quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Nosso caro vice-presidente

Em quatro anos como vice-presidente nominal de um governo que, se pudesse, o confinaria no armário das vassouras, Hamilton Mourão apareceu centenas de vezes na TV. A cada barbaridade cometida por Jair Bolsonaro, a imprensa mandava uma equipe à porta do Palácio do Jaburu para ouvir Mourão. E Mourão estava sempre chegando de algum lugar. Descia do carro oficial, abotoava o paletó e, indagado sobre a dita barbaridade, minimizava-a, esfriava-a com descansada displicência e dizia que era aquilo mesmo, coisa banal, sem importância.

Em suas crônicas, Nelson Rodrigues se maravilhava com a impassibilidade de certas pessoas. Um dia, referindo-se a um político estilo Mourão, Nelson escreveu: "Se, num jantar, servirem-lhe ratazana ao molho pardo, ele encarará o prato com a maior naturalidade. E ainda perguntará se não têm uma pimentinha". Mourão fez parecido: digeriu sem reclamar os inúmeros sapos à milanesa que Bolsonaro lhe serviu em forma de desprezo e desrespeito.


Mas Mourão não tinha por que reclamar. Depois de 40 anos encarando a boia do quartel, a Vice-Presidência foi-lhe um maná. Sabe-se disso agora com a abertura do seu cartão corporativo, aquele que paga as despesas das autoridades com o nosso dinheirinho. Em quatro anos, Mourão devorou R$ 4.195.038, 16. Nada mal para quem, como vice-presidente, já tinha casa, comida, roupa lavada, serviçais, gasolina, aviões e hotéis pagos, além de 40 seguranças.

Purgando o longo tempo perdido, nosso caro Mourão prestigiou delicatessens, confeitarias, peixarias, padarias e adegas gourmet. Um almoço no chiquérrimo Gambrinos, em Lisboa, custou-lhe —custou-nos— R$ 1.043,00. E foi um fiel cliente de lojas de móveis, de manutenção do lar, material esportivo, bicicletas e até de sementes, mudas e insumos.

Para Mourão, os indígenas, de que ele se diz originário, são "indolentes". Pelo visto, há exceções.

A ditadura moderna: o capitalismo

A diferença (entre a ditadura convencional e a do capitalismo) é que não é a ditadura como nós conhecemos. É o que eu chamo de ‘capitalismo autoritário’. A ditadura tinha cara, e nós dizíamos é aquele, ou aqueles militares, o Hitler, o Franco, o Pinochet, mas agora não tem cara. E como não tem cara não sabemos contra quem lutar. Não há contra quem lutar. O mercado não tem cara, só tem nome. Está em toda parte e não podemos identificá-lo, dizer ‘eis tu’. Mesmo as pessoas que lutaram contra a ditadura, entrando na democracia acham que não têm mais que lutar. E os problemas estão todos aí. O mercado pode se tornar uma ditadura

José Saramago, "As palavras de Saramago"

Quo vadis, povos indígenas do Brasil?

As cenas de crianças yanomami desnutridas e doentes são chocantes. Assim como as imagens aéreas que mostram a destruição causada pelos garimpeiros na Terra Indígena (TI) Yanomami, no extremo norte do Brasil, na fronteira com a Venezuela. São feridas humanas e ambientais que vão levar tempo para sarar.

Há alguns anos, visitei a TI Yanomami a convite de Davi Kopenawa, líder desse povo e um lutador ferrenho pela salvação da sua gente. Passamos uns dias na aldeia de Davi, para fazer reportagens para a mídia alemã. Ficou clara a vulnerabilidade dos yanomami. O rio que passa perto da aldeia serve para beber e para se lavar, e quando o mercúrio dos garimpos contamina essas águas, a vida de todos corre perigo instantaneamente.

Davi, que passa parte do tempo em Boa Vista, onde fica o escritório de sua organização, a Hutukara, conhece bem o modo de vida do "homem branco". E sabe do perigo que a vida moderna representa para seu povo. Andando por Roraima, vi grupos de yanomami vivendo perto de cidades. Longe de suas roças, passavam fome, e alguns estavam alcoolizados depois de terem recebido cachaça em supermercados da região.


É uma linha tênue a entre manter a própria cultura e a própria sanidade e se perder no mundo dos outros. Com o avanço cada vez mais floresta adentro da cultura do "homem branco" na Amazônia, fica a questão de como preservar o modo de vida dos indígenas. O que será deles? Qual o seu lugar na sociedade brasileira, que avança com violência contra humanos, animais e o meio ambiente naquela fronteira agrícola?

Até mesmo boa vontade pode causar danos, sem querer. A inclusão de povos indígenas em programas sociais como o Bolsa Família pode ter consequências desastrosas para os indígenas. Vi, em São Gabriel da Cachoeira, cenas tristes de indígenas que, uma vez por mês, viajavam de canoa até a cidade para pegar o dinheiro que o governo lhes oferecia.

Eram as mulheres que ficavam na fila do dinheiro por um ou dois dias, enquanto alguns dos homens se perdiam nas coisas da cidade, principalmente na bebida. Uma parte do dinheiro era gasta com fraldas descartáveis e roupas e brinquedos de origem chinesa e de baixa qualidade. Enquanto viajavam para as cidades, não podiam cuidar das suas roças. E com o título de eleitor em mãos, viravam alvo de políticos e suas promessas eleitorais. Assim, os indígenas enfraqueciam aos poucos a própria cultura.

Claro que é apenas da conta deles mesmos decidir como querem viver no futuro. Mas qual será o espaço que a sociedade lhes oferecerá?

Até Lula, que criou um ministério só para os povos indígenas, já deixou claro que não quer transformar a Amazônia, onde vivem mais de 25 milhões de pessoas, num "santuário da humanidade". É a ideia de que precisa haver "progresso" para garantir um futuro viável e sustentável.

Como será esse caminho proposto? Não sei. Mas me parece claro que os yanomami escaparam por pouco. Mais quatro anos de governo Bolsonaro teriam sido fatais para eles. Agora, os garimpeiros serão expulsos da TI Yanomami. Eles já estariam a caminho das Guianas, segundo a imprensa, onde devem causar mais estrago.

É bom ver as autoridades brasileiras retomarem um trabalho sério de fiscalização ambiental, depois do desmonte sob Bolsonaro. Mas temo que haja mais destruição pela frente e acredito que não será fácil salvar a Amazônia e seus povos originários. O que será deles?