quinta-feira, 21 de julho de 2016

Exagero do bem

Funcionários estavam roubando comida dos estoques e do restaurante estudantil da Universidade Federal de Viçosa. Isso mesmo: pacotes de arroz, sacos de batatas, latas de suco etc. E já que estavam com a mão na massa, levavam também para suas casas rolos de papel higiênico e produtos de limpeza. Mixaria, entretanto. Tudo somado, a Polícia Federal calcula que o roubo era de R$ 2 milhões ao ano, desde 2008 — logo, um assalto de R$ 16 milhões. Comparado com os números do petrolão, é dinheiro de troco. Mesmo assim, a Polícia Federal fez uma operação pesada. Às 6 da manhã de ontem, 70 agentes federais, com aquelas camionetes pretas, entraram no campus para cumprir mandados de prisão e outros de condução coercitiva. Já traziam funcionários apanhados em suas casas.

A operação, também ao estilo clássico da PF, ganhou um nome, “Recanto das Cigarras” — um aprazível lugar do campus, onde provavelmente os ladrões de comida descansavam à sombra, chupando um picolé do estoque.

Dirão: exagero da PF. Afinal, são delinquentes do baixo escalão, levando coisa pouca, não tinham como fugir, para que todo aquele espalhafato?

Mas reparem: os caras roubavam a comida subsidiada dos estudantes de uma universidade pública. Levavam dinheiro do contribuinte de duas formas, no salário e no assalto. Pagos para prestar serviço público, levavam arroz do povo para suas casas, nos porta-malas de seus carros, estacionados de graça ao lado dos depósitos.

O que pode ser mais exagerado?

Políticos sob suspeita, políticos com medo, não estão preocupados com roubo de comida. Mas estão dizendo que a força-tarefa da Lava-Jato exagera nas suas operações e vai além dos limites nos seus métodos.

E ficaram horrorizados com as Dez Medidas Contra a Corrupção, um conjunto de leis proposto pelo Ministério Público Federal e encaminhado ao Congresso Nacional com 2,5 milhões de assinaturas. O pacote tem um objetivo determinado: endurecer o combate à corrupção.

Em vez disso, o presidente do Senado, Renan Calheiros, anunciou a disposição de colocar em votação o quanto antes um outro projeto, que define e pune diversas modalidades de abuso de autoridade.

Define como abuso, por exemplo, “ofender a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem da pessoa indiciada em inquérito policial”.

Parece fazer sentido, mas esses tipos de ofensa já estão previstos na lei. Ninguém pode fazer aquelas coisas, muito menos sendo uma autoridade.

Ou seja, considerado o momento, aquela definição vem a calhar para criminalizar as espalhafatosas operações da PF. Setenta agentes da PF para prender dois ladrões de comida em suas casas, na frente de seus familiares? Ou para prender um ex-ministro na frente de seus filhos? Ou um pacato empresário? Ou um eleito pelo povo?

Sim, há abuso de autoridade no Brasil. Por exemplo: em greve, auditores fiscais da Receita Federal retêm mercadorias importadas e, com isso, impõem prejuízos a pessoas e empresas. Outro: deputados e senadores que usam a autoridade de seus cargos para afastar a ação da polícia e da Justiça. Se não fosse senador, Renan Calheiros conseguiria adiar por anos o desfecho dos seus vários inquéritos e processos? Até conseguiria, se tivesse dinheiro para bons advogados.

Charge O Tempo 20/07/2016

Pesquisas mostram que o criminoso, tirante os casos passionais, claro, sempre calcula a relação custo/benefício. Quanto menor a chance de o cara ser apanhado, maior a criminalidade.

O Brasil é prova disso. A corrupção vai dos bilhões da Petrobras ao roubo de comida na universidade de Viçosa. E a impunidade não é só para os casos de assalto aos cofres públicos. Leis e práticas processuais favorecem amplamente qualquer acusado ou réu que possa pagar por uma boa defesa.

Na ditadura militar, a autoridade oprimia a sociedade civil de maneira ampla e irrestrita. A polícia prendia sem mandado. O governo censurava a imprensa, fechava o Congresso, editava leis. Reclamar de qualquer agente público era uma temeridade.

Na virada para a democracia, tratou-se de garantir a liberdade e os direitos do indivíduo. O que tinha mesmo que ser feito.

Mas algo deu errado. De um lado, há flagrantes abusos de autoridade, especialmente contra os mais pobres e os desprovidos de poder. De outro, criminosos de alto escalão têm infinitos meios de escapar da Justiça.

Os exageros da Lava-Jato permitiram apanhar alguns desses criminosos e, sobretudo, expuseram as falhas do sistema.

O momento é de endurecer o combate à corrupção.

Carlos Alberto Sardenberg 
Pokemon go chega ao brasil congresso corrupton go celular B

A lição do papeleiro

A rua Salvador França, em Porto Alegre, forma uma rampa acentuada ao se aproximar da avenida Protásio Alves. Há poucos dias, em hora de tráfego intenso, eu andava por ali, lomba acima. A lentidão do trânsito evidenciava haver, adiante, algum obstáculo na pista. De fato, pouco além, avistei um carrinho de papeleiro, muito carregado e com volumosos excessos laterais. A carga era tão desproporcional que me interessei em ver como se fazia a tração de todo aquele peso. Um cavalo? Dois homens? Não. Era um homem só, e bem magro. Puxava sua carga caminhando de costas, fazendo o maior uso possível do próprio peso, jogando-se para trás.

Ao ultrapassá-lo, senti vontade de parar, descer e expressar àquele ser humano meu reconhecimento ao valor moral que transmitia. Mas seria impraticável em meio ao tráfego. Decidi que o faria aqui, narrando o fato e traduzindo em palavras a silenciosa lição que proporcionava.

A mesa do papeleiro é pobre e pouca. Há frestas em sua insalubre moradia. Agasalho escasso, extenuante o trabalho. Não conhece férias e não recebe hora extra. Bem perto de onde mora está o traficante com dinheiro no bolso e correntes de ouro no pescoço. Se é de justiça tratar desigualmente os desiguais, a tolerância e a indulgência, em nome da luta de classes, para com os crimes praticados por indivíduos supostamente pobres são uma ofensa ao papeleiro da Salvador França. Todo modo de ver a lei penal como lei do "opressor" contra o "oprimido", todo garantismo que assumidamente desprotege a sociedade são ofensivos ao seu trabalho honesto.

Assumindo como ganha-pão uma tarefa de tração animal, ele ensina o quanto a vida, mesmo comprometida diariamente com penosa rotina, pode ser dura sem deixar de ser humana e digna. Enquanto, naquele dia, arrastava sua carga ladeira acima, o papeleiro esbofeteava, sem saber, a face de cada corrupto e de cada corruptor. Ensinava a quantos fazem e aplicam a Lei, que a pobreza a merecer proteção social e institucional é a pobreza do homem bom, nunca - nunca! - por si mesma, a pobreza do malfeitor, do traficante, do ladrão, do homicida, do estuprador (que até estes voltam rapidamente às ruas!). Degenerado é degenerado, criminoso é criminoso, independentemente do extrato de renda. O lugar de quem vive do crime é a cadeia, senhores.

Por isso, falando em nome de muitos, de poucos ou apenas no meu próprio, gostaria de conhecer a natureza do delito que certos homens da Lei nos imputam, leitor. Ao dar liberdade a quem tem que estar preso, esses falsos justiceiros condenam todos os demais à insegurança e à restrição da liberdade. Escrevam o que pensam, senhores! Sustentem suas teses marxistas abertamente nos jornais! Venham à luz do dia com suas doutrinas! Não se escondam nas páginas dos processos, nas dissertações acadêmicas e nos conciliábulos dos que pensam igual! Afinal, desarmados pelas exigências que cercam a posse de qualquer arma, agora estamos encarcerados por grades de proteção e temos as mãos contidas pelas algemas da impotência cívica.

Percival Puggina

A resistência que começou pequena sempre foi gigantesca na audácia de simplesmente existir

É preciso formalizar a instalação de Dilma – a criatura oligofrênica de um jeca, ambos novidades nefastas nascidas política e moralmente senis – entre as lembranças amargas de um passado que ainda lateja em coágulos na academia, na imprensa recalcitrante em enxergar o país real e demais consciências na cegueira incurável a respeito do modo, da profundidade e da extensão com que o lulopetismo desgraçou o Brasil.

Que assim permaneçam, não defendo a cura dessa gente toda, pois a existência do contraditório, mesmo sombrio, é importante para nos impedir de esquecer que o combate deve ser permanente e a vigilância constante, cotidianos ambos, para que o futuro se confirme e o passado seja somente memória. Um passado que ainda frutificará por muito tempo, mas, não sei se por índole, formação, escolha consciente ou tudo isso, gosto de pensar que temos mais a celebrar diante de tanto a lamentar.


A resistência – que, como quase tudo na vida, começou pequena, mas só em participantes, pois ela sempre foi gigantesca na audácia de simplesmente existir – de tão poucos foi tomando o país, multiplicou-se e obteve o que há menos de dois anos parecia impossível: mais do que o impeachment, o fortalecimento da Lava Jato, a ruína de Lula e do PT, a revelação da cornucópia de comparsas ou a prisão de muitos deles, o país parece ter se dado conta de que só pode contar consigo, que a força da indignação faz diferente quando posta em movimento. Isso educa gerações.

Não sei se tinha de ser tão doloroso, só sei que assim foi ou está sendo; e o país aprendeu mais a respeito de si e desmistificou talvez a última vertente do nefasto legado getulista numa cópula maldita e inaudita com o esquerdismo mais obscuro. Em meio à contabilidade dos danos, dos dramas pessoais que a crise econômica gerou, das imperfeições do governo Temer e de tanto que há por fazer, volto dia 31 à Paulista para continuar reivindicando, mas sobretudo para comemorar as novas luzes que, sim, revelam os vincos profundos de um país tão maltratado, mas iluminam o que era sombra até ontem.

Lava Jato e Santo Amaro da Purificação

Santo Amaro fica na Bahia. É a cidade de Dona Canô, Caetano Velloso e Maria Bethânia. E, por isto, lhe seremos eternamente gratos.

Mas o que Santo Amaro tem a ver com Lava Jato? Nada, aparentemente. E aparentemente tudo.

Santo Amaro, como o Brasil, e sete outros municípios baianos foram, e têm sido, vítimas de fraudes e corrupções nas licitações. Estima-se que pelo menos vinte milhões de reais tenham sido desviados segundo o jornal A Tarde, de Salvador.

Nos últimos tempos, uniram-se Ministério Público estadual, Judiciário, Polícia Federal e Polícia civil e desencadearam duas operações. A primeira a Operação Adsumus e em seguida a Operação Burla.

Na primeira, cinco pessoas foram presas preventivamente e nove mandados de busca e apreensão foram cumpridos. Na segunda, três mandados de prisão e 15 mandados de busca e apreensão.

O que tudo isto quer dizer?

Pelo menos três observações são pertinentes. Primeiro, que as fraudes reveladas por Lava Jato são indicadores do que ocorre nas relações entre governos e empresas em muitos brasis.

Segundo, o tema da corrupção provavelmente vai ser municipalizado nestas eleições agora de outubro. Deve influenciar os eleitores, que serão capazes de ver a reprodução destes esquemas em suas cidades também.

Terceiro, o modelo de atuação Lava Jato, que une Ministério Público, Policias, CGU, Tribunais de Contas, e Judiciário, é replicável em todo o país. Com apoio da liberdade de imprensa e conscientização da opinião publica. O mesmo tipo de atuação.

Ou seja, Lava Jato pode acabar e deve em algum dia. Mas um novo modelo de combate à corrupção tipo Curitiba deve permanecer. É replicável. A favor da concorrência transparente entre empresas fornecedoras e prestadoras de serviços ao governo e da responsabilização de políticos, empresários e funcionários. A favor da moralidade da administração pública e da concorrência leal.

Cieps para inglês ver e estudar

Há quatro anos o governo britânico lançou o programa Building Schools for Futures (Construindo Escolas para o Futuro), que pretendia suprir o déficit de salas de aula na Inglaterra com a construção em larga escala de escolas pré-moldadas econômicas e de rápido processo construtivo. O plano do então secretário de educação, Michael Gove, gerou uma intensa polêmica entre os arquitetos ingleses, que viam com desconfiança a ideia de serem produzidas escolas padronizadas com um design inferior e despersonalizado.

Enquanto os empreiteiros se apressaram a apresentar ao governo projetos de kits pré-moldados baratos, ao custo de 1.465 libras (cerca de 1.950 dólares) o metro quadrado, o Royal Institute of British Architects (RIBA) desafiou os arquitetos ingleses a buscarem alternativas para oferecer um projeto escolar de alto padrão de design, pois os modelos até então propostos, segundo eles, equivaliam a galpões que, além de desconfortáveis, dificilmente poderiam ser adaptados a terrenos acidentados.


David Chambers e Kevin Haley, diretores do conceituado escritório londrino de arquitetura e design Aberrant Architecture, vieram, então, ao Brasil buscar inspiração nos Centros Integrados de Educação Pública, construídos no Rio de Janeiro nos anos 80 e 90, durante os dois governos de Leonel Brizola, com projeto educacional de Darcy Ribeiro e arquitetônico de Oscar Niemeyer. Para eles, aquele seria o modelo ideal de escola pública a ser adotado pelo Reino Unido.

A pesquisa realizada por eles resultou em uma impressionante apresentação, com a exibição de réplicas em miniatura dos 508 Cieps construídos no Brasil, contendo seus nomes e localizações, dentro da exposição “Venice Takeaway: Ideas to Change British Architecture” (Veneza Takeaway: Ideias para Mudar a Arquitetura Britânica), realizada pelo British Council para a Bienal de Arquitetura de Veneza de 2012.

No ano seguinte a exposição foi montada no próprio RIBA, no coração de Londres, com grande destaque na imprensa britânica, e agora a pesquisa dos dois arquitetos foi transformada em livro (Wherever You Find People: The Radical Schools of Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro and Leonel Brizola) a ser lançado no final deste ano.

O programa de construção de escolas do governo britânico ainda não deslanchou por conta de dificuldades políticas, mas alguns dos conceitos dos Cieps já foram aplicados em uma escola de ensino fundamental do Leste de Londres, a Rosemary Works, cujo projeto de reforma foi assinado pela Aberrant Architecture. Sabotados pelos governos que sucederam Brizola no Estado do Rio, desprezados pela mídia e pelas elites brasileiras, os Cieps conquistam, enfim, 31 anos depois de lançados, o reconhecimento internacional como um dos mais extraordinários programas educacionais já realizados no mundo.
O blog Toda Palavra entrevistou com exclusividade um dos sócios da Aberrant Architecture para saber por que um projeto de mais de 30 anos, concebido para ser executado em um país tropical marcado por grandes desigualdades sociais e por um baixo padrão de educação pública seria adequado para um país europeu como a Inglaterra. Admitindo que os britânicos também possuem problemas sociais a serem enfrentados, David Chambers destaca a importância da boa arquitetura a serviço da educação.

“Ficamos fascinados ao descobrir que a padronização no Brasil teve como objetivo estender o alcance da arquitetura de alta qualidade para todos. A maioria dos Cieps ficavam em áreas pobres, onde não havia uma boa infraestrutura pública. Então eles assumiram um papel cívico maior”, diz Chambers.

“Os playgrounds cobertos, por exemplo, tornaram-se praças públicas essenciais. Era fundamental que eles fossem além do papel de uma escola: todo o programa preconizava o uso da arquitetura a favor de uma nova filosofia educacional.”

Para o arquiteto inglês não haverá dificuldades em adaptar o projeto do calor dos trópicos para o rigoroso inverno europeu. Ele lembra que isso aconteceria aqui mesmo no Brasil, caso Brizola tivesse chegado à Presidência da República e realizado o seu plano de espalhar 10 mil CIEPs pelo Brasil, pois muitas dessas escolas seriam instaladas em regiões de clima mais temperado, como o Sul do país. David Chambers prefere destacar a robustez dos edifícios, que, segundo ele, estão resistindo bravamente ao tempo e ao abandono.

“Claramente o design tem sido extremamente resistente ao longo do tempo. Construções escolares às vezes sofrem com mudanças sucessivas de administração e por falta de manutenção e de recursos. Mas a alta qualidade do design e da construção tem permitido aos Cieps manterem boa aparência e permanecerem robustos até hoje.”

Luiz Erthal