quinta-feira, 26 de maio de 2022

As Forças Armadas e o momento político nacional

Um ano após o ataque de apoiadores trumpistas ao Congresso dos EUA, contestando o resultado da eleição que, estimulados pelo então presidente, julgavam fraudada, um general norte-americano publicou artigo no Washington Post manifestando preocupação com o dia seguinte das eleições presidenciais em 2024 e a ameaça de divisão entre os militares, o que poderia pôr em risco a democracia no país.

Não afastando a possibilidade de contestação dos resultados da eleição e de um golpe de Estado, o militar apontou para o risco de confrontação no interior das Forças Armadas (FA) e a eventual quebra da hierarquia para respaldar essa diferente visão. Todos os militares juram respeitar a Constituição, mas numa eleição contestada, com lealdades divididas, alguns poderão seguir as ordens do comandante-em-chefe e outros, o comando trumpista. Como exemplo, mencionou a recusa da Guarda Nacional em acatar pedido do presidente Biden para que todos os seus membros se vacinassem. Com o país muito dividido, as FA e o Congresso deveriam tomar medidas para prevenir qualquer tentativa de insurreição e adotar providências cautelares, observou.

O alerta do militar norte-americano sobre a ameaça à quebra dos valores democráticos nos EUA, a partir de uma ação política das FA, não poderia ser mais atual para o cenário político brasileiro. A descrição feita pelo militar muito se assemelha a uma série de atitudes que colocam as FA brasileiras no centro do debate político nacional.


A gradual profissionalização das FA nos últimos 35 anos está sendo testada nos dias que correm. No atual governo, surgiu uma situação diferente dos governos anteriores desde 1985. Desde o período de governos militares, nos últimos 30 anos, podem ter surgido tensões esporádicas, mas atualmente elas se acentuaram a partir da participação de grande número de militares da ativa e da reserva em cargos públicos no governo federal. A crescente exposição dos militares no governo, com acusações de corrupção, de ameaça à democracia e de contestação das urnas eletrônicas e das ações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), está causando um forte desgaste à imagem pública das Forças Armadas. Os acontecimentos do 7 de setembro, com o silêncio eloquente dos comandantes militares, contudo, reafirmaram o papel profissional e constitucional das FA. A politização das Polícias Militares estaduais preocupa, em especial se apoiarem pessoas armadas, não militares, passíveis de reforçar um movimento de apoio ao presidente, porque poderão se chocar com as FA.

Nas últimas semanas, afirmações de que as Forças Armadas não assistirão passivamente ao pleito, de que as FA deverão fazer apuração paralela da votação, por questionar o sistema de urnas eletrônicas e a lisura das apurações (auditoria privada), e o pedido do ministro da Defesa para a divulgação das sugestões de aprimoramento da eleição apresentadas pelos militares, sobre a função das FA (“o permanente estado de prontidão das Forças Armadas para o cumprimento de suas missões constitucionais”) parecem reforçar a ideia de que as FA poderiam desempenhar um papel de poder moderador, à luz do artigo 142 da Constituição, quando, na realidade, não há uma nova missão para as Forças Armadas além daquela definida pela Carta Magna, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Apesar da dubiedade de afirmações sobre a preservação da democracia, sobre eleições conturbadas, sobre ato de força que ponha em risco as instituições (“só Deus me tira daquela cadeira”) e parcialidade do TSE, não há sinais de que as FA, como instituição, poderão se engajar numa aventura que ameace as eleições e a democracia. A discrição da maioria das lideranças militares, em especial do Alto Comando, parece indicar que os militares deverão se manter dentro de seu papel de instituição de Estado, profissional, sem interferência política em apoio de partidos ou grupos políticos ou em decisões tomadas pelas instâncias civis competentes.

Assim, não me parece haver ameaça à realização das eleições nem ações violentas antes de 2 de outubro, mas o roteiro que está sendo traçado indica que, dependendo do resultado da eleição, é real o risco de, no dia 2, haver mobilização de grupos radicais, armados, para tentar atacar o STF ou o TSE, não o Congresso, como no caso dos EUA. De qualquer forma, a sociedade civil, o Congresso e as próprias Forças Armadas devem estar atentos e mobilizados para evitar qualquer tentativa de ameaça à democracia.

As eleições brasileiras estão despertando crescente atenção no exterior também pela presença dominante de dois políticos que, por razões diferentes, despertam fortes reações e apreensão sobre as perspectivas políticas e econômicas do País. A preocupação com a preservação da democracia e a condenação do autoritarismo estão muito presentes hoje num cenário de grande instabilidade global e de crescente confronto entre os dois regimes de governo representados pelos EUA e por China/Rússia.

Não tenho dúvida de que, se houver qualquer quebra das regras democráticas com o apoio das Forças Armadas, a reação vinda de fora será imediata e o Brasil poderá ser alvo de sanções econômicas e comerciais que, além de aumentar o isolamento internacional do País, afetarão ainda mais o crescimento e os setores mais dinâmicos da economia nacional.
Rubens Barbosapresidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)

Chamem Josué de Castro, que a fome voltou

Minutos antes de receber uma das maiores premiações mundiais da época, Josué de Castro perdeu a voz. Teve um terrível acesso de tosse e não conseguia falar. Estava na cerimônia de entrega do Prêmio Internacional da Paz, que lhe fora concedido pelo Conselho Mundial da Paz, entidade sediada em Helsinque (Finlândia), onde se realizava o evento, em 1954. Após muito custo, ele insistiu em dizer algumas palavras. Foi o discurso mais curto que todas as autoridades presentes já tinham escutado. Josué de Castro conseguiu falar apenas uma frase:

- 'O primeiro direito do homem é o de não passar fome' -, ele disse, e sentou-se, exausto, sob palmas.

Pernambucano do Recife, onde nasceu em 1908, Josué foi a personalidade mais importante do século 20 no estudo da fome e na ação contra suas consequências. “Ele foi um gênio. Deveria ter um monumento em cada cidade do Brasil, porque é um dos maiores pensadores do século 20”, afirma o sociólogo suíço Jean Ziegler, relator da ONU para o direito à alimentação entre 2000 e 2008, professor da Universidade de Genebra e da Sorbonne e autor de vasta obra sobre a fome no mundo.

No momento em que o Brasil está sob ameaça de volta ao Mapa da Fome da ONU (da qual havia saído em 2014) e que o caso de uma criança que desmaiou de fome numa escola em Brasília ganha repercussão nacional, é momento de lembrar Josué de Castro. Na hora em que acaba de ser divulgado relatório da ONU mostrando que o flagelo voltou a aumentar no mundo após 10 anos, é hora de tornar a Josué de Castro.

Foi a partir de dois livros que o seu nome ganhou repercussão nacional e internacional. O primeiro, Geografia da Fome, de 1946, sobre o Brasil; o segundo, Geopolítica da Fome, de 1951, sobre a mesma questão, só que agora em escala mundial. “Este livro foi uma revelação para os europeus”, disse Jean Ziegler. O raciocínio que consolidara no Brasil, a partir da obra de 1946, ele expandia para o mundo: a causa da fome não se devia a caprichos da natureza, mas a -- vamos chamar assim -- caprichos da política.

“O autor brasileiro mais lido e comentado no mundo inteiro”, dizia matéria da Folha de S. Paulo (então chamada Folha da Manhã) na edição de 15 de setembro de 1951. “No pós-guerra, todas aquelas instituições criadas ao abrigo da ONU para melhorar o mundo tinham como guru máximo Josué de Castro”, atesta Ignacy Sachs, um dos principais pensadores da atualidade sobre o desenvolvimento sustentável.

Josué foi indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel: em 1953, 1963, 1964 e 1965 (em todas, para o da Paz, segundo os arquivos da premiação. Alguns autores mencionam uma indicação para o de Medicina, mas esta não consta nos arquivos). Ganhou o Prêmio Franklin Roosevelt, da Academia de Ciência Política dos Estados Unidos e recebeu a Grande Medalha de Paris, quando teve seu trabalho comparado (pelo pioneirismo) ao de Pasteur e Einstein, dois outros cientistas que também haviam recebido a premiação.

Uma das principais características dele era que combinava a reflexão com a ação. Elegeu-se deputado federal por Pernambuco em duas ocasiões (1958 e 1962). Foi presidente da FAO (Organismo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), sendo o primeiro latino-americano a ocupar o cargo, no qual ficou por dois mandatos, de 1952 a 1956. Criou em 1957, junto com personalidades internacionais, a Associação Mundial de Luta contra a Fome (Ascofam), a primeira entidade internacional de combate ao problema, e presidiu a primeira Campanha de Defesa Contra a Fome, promovida pela ONU, em 1960.

O que Josué dizia já nos anos 1950/1960 permanece atual: o problema não é de falta de alimentos. Eles existem. O problema é o acesso das populações a esses alimentos. Voltemos ao sociólogo suíço, em entrevista a Leonardo Cazes, publicada na matéria cujo título tomei a liberdade de repetir neste meu artigo (“ ‘Uma criança que morre de fome hoje é assassinada’, diz Jean Ziegler”, O Globo, 13/07/13): “O relatório da FAO mostra que o número de vítimas cresce, mas que a agricultura mundial poderia alimentar normalmente, com uma dieta de 2,2 mil calorias por dia, 12 bilhões de pessoas. Então, uma criança que morre de fome hoje é assassinada. Fome não é mais morte natural. É massacre criminoso, organizado”.

Josué de Castro foi cassado pela ditadura na segunda semana do golpe civil-militar, em 9 de abril de 1964. Morreu em Paris, no exílio, de infarto, aos 65 anos, em 24 de setembro de 1973. Aquela frase que ele precisou arrancar da garganta, na solenidade em Helsinque, continua mais viva do que nunca: o primeiro direito do homem é o de não passar fome.

Brasil de Cristo

 


O futuro não é mais como era antigamente

Um dos livros que mais me impactaram nos últimos tempos, pela forma cirúrgica com que aponta como o contrato social firmado pelo mundo democrático depois das duas guerras mundiais não é mais válido para os desafios do presente e de um futuro que chega a galope todos os dias, foi escrito pela economista Minouche Shafik, diretora da London School of Economics. No Brasil, ganhou o título “Cuidar uns dos outros —Um novo contrato social”.

Tive a oportunidade de entrevistar a autora a respeito dos temas que ela reuniu para demonstrar como os arranjos institucionais, econômicos, educacionais, de proteção social e ambientais, entre outros, ficaram rapidamente obsoletos diante de uma realidade que já vinha em rápida mudança graças a fatores como tecnologia, avanço da emergência climática e novo perfil demográfico dos países, e como isso foi potencializado de forma dramática pela pandemia de Covid-19.

Ela mostra com dados por que é inadiável que o mundo democrático rediscuta o atual contrato social, sob pena de, muito rapidamente, mais nações se verem diante do apelo sedutor de líderes com discurso de radicalização populista e tendência autocrática, que seduzem crescentes contingentes de eleitores ao propor soluções falsamente simples para problemas complexos.

O que fez com que o livro continuasse martelando na minha cabeça, meses depois da leitura e da entrevista, é a inquietante constatação de que nem um único dos temas que Shafik aborda está sequer sendo esboçado na campanha presidencial brasileira.


Enquanto em sua obra ela constata, com dados e evidências, que a maior longevidade obrigará as pessoas a trabalharem por mais tempo, para que o custo de financiar sua velhice não recaia de forma injusta sobre as novas gerações, por aqui estamos discutindo se reabilitaremos ou não a CLT como norte para relações trabalhistas viradas de ponta-cabeça nos últimos anos, e ainda em transmutação.

No livro, a economista evidencia que a educação para o futuro, para ser efetiva, tem de privilegiar a primeira infância, pois é ela que determinará a possibilidade de indivíduos desenvolverem todo o seu potencial cognitivo e emocional. A partir daí, o aprendizado será um contínuo desenvolvimento de habilidades para muito além do conteudismo clássico.

Enquanto isso, no Brasil de Jair Bolsonaro estamos prestes a aprovar uma autorização de ensino doméstico de inspiração ideológica e religiosa, em tudo regressiva e oposta ao que fazem as nações que de fato adotaram a educação como eixo de projetos de desenvolvimento.

A autora mostra por “A + B” o caráter contraproducente de países, ricos ou pobres, manterem subsídios a combustíveis fósseis. Não só do ponto de vista da necessária mudança de matriz energética para evitar a catástrofe climática, mas da gestão de recursos cada vez mais escassos.

E o que faz o Brasil? Troca presidentes da Petrobras em série, na esperança de que algum dos nomeados determine um controle artificial de preços dos combustíveis, sem que haja qualquer política consistente de substituição do uso de petróleo e derivados ou da diminuição da dependência da nossa economia dessa fonte.

E mais: essa é uma das áreas em que a resistência à mudança de mentalidade e o atraso no discurso e na visão é comum aos postulantes de oposição, alheios, também eles, à urgência de retirar as medidas de mitigação dos efeitos do aquecimento global da prancheta.

Em vez de submeterem essas questões urgentes ao eleitor, os candidatos e o noticiário (nós, portanto) se ocupam de falsas polêmicas, como a inexistente possibilidade de fraude nas urnas eletrônicas e o “resta um” nada edificante de candidatos do centro.

Enquanto o futuro chega na velocidade da luz, estamos caminhando a passos de tartaruga, quando não andando em marcha à ré.

Os perigos da sordidez plutocrática

Os sultões do Vale do Silício passam por uma irritação política, em que alguns bilionários têm se voltado contra os democratas. Não apenas Elon Musk. Outros nomes proeminentes, incluindo Jeff Bezos, atacaram Joe Biden, e nós sabemos que Larry Ellison, da Oracle, participou de uma chamada com Sean Hannity e Lindsey Graham sobre reverter a eleição de 2020.

O momento dessa mudança para a direita linha-dura por parte de alguns aristocratas da tecnologia é marcante em face do que está ocorrendo na política. É difícil imaginar o tipo de bolha em que Musk vive para ele apontar o Partido Democrata como “o partido da divisão e do ódio”, no momento em que Tucker Carlson, que não é político, mas é uma das figuras mais influentes do Partido Republicano, dedica programa após programa à “teoria da substituição”, alegação de que a elite progressista traz imigrantes para os EUA para substituir eleitores brancos. Pesquisas mostram que metade dos republicanos concorda com essa teoria.

É verdade que alguns interesses econômicos reais estão em jogo. Os democratas propuseram novos impostos sobre os ricos, enquanto Biden nomeou para cargos pessoas conhecidas por defender políticas antitruste mais rígidas. Também é verdade que o valor das ações de empresas de tecnologia caiu substancialmente nos últimos meses, reduzindo a riqueza de magnatas como Musk e Bezos.

Mas, neste momento, essas políticas parecem apartadas. Mesmo se os democratas desafiarem as expectativas e mantiverem o controle do Congresso, em novembro, não há perspectiva realista de uma campanha do tipo New Deal contra a desigualdade. Além disso, qualquer política de redistribuição de renda ainda deixaria os bilionários incrivelmente ricos, capazes de comprar o que bem entendessem – exceto, possivelmente, o Twitter.

As redes sociais, antes vistas como força a serviço da liberdade, agora são vetores da desinformação

O que o dinheiro nem sempre consegue comprar, porém, é admiração. E esta é uma área em que os titãs da tecnologia sofreram grandes derrotas. Permita-me dar uma de intelectual. Desde Max Weber, os cientistas sociais perceberam que a desigualdade social possui múltiplas dimensões. Precisamos distinguir a hierarquia do dinheiro, na qual poucas pessoas detêm uma fatia desproporcional da riqueza, da hierarquia do prestígio, na qual poucas pessoas são respeitadas e admiradas.

Os indivíduos podem ocupar posições muito diferentes nessas hierarquias. Lendas do esporte, estrelas pop, influenciadores em redes sociais e laureados com o Nobel, em geral, são bem-sucedidos financeiramente, mas sua riqueza é miséria em comparação com as grandes fortunas.

Os bilionários, em contraste, impõem deferência, até servilismo, sobre quem depende de sua generosidade, mas poucos deles são figuras conhecidas do público, muito menos possuem fãs. A elite da tecnologia, porém, teve tudo.

Sheryl Sandberg, do Facebook, foi, por certo período, um ícone do feminismo. Musk tem milhões de seguidores no Twitter, muitos deles seres humanos de verdade, não bots, e esses seguidores com frequência se mostram defensores ardentes da Tesla.

Agora, o glamour acabou. As redes sociais, antes louvadas como força a serviço da liberdade, são denunciadas como vetores de desinformação. A popularidade da Tesla foi manchada por histórias sobre combustões espontâneas e acidentes com o piloto automático. Magnatas de tecnologia ainda possuem fortunas, mas o público – e o governo – não lhes está retribuindo com o nível de adulação anterior. E isso os deixa loucos da vida.

Já vimos este filme antes. Em 2010, grande parte da elite de Wall Street, em vez de se sentir agradecida por ter sido resgatada, foi consumida por um “ódio a Barack Obama”. Os engenhosos executivos ficaram furiosos por não receber o respeito que mereciam por arruinarem a economia mundial.

Infelizmente, a mesquinhez plutocrática importa. Dinheiro não compra admiração, mas compra poder político. É desalentador o fato de que parte desse poder será acionada em benefício de um Partido Republicano que descamba cada vez mais para o autoritarismo. BILIONÁRIOS. Já mencionei que a mais recente cúpula da direita – a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), que incluiu um discurso por vídeo de Trump – foi realizada na Hungria, sob os auspícios de Viktor Orbán, que de fato assassinou a democracia de seu país?

A guinada à direita de alguns bilionários da tecnologia também é, devo dizer, uma burrice extrema. É verdade que oligarcas conseguem enriquecer sob regimes de autocratas como Orbán ou Vladimir Putin, que grande parte da direita americana admirava antes de ele começar a perder sua guerra na Ucrânia.

Mas hoje os oligarcas russos estão apavorados. Pois nem suas vastas fortunas são capazes de protegê-los do comportamento errático e vingativo de líderes que não respondem ao estado de direito.

Mas não espero que tipos como Musk ou Ellison aprendam qualquer coisa dessa experiência. Os ricaços são diferentes de mim ou de você: normalmente, eles ficam cercados de pessoas que lhes dizem apenas o que eles querem escutar.

Putin, a nova ideia russa e os idiotas úteis

“A única política natural da Rússia em relação ao Ocidente tem de ser não procurar uma aliança com as potências ocidentais, mas a sua desunião e divisão. Só assim não serão hostis para connosco, não, claro, por convicção mas por impotência.” A frase – tão atual – é de Fyodor Tyutchev, o poeta, filósofo e diplomata russo do século XIX que também disse que “com a razão não se entende a Rússia”.

É um facto. Para se perceber a Rússia, Putin e a sua relação com o mundo é preciso perceber a sua geografia e a sua história. Este é um território enorme, que desde o século XVI é o maior país do planeta e ocupa uma zona estratégica entre dois continentes, a que se veio a chamar Eurásia, que se estende por 11 fusos horários e tem apenas uma delimitação natural que é o mar Ártico. Como bem explica Angela Stent no magnífico Putin’s World, um livro obrigatório para perceber a relação da Rússia com o Ocidente, a essência deste país está intimamente ligada à noção de resistência e de conquista, já que desde sempre teve de definir e proteger as suas fronteiras fluidas, avançando em território inimigo. A mentalidade imperialista faz parte da ideia de excecionalidade russa e é vista como uma questão de sobrevivência. Dominação ou morte. Tal como faz parte o autoritarismo: para governar num país tão vasto e vulnerável a ameaças externas e internas, era preciso mão de ferro.

“O que para de crescer começa a apodrecer. Tenho de expandir as minhas fronteiras para proteger o meu território”, percebeu cedo Catarina, a Grande, a princesa alemã que se transformou na toda-poderosa imperatriz russa do século XVIII, lutou contra os impérios otomano e persa e tomou os territórios da Crimeia e da Novorossiya.

Este autoritarismo, que apenas teve um breve interregno com Ieltsin e Gorbatchev, foi retomado em todo o seu esplendor com Putin. Ele nunca digeriu a dupla humilhação da perda do império e do estatuto pós-queda da União Soviética, com o desmembramento e a perda de 15 estados que se tornaram independentes e o facto de os Estados Unidos e os seus aliados criarem uma ordem global à qual a Rússia teria de se conformar e adaptar. Para recuperar a grandeza momentaneamente perdida com o fim da URSS, era preciso recuperar patriotismo, ambição e glória, valores que se traduzem em crescente esfera de influência e, sim, território, como ficou claro em 2014 com a anexação da Crimeia. Fatores que, a seu ver, foram a cola e o cimento que ao longo dos séculos uniram aquele país.

Esta nova “ideia russa” foi o que esteve subjacente à criação de organizações de propaganda e influência como a Russky Mir (que significa mundo russo), em 2007 – com ramificações até Portugal, como se viu no caso de Setúbal. Um mundo de orgulho numa civilização vista como única e num passado convenientemente mitificado e moldado, que enfatiza tradição e patriotismo, para parecer ainda mais grandioso.

Neste novo mundo russo, há um valor que sobressai: o conservadorismo. “A Rússia de Putin definiu o seu lugar no mundo como o líder dos ‘conservadores internacionais’, suportando Estados que defendem ‘valores tradicionais’, e como protetor de líderes que se debatam com levantamentos populares contra governos autoritários, que Putin acredita que são orquestrados pelo Ocidente”, diz Stent. É uma Rússia defensora do statu quo – contra o que é visto como um Ocidente revisionista e decadente.

Ao mesmo tempo que Putin quer manter o statu quo nos Estados autoritários que não lhe fazem frente, tenta minar por dentro as democracias que podem ser ameaças ou “maus exemplos”. As táticas de Putin nesta missão são claras: fazer interferências nas eleições ocidentais, apoiar movimentos separatistas e antiunião europeia, incentivar grupos nos dois extremos do espetro político – os populistas da extrema-direita e a extrema-esquerda, seja a nova ou a velha, parada no tempo, que ainda lê pelos manuais dos antigos comunistas e que não quer perceber que a Rússia agora é fascista. O objetivo é só um: lançar o caos, como propunha Fyodor Tyutchev há quase dois séculos.

Há anos que começou esta nova Guerra Fria, um conflito híbrido que opõe a Rússia não apenas aos velhos inimigos EUA e NATO, mas também à Europa e à própria ideia de democracia liberal. Ao seu lado, por esse mundo fora, ficam a papaguear os seus argumentos e a apoiar as suas razões três tipos de grupos políticos ou sociais: os conservadores, os autocratas e os autoritaristas. O maior problema é que não são apenas idiotas úteis ao serviço da estratégia de Putin – na verdade, também sonham em poder fazer o mesmo nos seus países.