quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Tratoraço no Brasil

 


O capitalismo da ausência

No dia 3 de janeiro, a Apple se tornou a primeira empresa da história a alcançar o preço de US$ 3 trilhões. A cifra equivale, em números aproximados, ao dobro do PIB brasileiro. É dinheiro – e é dinheiro que não para de crescer. Em um intervalo de 16 meses, o valor da Apple subiu 50%, passando de US$ 2 trilhões para US$ 3 trilhões. A escalada não deixa mais dúvidas sobre o fato de que o centro do capitalismo está nas chamadas big techs, as gigantes de alta tecnologia que têm uma incomparável capacidade de inovação.

Em julho do ano passado, as cinco maiores big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook, que foi renomeada recentemente como Meta) bateram, juntas, o preço de US$ 9,3 trilhões. Agora, valem mais.

Durante a pandemia, com as medidas sanitárias de isolamento, as cinco foram às alturas. Eram as companhias mais preparadas para lucrar com o que se começou a chamar de “trabalho remoto”, e também com o e-commerce, com o e-governe com o home office. Suas ferramentas se tornaram imprescindíveis.


Em abril de 2020, havia 4,5 bilhões de habitantes do planeta, em 110 países, vivendo (ou tentando sobreviver) em regime de lockdown. Entrávamos numa era de virtualidades que não conhecíamos: escolas, mesmo as recalcitrantes, tiveram de se render ao expediente das aulas a distância; escritórios de advocacia de qualquer lugarejo adotaram o home office; serviços públicos começaram a ser oferecidos online e os movimentos da sociedade civil se canalizaram para as plataformas digitais – e tome abaixo-assinados eletrônicos.

Começava ali um período estranho, com trabalhadores trabalhando sem comparecer ao local de trabalho, cidadãos exercendo seus direitos sem estar lá, missas pelo Youtube e namoros pelo Whatsapp. A economia se adaptou muito bem, obrigado. Não veio catástrofe nenhuma nos ditos “mercados”. O que veio, isto sim, foi mais acumulação, mais concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se firmaram como estrelas no capitalismo da ausência.

Estamos vivendo uma mutação social das mais intrigantes. Na Revolução Industrial do século XIX, falava-se em “força de trabalho”. Era essa “força” que o operariado vendia nas linhas de montagem. A “força de trabalho” era uma energia física que tinha como combustível o sangue humano. Com ela, os proletários moviam engrenagens, enroscavam parafusos, empurravam carcaças, pacotes e carrinhos abarrotados de carvão. Hoje, a velha “força de trabalho” parece ter ficado de escanteio. O capital não liga mais para ela, ou, ao menos, não liga tanto. Máquinas robotizadas fazem o serviço, colhem a cana, soldam peças na fuselagem dos automóveis, operam os telemarketings da vida e da morte.

Agora, o interesse do capital tem foco em outros atributos da gente. Não requisita mais a força física, mas o olhar, a imaginação, a atenção, o desejo. Esses atributos já não têm tanto a ver com o corpo, com os músculos e com o esqueleto que nos sustenta, mas com a máquina psíquica. O capitalismo da ausência – com as big techs na vanguarda – desenvolveu fórmulas para explorar as nossas mais recônditas fantasias. Eis porque, com as multidões confinadas, a economia não parou.

O modo de produção em que estamos embarcados consegue extrair valor – a distância – de corpos em estado semivegetativo, prostrados atrás de uma tela eletrônica. Só o que é convocado a entrar em atividade, nos corpos dormentes, é o olhar e as pontas dos dedos. O capitalismo se higienizou. Nunca a ausência física do explorado foi uma solução tão lucrativa.

Mas o grande trunfo das big techs não está no home office, que, aliás, já virou carne de vaca (ou, no caso brasileiro, virou osso de vaca). Hoje, todo mundo diz que trabalha remotamente, inclusive quem não trabalha. O maior diferencial dos grandes conglomerados, como Apple e suas assemelhadas, todas monopolistas globais em seus ramos (ou troncos) de atuação, foi a transformação do consumo em trabalho. No modelo de negócio das gigantes da tecnologia, consumir é trabalhar.

O tal do “usuário”, enquanto pensa usufruir de funcionalidades gratuitas, enquanto imagina se divertir, está trabalhando de graça. É o “usuário” quem “posta” os “conteúdos”, é o “usuário” que, sem saber, fornece de graça todos os seus dados pessoais (que depois serão vendidos a peso de ouro para os anunciantes), é o “usuário” que, com seu olhar, também gratuito, costura as significações e assimila os conteúdos das marcas e das mercadorias. O pobre “usuário” é ao mesmo tempo a mão de obra e a matéria-prima que saem de graça. Depois, no fim da linha, é ele, o “usuário”, que vai ser comercializado. A isso se resume o melhor negócio de toda a história da humanidade.

Se você quiser, pode tentar ser otimista. Pode falar dos prodígios curativos da telemedicina e do conforto de jogar na Mega-sena sem sair de casa. Nada contra. Apenas leve em conta que a sua ausência vem preenchendo grandes lacunas, quer dizer, vem abarrotando de dinheiro virtual muitas burras digitais.

O covarde Bolsonaro

Espumar insinuações sem provas pelo canto da boca e, ao levar uma resposta, recuar, fingir-se de ofendido e se desmentir é uma tática de covarde. Desfilar tanques do Exército para ameaçar as instituições e, diante do fiasco que lhe poderia custar o mandato, pedir a alguém que lhe escreva uma carta de retratação também denuncia o covarde. Fazer-se de macho para meia dúzia de beócios no cercadinho, insultar mulheres repórteres e cercar-se de esbirros, gente dada a violências físicas, igualmente é de covarde.

Jair Bolsonaro não é só o pior presidente da história do Brasil democrático. É também o mais covarde. Sua tática de falar que "ficou sabendo", "ouviu dizer" e "estão dizendo que tem coisa", sem se assumir como quem acredita naquela informação, é de covarde. E sua campanha contra a vacina nunca é feita com afirmativas tipo "A vacina faz mal!" ou "Não se vacinem!". Esconde-se em perguntas que induzem à dúvida e ao medo, como "Quem garante que não vai fazer mal?" ou "Quem se responsabiliza?". Coisa de covarde.

Bolsonaro desfila sem máscara entre multidões, jactando-se de não ter se vacinado. Será? Quem garante? Pode muito bem ter sido vacinado em segredo por seu cúmplice, o ex-médico Marcelo Queiroga, que, pelo menos, ainda deve saber aplicar injeção. Talvez já tenha tomado até a terceira dose. Se seus próprios ministros se vacinaram pelas suas costas, por que Bolsonaro não se vacinaria pelas costas da nação?

Aliás, não sou eu, mas estão dizendo por aí que tem coisa em tudo que Bolsonaro faz pelas costas da nação.

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Cara Catarina Rochamonte. Sobre sua coluna "Os esbirros de Lula" (10/1), em que me atribui o poder de "usar régua de cálculo eleitoral para prejudicar a pré-candidatura Sergio Moro" —e precisa?—, você ficaria surpresa se soubesse por quantos segundos por ano me ocupo de Sergio Moro.

Era da futilidade

A futilidade de tudo o que nos vem da mídia é comandada pela impossibilidade de este palco se manter vazio. Música, spots, flashes, publicidade, informação, filme, loucura – sem alternativa para o preenchimento da tela – senão um vazio sem apelo
Jean Baudrillard, “Cool memories”

Utopia, um dia a gente chega lá


Ela está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.

O uruguaio Eduardo Galeano ouviu esse comentário sobre utopia numa conversa com o cineasta argentino Fernando Birri e o relatou no livro “As palavras andantes”. Utopia, como você lembra,é o clássico do inglês Thomas Morus que descreve uma sociedade fictícia onde não acontece nada de ruim. Utopia é felicidade. Nestes dias de renovação da esperança, o horizonte parece mais perto e a gente volta a crer que é só mais um passo e pronto, aí está a utopia!

Utopia é sonho e sonho cada um tem o seu e caminha com ele. O da moça, desesperada com o desemprego e portando um cartaz no sinal fechado na pista do Lago Sul, em Brasília, é arrumar dinheiro pro aluguel atrasado… A utopia da família protegida da chuva só pela copa da mangueira, como o arremedo miserável de um presépio vivo, ali bem pertinho do Palácio do Planalto, é que algum mago jogue uma coberta qualquer, um brinquedinho pras crianças pela janela do carro (oficial?)…O sonho de felicidade do homem que gritava “é a fome, é a fome” numa quadra residencial da Asa Sul da capital federal era que lhe caísse na cabeça um resto do filé mignon de algum almoço abastado (verba de gabinete?), o dos milhões na fila do auxílio desemprego é ter a carteira profissional assinada de novo, ou pela primeira vez (nem precisa ser um DAS…).

O horizonte de cada um estava bem ali, mas se afastava na velocidade do sinal que abria, da janela que se fechava, do carro que passava, na dureza da frase “não há vagas” e levava a utopia de cada um…

Todo dia, toda hora, somos obrigados a dar mais um passo no caminho dessa vida melhor. A busca da Utopia é trabalho pra todos nós. Se andarmos juntos, ela, um dia, não nos escapa. Me atrevo, aqui, a uma receita:

Primeiro, misture suas aspirações com as de seus amigos, parentes, colegas de trabalho e de toda a sua comunidade. Tempere com a suavidade da liberdade, com o gosto forte da verdade, elimine o ardor da intolerância, o amargo da corrupção e leve tudo ao calor das ruas. Vá adicionando o melhor de cada sonho encontrado…Mas, importante: não desista, nunca, desse caminhar no rumo da Utopia. 2022 chegou. Hora de dar mais um passo na busca do Brasil mais livre, mais solidário, mais igual. Feliz Ano Novo. Vote bem em 2022!

Muito dinheiro para os ‘bem atendidos’

A entrevista que o presidente Jair Bolsonaro concedeu à Rádio Jovem Pan na terçafeira passada serviu para, mais uma vez, evidenciar o seu despudor em afrontar os princípios republicanos mais comezinhos e indicar uma das razões, talvez a principal, pelas quais alguém tão despreparado como ele – administrativa, intelectual e moralmente – siga inabalável no exercício da Presidência da República, a despeito de todos os crimes de responsabilidade que cometeu, descritos em mais de uma centena de pedidos de impeachment, e de todos os males que vem infligindo ao País desde que tomou posse.

Sob seu governo, avaliou Bolsonaro, o Congresso está “muito bem atendido”. Primeiro, é preciso reconhecer que o presidente não mentiu. Aí está o volume recorde de liberação de emendas parlamentares ao longo desses três anos de mandato a comprovar a afirmação, especialmente as emendas do relator-geral do Orçamento, tecnicamente conhecidas como RP-9. No entanto, é preciso deixar claro o que Bolsonaro entende por “muito bem atendido” e, principalmente, em que bases se dá esse “atendimento”.

“Hoje em dia, todos estão ganhando”, afirmou o presidente à rádio, em referência aos deputados e senadores. “Além das emendas impositivas, por volta de R$ 15 bilhões por ano, tem uma outra forma de conseguir recurso, que é a RP-9. E só em RP-9”, prosseguiu Bolsonaro, sem manifestar qualquer sinal de constrangimento, “os parlamentares têm quase o triplo de recursos do Ministério da Infraestrutura, do (ministro) Tarcísio (Gomes de Freitas). Então, o Parlamento está muito bem atendido conosco.”

É muito dinheiro, mas não é verdade que “todos estão ganhando”. A liberação de emendas RP-9 contempla primordialmente os parlamentares que compõem a base de apoio ao presidente no Congresso, como revelou o Estado em uma série de reportagens que, desde maio do ano passado, tornaram público o chamado “orçamento secreto”. A distribuição dessa bilionária soma de recursos públicos por meio de emendas RP-9 é feita sem levar em consideração critérios técnicos, sem transparência e, sobretudo, sem equidade entre os congressistas. Na prática, o governo dividiu os parlamentares em dois grupos: os de “primeira classe”, que apoiam o governo, e o resto.

Em português cristalino, “orçamento secreto” é compra de votos no Congresso. Não sem razão, a prática espúria “estarreceu” ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) e levou a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), a suspender, em um primeiro momento, o pagamento das emendas RP-9, classificadas por ela como um instrumento que “se distancia dos ideais republicanos” e que é operado “sob o signo do mistério”. Contudo, pouco tempo após manifestar “perplexidade” diante do pagamento das emendas RP-9, a ministra liberou a execução dos repasses a pedido dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ambos prometeram à ministra dar transparência aos acordos que viabilizam o pagamento das emendas, como se não estivessem obrigados pela Constituição a fazê-lo. Mas, até agora, não honraram a palavra empenhada.

A entrevista de Bolsonaro foi uma aula de desfaçatez. Mas ele não está sozinho na subversão dos “ideais republicanos” mencionados pela ministra Rosa Weber. Há neste Congresso “muito bem atendido” quem se disponha a se apropriar de recursos do Orçamento para satisfazer interesses eleitorais ou financeiros muito particulares. Não se sabe quais exatamente por não haver transparência em relação às transações. Se são legais e republicanas, por que o sigilo? A dúvida singela, não respondida até hoje, abre espaço para dúvidas muito razoáveis sobre a higidez de todo o processo que cerca as emendas de relator-geral.

Malgrado ser o presidente que mais liberou emendas parlamentares desde 2003, Bolsonaro foi o que menos conseguiu aprovar projetos de sua iniciativa no Congresso. É evidente que o “atendimento” prestado por Bolsonaro a um grupo de parlamentares – e não ao Congresso – se presta, fundamentalmente, a garantir sua sustentação política no cargo para que ele siga fingindo que governa o Brasil sem ser incomodado.