a população palestina é destituída de qualquer valor político, ético ou jurídico. Uma verdadeira limpeza étnica deliberada.
A discrepância entre o tratamento dado ao Irã, com quem Israel foi compelido a aceitar um cessar-fogo após a Guerra dos 12 Dias e a política de extermínio em Gaza, revela a seletividade racial da violência israelense. O caso iraniano é emblemático: em diversas ocasiões, o Estado persa foi capaz de superar o sofisticado sistema de defesa Domo de Ferro, colocando em risco a população de Tel Aviv e de outros centros estratégicos, forçando-os a sair de sua rotina e abrigarem-se em bunkers, paralisando sua economia. Quando o inimigo tem capacidade real de resposta, há negociação, cálculo e contenção. Quando o inimigo é uma população empobrecida, sitiada e racializada, não há limites. O reconhecimento da soberania é condicionado ao poder de retaliar. A violência absoluta recai sobre aqueles que, por não representarem risco geopolítico relevante, são tomados como matáveis em sua totalidade.
Um Estado cuja trajetória histórica está profundamente entrelaçada com a guerra, que mobiliza a ameaça como elemento integrador da identidade nacional, parece não saber sobreviver politicamente à paz. Ao lançar bombas sobre o território sírio, Israel não apenas atacou alvos militares mas reafirmou sua condição de Estado que governa pela guerra permanente. Sob o olhar paralisado do Conselho de Segurança da ONU, Gaza vai sendo reduzida a ruínas, seus habitantes à categoria de resíduos históricos e a comunidade internacional segue cúmplice de um projeto de morte racializada que se naturalizou sob o paradigma de política externa da guerra permanente.
Wallace de Moraes e Juan Filipe Loureiro Magalhães
Desde sua fundação em 1948, Israel articula sua coesão interna em torno de uma lógica de confronto contínuo no plano internacional, ancorada em uma retórica da ameaça existencial que legitima qualquer forma de violência sob a justificativa da sobrevivência nacional, ou, em outras palavras, pelo direito de Israel de existir. Essa narrativa, evocando constantemente a memória do Holocausto e a longa história de perseguições sofridas pelo povo judeu, tornou-se um pilar ideológico que vincula a identidade nacional à manutenção de um estado permanente de guerra.
A lógica da excepcionalidade é acionada a todo instante. Cada inimigo é construído como a quintessência do mal (Fanon, 1968). Ações ofensivas são enquadradas como preventivas, e mortes de civis normalizadas como fatalidades inevitáveis. O colonizador transforma o colonizado em inimigo ontológico, desprovido de humanidade, para justificar sua dominação total de forma a apagar sua existência como possibilidade histórica. A guerra é mais do que um instrumento: é um modo de ser. A narrativa da segurança nacional legitima o estado de exceção constante e esconde um projeto político e ideológico de dominação regional.
O paradigma do Hard Power como eixo da política externa israelense serve, em última instância, para mascarar suas contradições internas. Enredado em sucessivas crises políticas, o governo de Benjamin Netanyahu mantém-se de pé graças à mobilização constante contra inimigos externos. A ameaça do Irã e seus aliados, composto por Hamas, Hezbollah e Houthis, incorpora uma dramaturgia estatal voltada à produção do medo como técnica de governo. O recente ataque à Síria encaixa-se perfeitamente nessa engrenagem como uma reafirmação do seu lugar como potência bélica regional, disposta a absolutamente tudo para preservar o monopólio da violência na região.
Entretanto, é na Faixa de Gaza que a política externa israelense revela sua face mais brutal. Ali, não se trata de confronto entre Estados ou forças armadas simétricas. Gaza é um laboratório que combina racismo, militarismo e colonialismo, produzindo o experimento deliberado e intencional mais brutal e sanguinário do século XXI: o genocídio palestino. O governo de Tel Aviv, nesse paradigma, exerce, para além do direito de matar, também de negar completamente a humanidade de seus alvos. A distinção entre combatentes e civis é abolida, o direito internacional é reconfigurado como obstáculo à “segurança nacional”, e a destruição em massa torna-se um método sistemático de governo.
Após a ofensiva do Hamas em outubro de 2023, o que se observa na Faixa de Gaza é uma campanha de extermínio. Mais de dezenas de milhares de mortos, a maioria civis; hospitais e escolas bombardeadas, campos de refugiados transformados em alvos, crianças soterradas sob escombros e a fome instrumentalizada como arma de guerra. Tudo isso é racionalizado sob o discurso da luta contra o “terrorismo”, enquanto a população palestina é destituída de qualquer valor político, ético ou jurídico. Uma verdadeira limpeza étnica deliberada.
A discrepância entre o tratamento dado ao Irã, com quem Israel foi compelido a aceitar um cessar-fogo após a Guerra dos 12 Dias e a política de extermínio em Gaza, revela a seletividade racial da violência israelense. O caso iraniano é emblemático: em diversas ocasiões, o Estado persa foi capaz de superar o sofisticado sistema de defesa Domo de Ferro, colocando em risco a população de Tel Aviv e de outros centros estratégicos, forçando-os a sair de sua rotina e abrigarem-se em bunkers, paralisando sua economia. Quando o inimigo tem capacidade real de resposta, há negociação, cálculo e contenção. Quando o inimigo é uma população empobrecida, sitiada e racializada, não há limites. O reconhecimento da soberania é condicionado ao poder de retaliar. A violência absoluta recai sobre aqueles que, por não representarem risco geopolítico relevante, são tomados como matáveis em sua totalidade.
Um Estado cuja trajetória histórica está profundamente entrelaçada com a guerra, que mobiliza a ameaça como elemento integrador da identidade nacional, parece não saber sobreviver politicamente à paz. Ao lançar bombas sobre o território sírio, Israel não apenas atacou alvos militares mas reafirmou sua condição de Estado que governa pela guerra permanente. Sob o olhar paralisado do Conselho de Segurança da ONU, Gaza vai sendo reduzida a ruínas, seus habitantes à categoria de resíduos históricos e a comunidade internacional segue cúmplice de um projeto de morte racializada que se naturalizou sob o paradigma de política externa da guerra permanente.
Wallace de Moraes e Juan Filipe Loureiro Magalhães
Clássico mostrou que o fascismo pode brotar na democracia
Este ano completa-se o 75º aniversário de "A Personalidade Autoritária", obra monumental publicada em 1950 por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford, que inaugurou uma agenda de pesquisa ainda atual sobre intolerância política e as bases psicológicas do autoritarismo.
Pela primeira vez, psicanálise, psicologia e sociologia foram mobilizadas de modo integrado para enfrentar uma questão que, tanto no pós-guerra quanto hoje, se impõe com urgência: como sociedades democráticas podem gerar cidadãos predispostos a aderir a ideologias autoritárias.
A primeira grande inovação foi a virada copernicana que deslocou o centro da análise. Em vez de estudar a ideologia fascista —seus movimentos sociais, discursos, partidos e programas—, os autores voltaram-se aos indivíduos e às suas atitudes, isto é, às disposições subjetivas que estruturam o modo como as pessoas percebem o mundo social.
As atitudes autoritárias, sustentam, correlacionam-se de forma estável em um conjunto recorrente de sintomas psicológicos e sociais: conformismo, submissão à autoridade, intolerância à ambiguidade, agressividade contra grupos minoritários, rigidez moral e preconceito. Não é preciso militância aberta: basta que essas disposições, formadas desde a infância, estejam latentes.
Para compreender por que alguém tende a manter posições coerentes, é necessária uma estrutura subjetiva que garanta essa permanência relativa —a personalidade. Ela organiza predisposições e dá unidade ao comportamento, filtra os apelos da propaganda e reage às circunstâncias. Daí a diferença pessoal na suscetibilidade ao autoritarismo. Por outro lado, certas condições sociais e apelos externos podem ativar as disposições autoritárias, com risco real de uma tempestade perfeita.
A segunda inovação foi conceber o fascismo não como uma anomalia histórica confinada à Europa de Benito Mussolini ou Adolf Hitler, mas como uma expressão extrema de algo inscrito na vida social ordinária, inclusive em democracias estáveis. A pesquisa mostrou que determinados traços apareciam juntos de forma consistente, mesmo em indivíduos sem engajamento político explícito, como etnocentrismo, convencionalismo, superstição, submissão à autoridade do grupo de pertencimento e agressividade moralizada.
O valor da descoberta não estava em diagnosticar fascistas concretos, mas em revelar que existia um padrão de personalidade que podia ser mobilizado em condições políticas propícias. A ameaça não desapareceu com a derrota militar de 1945, mas permanecia viva em disposições latentes capazes de se atualizar a qualquer momento.
A terceira inovação consistiu no desenvolvimento de instrumentos metodológicos inéditos para captar esse padrão. O mais famoso foi um questionário para pesquisas de opinião, a "Escala F" (de fascismo), elaborada em sucessivas versões e combinado a entrevistas clínicas e testes projetivos. O questionário não detectava "fascistas" em sentido estrito, porque não havia grupo de controle de fascistas reais. O que oferecia era algo mais sutil e mais perturbador: a demonstração de que atitudes autoritárias aparentemente dispersas estavam, na verdade, fortemente correlacionadas e formavam uma constelação.
A escala mostrava como elas não se distribuíam ao acaso, mas se reuniam em torno de uma estrutura de personalidade que predispunha ao autoritarismo. A inovação decisiva foi transformar diagnósticos sociopolíticos em instrumentos replicáveis para medir a suscetibilidade de pessoas e grupos ao extremismo autoritário.
A escolha dos termos também foi significativa. Chamá-la de "Escala F" preservava a referência normativa ao fascismo como ameaça concreta, mas intitular o livro "A Personalidade Autoritária" ampliava o horizonte, indicando que não se tratava apenas de estudar o já derrotado fascismo europeu. O conceito de autoritarismo permitia generalizar a investigação e sugeria que regimes semelhantes poderiam emergir em qualquer sociedade.
Setenta e cinco anos depois, o alerta desses autores segue atual. Em todo o mundo, democracias enfrentam a ascensão da extrema direita e de novas formas de intolerância, como o avanço do autoritarismo progressista em nome da defesa de identidades. O livro de 1950 continua a lembrar que as democracias precisam se defender não só de inimigos externos, mas também dos impulsos autoritários que brotam de dentro da vida social e da própria personalidade dos cidadãos. Essa é a sua força duradoura: mostrar que o autoritarismo não é acidente histórico, mas risco permanente.
Democracia claudicante
Afinal, as democracias vivem tempos de erosão? Estão claudicantes? No aclamado Como as Democracias Morrem, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt sustentam que a erosão democrática pode ocorrer de forma gradual e insidiosa, muitas vezes a partir de líderes eleitos que minam as instituições por dentro.
Analisemos.
A ideia de que as democracias estão “morrendo” é complexa e ainda objeto de intenso debate. Embora não haja consenso sobre um colapso iminente, muitos estudiosos apontam para sinais claros de enfraquecimento dos regimes democráticos e para o crescimento de ameaças aos seus pilares. As democracias cambaleiam, não caíram, mas andam trôpegas, como quem sofreu um golpe e tentam, com dificuldade, se manterem em pé. As democracias não morrem, mas adoecem. Na América Latina, a democracia claudica há mais tempo. Após as redemocratizações dos anos 1980, houve grandes expectativas de progresso. Mas o que se viu foi uma bateria de ilegalidades: corrupção endêmica (mensalões, lava-jatos); desigualdade persistente, com milhões vivendo entre o desemprego e a informalidade; crises institucionais, com impeachment e reeleições polêmicas; governos instáveis e populismos de todos os matizes, do bolivarianismo ao ultraliberalismo.
O Brasil é um exemplo claro da democracia claudicante. Sofremos um ataque direto ao processo eleitoral em 2022, com mentiras sobre urnas, tentativas de golpe e culminando nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023; vivemos uma erosão institucional, com ataques ao Supremo, desrespeito ao Congresso e ameaças frequentes à liberdade de imprensa; a política se transformou em guerra cultural, com pauta moralista, ódio nas redes, negacionismo e uso sistemático de desinformação; a desigualdade social persiste, e a população oscila entre a descrença e a raiva.
Nos países que padecem de claudicância democrática, os fatores mais proeminentes são estes: ataques à democracia vindos de dentro do próprio sistema político; ascensão de líderes populistas autoritários; polarização política extrema; desconfiança nas instituições públicas; uso das novas tecnologias como instrumentos de manipulação e desinformação e ameaças à liberdade de imprensa e expressão.
Traduzindo esses pontos em exemplos concretos. Nos EUA, a presidência de Donald Trump demonstrou como a democracia pode ser tensionada internamente, inclusive com ataques diretos ao sistema eleitoral e ao funcionamento das instituições. Em outros países, partidos e líderes com retórica autoritária vêm ganhando espaço, desafiando normas democráticas e tentando corroer instituições de dentro para fora; a polarização extrema dificulta o diálogo entre grupos políticos e sociais, tornando mais árdua a construção de consensos e o avanço de políticas públicas de interesse coletivo.
E mais: a confiança nas instituições — como a mídia, o Judiciário e os Parlamentos — vem diminuindo, alimentando teorias conspiratórias e discursos antissistêmicos; as tecnologias digitais têm sido utilizadas para espalhar desinformação e manipular a opinião pública, distorcendo o debate democrático; por fim, a liberdade de imprensa tem sido ameaçada, enquanto a proliferação de fake news compromete o acesso da sociedade à informação confiável — elemento essencial à democracia.
Apesar desses sinais de alerta, há quem conteste a tese da “morte” da democracia. Muitos argumentam que, mesmo sob pressão, as democracias têm mostrado notável capacidade de resistência. É o caso dos Estados Unidos, onde as instituições sobreviveram aos arroubos autoritários. Em outros países, o engajamento cívico e a vigilância da sociedade civil têm funcionado como antídotos contra retrocessos.
O fato é que a participação ativa dos cidadãos na defesa dos valores democráticos e na busca de soluções públicas fortalece o tecido institucional. A mobilização social e institucional é, portanto, um sinal de resiliência, não de agonia. Steven Levitsky adverte que os Estados Unidos caminham perigosamente para o enfraquecimento democrático. Segundo ele, o país hoje “se parece muito mais com regimes da América Latina do que antes”. Embora não acredite num colapso total, vê em Trump — e no movimento que o cerca — a maior ameaça às instituições democráticas americanas na história recente. Para Levitsky, os EUA têm muito a aprender com os erros e lições vividos por países latino-americanos.
Quanto ao Brasil, o diagnóstico é mais otimista. Não se pode afirmar que a democracia brasileira esteja claudicante. Pelo contrário: há sinais visíveis de vitalidade institucional e social. Destaco alguns pontos: a polarização política, embora preocupante, pode ser interpretada como sinal de vitalidade social e engajamento político da cidadania; os Três Poderes da República seguem funcionando regularmente (as tensões entre eles, longe de significarem disfunção, fazem parte da dinâmica democrática, que pressupõe freios, contrapesos e o respeito ao contraditório); o cidadão brasileiro demonstra crescente interesse pela vida pública, evidenciado no florescimento de movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
São quase um milhão de ONGs no país, muitas voltadas à defesa de causas como os direitos das mulheres, dos negros, dos indígenas, do meio ambiente; as manifestações de rua voltaram com vigor, reunindo expressiva parcela da população — mobilizada por partidos, lideranças e movimentos sociais. Trata-se de uma forma legítima e democrática de expressão.
É inegável que há ameaças e fragilidades. Mas democracia não é obra acabada. Está sempre em construção. Não é uma mera figura de linguagem, é uma tarefa. E, por isso mesmo, exige vigilância constante, disposição para o diálogo e confiança na capacidade de regeneração de seus mecanismos. Ela manca porque foi golpeada, mas continua em pé. Não caminha com firmeza, mas não caiu. E essa aparente fragilidade exige de nós uma atitude: ou a ajudamos a se reerguer, ou a empurramos de vez para o abismo. Ela precisa de reabilitação. Mais do que reformas institucionais, exige reconstrução de confiança, educação cívica, inclusão social e tolerância política. Se está claudicante, cabe a nós sermos suas muletas, seu fisioterapeuta e, quem sabe, seus novos pés.
Gaudêncio Torquato
Analisemos.
A ideia de que as democracias estão “morrendo” é complexa e ainda objeto de intenso debate. Embora não haja consenso sobre um colapso iminente, muitos estudiosos apontam para sinais claros de enfraquecimento dos regimes democráticos e para o crescimento de ameaças aos seus pilares. As democracias cambaleiam, não caíram, mas andam trôpegas, como quem sofreu um golpe e tentam, com dificuldade, se manterem em pé. As democracias não morrem, mas adoecem. Na América Latina, a democracia claudica há mais tempo. Após as redemocratizações dos anos 1980, houve grandes expectativas de progresso. Mas o que se viu foi uma bateria de ilegalidades: corrupção endêmica (mensalões, lava-jatos); desigualdade persistente, com milhões vivendo entre o desemprego e a informalidade; crises institucionais, com impeachment e reeleições polêmicas; governos instáveis e populismos de todos os matizes, do bolivarianismo ao ultraliberalismo.
O Brasil é um exemplo claro da democracia claudicante. Sofremos um ataque direto ao processo eleitoral em 2022, com mentiras sobre urnas, tentativas de golpe e culminando nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023; vivemos uma erosão institucional, com ataques ao Supremo, desrespeito ao Congresso e ameaças frequentes à liberdade de imprensa; a política se transformou em guerra cultural, com pauta moralista, ódio nas redes, negacionismo e uso sistemático de desinformação; a desigualdade social persiste, e a população oscila entre a descrença e a raiva.
Nos países que padecem de claudicância democrática, os fatores mais proeminentes são estes: ataques à democracia vindos de dentro do próprio sistema político; ascensão de líderes populistas autoritários; polarização política extrema; desconfiança nas instituições públicas; uso das novas tecnologias como instrumentos de manipulação e desinformação e ameaças à liberdade de imprensa e expressão.
Traduzindo esses pontos em exemplos concretos. Nos EUA, a presidência de Donald Trump demonstrou como a democracia pode ser tensionada internamente, inclusive com ataques diretos ao sistema eleitoral e ao funcionamento das instituições. Em outros países, partidos e líderes com retórica autoritária vêm ganhando espaço, desafiando normas democráticas e tentando corroer instituições de dentro para fora; a polarização extrema dificulta o diálogo entre grupos políticos e sociais, tornando mais árdua a construção de consensos e o avanço de políticas públicas de interesse coletivo.
E mais: a confiança nas instituições — como a mídia, o Judiciário e os Parlamentos — vem diminuindo, alimentando teorias conspiratórias e discursos antissistêmicos; as tecnologias digitais têm sido utilizadas para espalhar desinformação e manipular a opinião pública, distorcendo o debate democrático; por fim, a liberdade de imprensa tem sido ameaçada, enquanto a proliferação de fake news compromete o acesso da sociedade à informação confiável — elemento essencial à democracia.
Apesar desses sinais de alerta, há quem conteste a tese da “morte” da democracia. Muitos argumentam que, mesmo sob pressão, as democracias têm mostrado notável capacidade de resistência. É o caso dos Estados Unidos, onde as instituições sobreviveram aos arroubos autoritários. Em outros países, o engajamento cívico e a vigilância da sociedade civil têm funcionado como antídotos contra retrocessos.
O fato é que a participação ativa dos cidadãos na defesa dos valores democráticos e na busca de soluções públicas fortalece o tecido institucional. A mobilização social e institucional é, portanto, um sinal de resiliência, não de agonia. Steven Levitsky adverte que os Estados Unidos caminham perigosamente para o enfraquecimento democrático. Segundo ele, o país hoje “se parece muito mais com regimes da América Latina do que antes”. Embora não acredite num colapso total, vê em Trump — e no movimento que o cerca — a maior ameaça às instituições democráticas americanas na história recente. Para Levitsky, os EUA têm muito a aprender com os erros e lições vividos por países latino-americanos.
Quanto ao Brasil, o diagnóstico é mais otimista. Não se pode afirmar que a democracia brasileira esteja claudicante. Pelo contrário: há sinais visíveis de vitalidade institucional e social. Destaco alguns pontos: a polarização política, embora preocupante, pode ser interpretada como sinal de vitalidade social e engajamento político da cidadania; os Três Poderes da República seguem funcionando regularmente (as tensões entre eles, longe de significarem disfunção, fazem parte da dinâmica democrática, que pressupõe freios, contrapesos e o respeito ao contraditório); o cidadão brasileiro demonstra crescente interesse pela vida pública, evidenciado no florescimento de movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
São quase um milhão de ONGs no país, muitas voltadas à defesa de causas como os direitos das mulheres, dos negros, dos indígenas, do meio ambiente; as manifestações de rua voltaram com vigor, reunindo expressiva parcela da população — mobilizada por partidos, lideranças e movimentos sociais. Trata-se de uma forma legítima e democrática de expressão.
É inegável que há ameaças e fragilidades. Mas democracia não é obra acabada. Está sempre em construção. Não é uma mera figura de linguagem, é uma tarefa. E, por isso mesmo, exige vigilância constante, disposição para o diálogo e confiança na capacidade de regeneração de seus mecanismos. Ela manca porque foi golpeada, mas continua em pé. Não caminha com firmeza, mas não caiu. E essa aparente fragilidade exige de nós uma atitude: ou a ajudamos a se reerguer, ou a empurramos de vez para o abismo. Ela precisa de reabilitação. Mais do que reformas institucionais, exige reconstrução de confiança, educação cívica, inclusão social e tolerância política. Se está claudicante, cabe a nós sermos suas muletas, seu fisioterapeuta e, quem sabe, seus novos pés.
Gaudêncio Torquato
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