segunda-feira, 30 de setembro de 2024
Mais de 1 milhão passam fome em São Paulo
Mais da metade da população da cidade de São Paulo possui algum grau de insegurança alimentar. É o que afirma a pesquisa intitulada "I Inquérito sobre a Situação Alimentar do Município de São Paulo", realizada neste ano por duas universidades paulistas, a Unifesp e a UFABC.
Segundo o estudo, divulgado em 20 de setembro, 12,5% dos moradores da cidade, cerca de 1,4 milhão de pessoas, experimentam insegurança alimentar grave. Ou seja, passam fome. A maioria (72%) vive nas periferias e é de trabalhadores informais (52%), principalmente mulheres que trabalham como faxineiras e diaristas (34%).
O alto custo de vida em São Paulo faz com que muitos moradores tenham que tomar decisões difíceis todos os dias. Os entrevistados que passam fome dizem que deixam de comprar alimentos para adquirir passagens de ônibus e metrô ou pagar contas. Mais de um terço dos entrevistados afirmaram ter feito algo que causou vergonha, constrangimento ou tristeza para conseguir comida.
Em termos de políticas públicas, o cenário é extremamente desafiador. Mais de dois terços das pessoas que passam fome (68%) não são beneficiárias do programa Bolsa Família. No entanto, a participação no programa não garante a segurança alimentar. Apenas 27,1% dos domicílios com beneficiários do Bolsa Família possuem segurança alimentar.
Além disso, 89,5% não recebiam auxílio-gás, 76,3% não haviam acessado um restaurante popular ou cozinha comunitária, e 54,5% não haviam recebido doação de alimentos. Isso significa que importantes iniciativas ligadas à formulação e execução de políticas sociais e econômicas, em vários níveis governamentais, ainda são insuficientes para combater a fome na maior cidade do Brasil.
No entanto, em vez de iniciar um necessário diálogo entre pesquisadores e gestores, a pesquisa foi mal recebida pela prefeitura.
De acordo com um comunicado emitido pela Secretaria de Comunicação da gestão municipal, seria irresponsável abordar um assunto tão sério em meio às eleições. Além disso, afirma-se que os dados apresentados contrariam aqueles coletados pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) em 2023, de que 1,37 milhão de pessoas sofrem de insegurança alimentar grave no estado de São Paulo. Na pesquisa produzida pelas universidades, seriam 1,4 milhão de pessoas passando fome apenas na capital paulista.
Se a ideia é justamente impactar atuais e futuros tomadores de decisão, não há melhor momento para divulgar os dados. Contudo, tratar de "um assunto tão sério", e que envolve políticas relacionadas a vários níveis de governo, de fato parece ter pouco espaço em meio a debates eleitorais superficiais e tomados por agressões instagramáveis.
Segundo o estudo, divulgado em 20 de setembro, 12,5% dos moradores da cidade, cerca de 1,4 milhão de pessoas, experimentam insegurança alimentar grave. Ou seja, passam fome. A maioria (72%) vive nas periferias e é de trabalhadores informais (52%), principalmente mulheres que trabalham como faxineiras e diaristas (34%).
Já a insegurança alimentar moderada, quando há uma redução quantitativa de alimentos, atinge 13,5% dos moradores, e 24,5% experimentam insegurança alimentar leve, ou seja, não têm certeza se terão acesso a alimentos no futuro próximo.
De acordo com a pesquisa, os moradores da cidade mais rica do país passam mais fome do que o brasileiro médio. Em São Paulo, a insegurança moderada e grave afetaria 38,7% dos lares com rendimentos de até meio salário mínimo per capita, quase o dobro da média nacional, 22%. São dados chocantes.O alto custo de vida em São Paulo faz com que muitos moradores tenham que tomar decisões difíceis todos os dias. Os entrevistados que passam fome dizem que deixam de comprar alimentos para adquirir passagens de ônibus e metrô ou pagar contas. Mais de um terço dos entrevistados afirmaram ter feito algo que causou vergonha, constrangimento ou tristeza para conseguir comida.
Em termos de políticas públicas, o cenário é extremamente desafiador. Mais de dois terços das pessoas que passam fome (68%) não são beneficiárias do programa Bolsa Família. No entanto, a participação no programa não garante a segurança alimentar. Apenas 27,1% dos domicílios com beneficiários do Bolsa Família possuem segurança alimentar.
Além disso, 89,5% não recebiam auxílio-gás, 76,3% não haviam acessado um restaurante popular ou cozinha comunitária, e 54,5% não haviam recebido doação de alimentos. Isso significa que importantes iniciativas ligadas à formulação e execução de políticas sociais e econômicas, em vários níveis governamentais, ainda são insuficientes para combater a fome na maior cidade do Brasil.
No entanto, em vez de iniciar um necessário diálogo entre pesquisadores e gestores, a pesquisa foi mal recebida pela prefeitura.
De acordo com um comunicado emitido pela Secretaria de Comunicação da gestão municipal, seria irresponsável abordar um assunto tão sério em meio às eleições. Além disso, afirma-se que os dados apresentados contrariam aqueles coletados pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) em 2023, de que 1,37 milhão de pessoas sofrem de insegurança alimentar grave no estado de São Paulo. Na pesquisa produzida pelas universidades, seriam 1,4 milhão de pessoas passando fome apenas na capital paulista.
Se a ideia é justamente impactar atuais e futuros tomadores de decisão, não há melhor momento para divulgar os dados. Contudo, tratar de "um assunto tão sério", e que envolve políticas relacionadas a vários níveis de governo, de fato parece ter pouco espaço em meio a debates eleitorais superficiais e tomados por agressões instagramáveis.
Imoralidade à velocidade de foguete
A defesa deve ser sempre proporcional ao ataque. Quando desproporcional, é evidente que existe uma tendência de dominar que vai além da moralidade. Um país que faz essas coisas — e falo de qualquer país –, essas ações são imorais
Papa Francisco
Política podre incita violência
O Brasil é um país violento, líder em número absoluto de homicídios no ranking de 2023 das Nações Unidas. Ainda que os assassinatos tenham caído 6% neste ano, o país ostenta números horripilantes, com 16,5 mortos por 100 mil habitantes, 18º lugar entre 196 nações. Mata-se por controle do tráfico, dinheiro, poder, ciúme; por motivo torpe ou sem qualquer motivo. Mata-se por desavença política. Por aqui, em vez de solucionar conflitos, a política tem sido combustível para a violência – que só aumenta.
Sete candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador foram mortos durante a campanha eleitoral deste ano. E há registro de 455 casos de violência contra líderes políticos da extrema esquerda e esquerda, direita e extrema direita, e até de centro, incluindo tentativas de assassinato, ameaças à vida e agressões.
Os números do Observatório da Violência Política e Eleitoral da Unirio, que desde 2019 coleta e analisa dados nesta seara, apontam que a disputa municipal de 2024 já é a mais feroz da série histórica. Até setembro de 2020, foram registradas 295 ocorrências; em 2022, 431. Confirmam, assim, que a violência cresce de forma consistente e contínua de eleição em eleição.
As tentativas de explicar essa escalada recaem sobre o ambiente de ódio disseminado pelas redes sociais, que estimulariam agressões, até com “convites” a seguidores para acerto de contas com adversários. A análise é correta, até porque as redes preenchem o sentimento anti-tudo de muitos, criando nichos de conforto dentro de verdadeiras gangues virtuais capazes de absurdos. O 8 de janeiro comprova isso.
Mas o buraco, como sempre, é mais fundo. O domínio das redes é uma ação política, orientada e financiada por políticos, para o bem ou para o mal.
O ex Jair Bolsonaro, o deputado mineiro Nikolas Ferreira (PL), o mais votado do país, o autointitulado coach Pablo Marçal (PRTB), candidato a prefeito de São Paulo, são alguns exemplos do vale tudo no uso desses canais. Portanto, o problema não são as redes e sim o uso deletério delas.
São os políticos que incitam a violência; pagam por impulsão e engajamento. É o exercício da política que está podre.
Muito antes da cadeirada do tucano de ocasião José Luiz Datena em Marçal, e de o assistente de Marçal socar o marqueteiro de Ricardo Nunes (MDB), ou do prefeito de Teresina, Dr. Pessoa (PRD), candidato à reeleição, dar uma cabeçada ao vivo e em cores no adversário Francinaldo Leão (PSOL), a degradação da política já estava escancarada. No Congresso Nacional o exercício parlamentar está resumido a selfies, as sessões nas comissões ou no plenário têm sido um festival de agressões verbais e até pancadaria com intuito de gerar vídeos para as redes. Reina a política dos likes.
Inventam-se fatos, falam-se impropérios sobre opositores, criam-se vídeos falsos com auxílio de inteligência artificial para obter mais seguidores. É preciso ter milhares, milhões, nem que sejam robôs, em uma corrida alucinada que passou a ditar o voto e, inclusive, sequestrou o jornalismo. Não são poucas as reportagens sobre o sobe e desce de seguidores de políticos, associando o volume à força de A ou B.
Mas o X do problema (desculpem-me pela obviedade barata) talvez resida no sucesso das mentiras nesse ambiente. Cabe aqui citar o levantamento do New York Times apontando que em apenas cinco dias (de 16 a 20/9), um terço das 171 postagens de Elon Musk, dono do X, com 200 milhões de seguidores no ex-Twitter, foram mentiras deslavadas sobre Kamala Harris em favor de Donald Trump, candidato preferido do milionário.
Políticos mentem desde sempre – não foram as redes que inventaram isso. Prometem o que não cumprem, são genéricos e não raro tratam o eleitor como otário. O palanque virtual deu mais eco às mentiras, replicadas a baixo custo e com a facilidade de um clique. Um crime digital indutor de violência real. É o que está posto ao eleitor que vai às urnas daqui a exatos sete dias. Esforço-me por algum otimismo.
Sete candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador foram mortos durante a campanha eleitoral deste ano. E há registro de 455 casos de violência contra líderes políticos da extrema esquerda e esquerda, direita e extrema direita, e até de centro, incluindo tentativas de assassinato, ameaças à vida e agressões.
Os números do Observatório da Violência Política e Eleitoral da Unirio, que desde 2019 coleta e analisa dados nesta seara, apontam que a disputa municipal de 2024 já é a mais feroz da série histórica. Até setembro de 2020, foram registradas 295 ocorrências; em 2022, 431. Confirmam, assim, que a violência cresce de forma consistente e contínua de eleição em eleição.
As tentativas de explicar essa escalada recaem sobre o ambiente de ódio disseminado pelas redes sociais, que estimulariam agressões, até com “convites” a seguidores para acerto de contas com adversários. A análise é correta, até porque as redes preenchem o sentimento anti-tudo de muitos, criando nichos de conforto dentro de verdadeiras gangues virtuais capazes de absurdos. O 8 de janeiro comprova isso.
Mas o buraco, como sempre, é mais fundo. O domínio das redes é uma ação política, orientada e financiada por políticos, para o bem ou para o mal.
O ex Jair Bolsonaro, o deputado mineiro Nikolas Ferreira (PL), o mais votado do país, o autointitulado coach Pablo Marçal (PRTB), candidato a prefeito de São Paulo, são alguns exemplos do vale tudo no uso desses canais. Portanto, o problema não são as redes e sim o uso deletério delas.
São os políticos que incitam a violência; pagam por impulsão e engajamento. É o exercício da política que está podre.
Muito antes da cadeirada do tucano de ocasião José Luiz Datena em Marçal, e de o assistente de Marçal socar o marqueteiro de Ricardo Nunes (MDB), ou do prefeito de Teresina, Dr. Pessoa (PRD), candidato à reeleição, dar uma cabeçada ao vivo e em cores no adversário Francinaldo Leão (PSOL), a degradação da política já estava escancarada. No Congresso Nacional o exercício parlamentar está resumido a selfies, as sessões nas comissões ou no plenário têm sido um festival de agressões verbais e até pancadaria com intuito de gerar vídeos para as redes. Reina a política dos likes.
Inventam-se fatos, falam-se impropérios sobre opositores, criam-se vídeos falsos com auxílio de inteligência artificial para obter mais seguidores. É preciso ter milhares, milhões, nem que sejam robôs, em uma corrida alucinada que passou a ditar o voto e, inclusive, sequestrou o jornalismo. Não são poucas as reportagens sobre o sobe e desce de seguidores de políticos, associando o volume à força de A ou B.
Mas o X do problema (desculpem-me pela obviedade barata) talvez resida no sucesso das mentiras nesse ambiente. Cabe aqui citar o levantamento do New York Times apontando que em apenas cinco dias (de 16 a 20/9), um terço das 171 postagens de Elon Musk, dono do X, com 200 milhões de seguidores no ex-Twitter, foram mentiras deslavadas sobre Kamala Harris em favor de Donald Trump, candidato preferido do milionário.
Políticos mentem desde sempre – não foram as redes que inventaram isso. Prometem o que não cumprem, são genéricos e não raro tratam o eleitor como otário. O palanque virtual deu mais eco às mentiras, replicadas a baixo custo e com a facilidade de um clique. Um crime digital indutor de violência real. É o que está posto ao eleitor que vai às urnas daqui a exatos sete dias. Esforço-me por algum otimismo.
O homem e o mundo
Um homem perseguido, quer porque ele próprio fez dos outros perseguidores, quer porque a sua miserável imaginação inventa legiões de inimigos cheios de más intenções, num caso como no outro um homem destes tem, para além da infelicidade, uma falha moral: porque existe uma desonestidade básica na mania da perseguição seja ela qual for. A propósito, é óbvio que o sofrimento, a solidão, os acidentes e a doença atingem mais um homem destes do que outros, ou seja - todos nós. Pela sua própria natureza, o homem desconfiado é mais propício à desgraça. A desconfiança, como o ácido, consome quem a contém e devora o próprio desconfiado: proteger-se noite e dia do género humano, passar a vida a engendrar esquemas a fim de evitar tramoias e intrigas, e que truques usar a fim de farejar de longe a rede estendida aos pés - tudo isto é causa de danos irreparáveis. E são estas coisas que afastam o homem do mundo.
Amos Oz
A palavra incontornável
De vez em quando o povo descobre (ou inventa) uma palavra. Ela começa com um susto-de-novidade, projetando uma luz diferente e interessante na frase onde se instala. “Que maneira legal de dizer isto”, pensam as pessoas, e se danam a usá-la a torto e a direito.
É nova. É diferente. Desperta a atenção de quem ouve, e é sempre bom ter um jeito-de-dizer capaz de arrancar as pessoas do piloto-automático. Tirar as pessoas do transe-zumbiforme em que elas parecem estar mergulhadas, até mesmo quando estão andando, olhando, falando alto.
É o caso atual da palavra “incontornável”. Num efeito curiosamente metalinguístico, ficou difícil contornar essa palavra, que volta e meia insiste em se postar à nossa frente, mãos nos quadris, atitude desafiadora. Não importam as voltas e volteios do nosso discurso verbal, a gente acaba indo na direção dela, tentando contorná-la como um motorista contorna um girador, mas... debalde.
Depois que esbarrei nela cinco vezes seguidas antes das três da tarde, nas redes sociais, fiz uma promessa muda de nunca utilizá-la. Percebi que já estava se fossilizando em clichê, adquirindo as mesmas propriedade anti-pensantes da maioria do nosso vocabulário comum. Estava indo para a mesma prateleira onde já estão, por exemplo, instigante e camadas.
“Camadas” é a besta-sinistra do meu confrade Lira Neto, cuidador do idioma, a quem irrita a onipresença dessa metáfora em tudo quanto é assunto. Tudo hoje em dia se define em termos de “camadas”.
Já disse algum pensador que se arranharmos a superfície de um cínico vamos sempre encontrar um idealista desiludido. E Fausto Fawcett, o Bardo Cibernético de Copacabana, já observou que se a gente raspar um Jetson vai encontrar por baixo um Flintstone. Camadas.
Por que apareceu, de um momento para outro, essa necessidade de definir tudo em termos de camadas? Porque se trata de uma palavra instigante, e aí chegamos a esse outro piercing verbal, penduricalho que, por volta dos anos 1980, todo mundo trazia na ponta da língua.Falei disso aqui.
São palavras que já existiam no idioma mas estavam meio que na despensa ou no freezer, e quando alguém lhes dá uma requentada e as traz para o centro da mesa não chegam pra quem quer.
É longa a lista de palavras atualmente na moda, e já com verniz de clichê, a ponto de franzir a testa de muita gente. Ressignificar. Potente. Território. Narrativa. Imersão. Literalmente. Icônico. Multifacetado. Resiliência. Empoderamento.
Estas palavras são idiotas? De jeito nennhum, são palavras bastante úteis e expressivas, e eu já devo ter usado todas elas. Só que, no momento, faço questão de não usar mais – porque já prevejo as caretas resignadas de muita gente. “Ai meu Deus, de novo essa palavra idiota, não aguento mais.”
As palavras são como um chiclete, começam com um gosto agradável de hortelã ou de cereja, mas esse gosto logo desaparece, vai-se embora o susto-de-novidade que uma palavra invulgar contém. O açúcar se dissolve todo, e fica só a borrachinha. O chiclete vira clichê.
Penso às vezes que isto acontece porque vivemos numa bolha cultural onde é muito rápido, para uma palavra, entrar na moda; e pelas mesmas razões é muito rápido tornar-se lugar-comum. Num país de mais de 200 milhões de usuários do idioma, essas sucessões de modismos e clichês se dão numa bolha minúscula de meio milhão a um milhão de leitores, se tanto.
O ricochete interno nas paredes da bolha (leia-se imprensa eletrônica; leia-se redes sociais) é muito rápido. As palavras viralizam nas redes sociais, com todo seu charme de novidade e potência (êpa) expressiva; e logo viralizam mesmo, literalmente (êpa), como vírus, doença, uma coisa chata que quando a gente vê já contraiu.
Alguns meses de uso intenso, de incômoda reiteração... e pronto, a palavra está puída, desgastada, desvalorizada, eu diria quase prostituída por tantos usos e abusos.
Pobres das palavras, que culpa alguma carregam. Pobre da palavra incontornável, quando descobre que não é indispensável, inevitável, imprescindível.
É nova. É diferente. Desperta a atenção de quem ouve, e é sempre bom ter um jeito-de-dizer capaz de arrancar as pessoas do piloto-automático. Tirar as pessoas do transe-zumbiforme em que elas parecem estar mergulhadas, até mesmo quando estão andando, olhando, falando alto.
É o caso atual da palavra “incontornável”. Num efeito curiosamente metalinguístico, ficou difícil contornar essa palavra, que volta e meia insiste em se postar à nossa frente, mãos nos quadris, atitude desafiadora. Não importam as voltas e volteios do nosso discurso verbal, a gente acaba indo na direção dela, tentando contorná-la como um motorista contorna um girador, mas... debalde.
Depois que esbarrei nela cinco vezes seguidas antes das três da tarde, nas redes sociais, fiz uma promessa muda de nunca utilizá-la. Percebi que já estava se fossilizando em clichê, adquirindo as mesmas propriedade anti-pensantes da maioria do nosso vocabulário comum. Estava indo para a mesma prateleira onde já estão, por exemplo, instigante e camadas.
“Camadas” é a besta-sinistra do meu confrade Lira Neto, cuidador do idioma, a quem irrita a onipresença dessa metáfora em tudo quanto é assunto. Tudo hoje em dia se define em termos de “camadas”.
Há, de fato, muitas camadas superpostas no uso desse termo. No começo de tudo, foi útil trazer esse aspecto para o meio da discussão, porque todo mundo começou a admitir que, sim, não só no mundo físico como no mundo das idéias tudo se organiza em películas superpostas. Tudo é constituído de layers, como as cascas geológicas que se recobrem umas às outras em nossos continentes. Por baixo de alguma coisa há sempre uma coisa diferente.
Já disse algum pensador que se arranharmos a superfície de um cínico vamos sempre encontrar um idealista desiludido. E Fausto Fawcett, o Bardo Cibernético de Copacabana, já observou que se a gente raspar um Jetson vai encontrar por baixo um Flintstone. Camadas.
Por que apareceu, de um momento para outro, essa necessidade de definir tudo em termos de camadas? Porque se trata de uma palavra instigante, e aí chegamos a esse outro piercing verbal, penduricalho que, por volta dos anos 1980, todo mundo trazia na ponta da língua.Falei disso aqui.
São palavras que já existiam no idioma mas estavam meio que na despensa ou no freezer, e quando alguém lhes dá uma requentada e as traz para o centro da mesa não chegam pra quem quer.
É longa a lista de palavras atualmente na moda, e já com verniz de clichê, a ponto de franzir a testa de muita gente. Ressignificar. Potente. Território. Narrativa. Imersão. Literalmente. Icônico. Multifacetado. Resiliência. Empoderamento.
Estas palavras são idiotas? De jeito nennhum, são palavras bastante úteis e expressivas, e eu já devo ter usado todas elas. Só que, no momento, faço questão de não usar mais – porque já prevejo as caretas resignadas de muita gente. “Ai meu Deus, de novo essa palavra idiota, não aguento mais.”
As palavras são como um chiclete, começam com um gosto agradável de hortelã ou de cereja, mas esse gosto logo desaparece, vai-se embora o susto-de-novidade que uma palavra invulgar contém. O açúcar se dissolve todo, e fica só a borrachinha. O chiclete vira clichê.
Penso às vezes que isto acontece porque vivemos numa bolha cultural onde é muito rápido, para uma palavra, entrar na moda; e pelas mesmas razões é muito rápido tornar-se lugar-comum. Num país de mais de 200 milhões de usuários do idioma, essas sucessões de modismos e clichês se dão numa bolha minúscula de meio milhão a um milhão de leitores, se tanto.
O ricochete interno nas paredes da bolha (leia-se imprensa eletrônica; leia-se redes sociais) é muito rápido. As palavras viralizam nas redes sociais, com todo seu charme de novidade e potência (êpa) expressiva; e logo viralizam mesmo, literalmente (êpa), como vírus, doença, uma coisa chata que quando a gente vê já contraiu.
Alguns meses de uso intenso, de incômoda reiteração... e pronto, a palavra está puída, desgastada, desvalorizada, eu diria quase prostituída por tantos usos e abusos.
Pobres das palavras, que culpa alguma carregam. Pobre da palavra incontornável, quando descobre que não é indispensável, inevitável, imprescindível.
'Deixa ele ser rico!'
No Brasil, prolifera a categoria do pobre de direita. Depois que a educação política sumiu das nossas vidas, a direita assumiu um glamour especial que a esquerda não tem. Tudo que é coletivo não tem charme, não atrai a admiração das pessoas, não vira moda. Ser rico, não importa como, passou a ser a grande meta, o grande sonho de todos. Uma pessoa rica é a mais admirada. Não importa como o dinheiro foi obtido, se de modo desonesto, esperto ou enganando muita gente, é ainda mais admirado.
Em um país onde os avanços sociais, que continuam acontecendo, perderam a característica de conquista coletiva, a riqueza desmedida, a ostentação e a prosperidade assumem características individuais de talento, de escolha divina, de mérito planetário, de algo que você tem que continuar perseguindo, de preferência acreditando em Deus.
As prisões de Deolane Bezerra e Gusttavo Lima, ostentadores de primeira, mostram isso através da reação das pessoas. Os fãs foram para a porta do presídio onde a influenciadora foi detida para protestar. No caso de Gusttavo, nem foi preciso. Da sua mansão na Flórida, ele ficou sabendo da revogação da prisão. Ricos não vão presos e, segundo essas pessoas, nem deveriam. Afinal, o dinheiro os coloca em outro patamar, onde lhes é concedido o direito de opinar, mandar, decidir, governar e falar o que lhes vier à cabeça. Quem tem dinheiro tem tudo.
Esse destino que poucos alcançam, para essa gente, é um objetivo atingível, uma espécie de prêmio pela obediência e resignação. Fique quietinho que você será recompensado. Não proteste, não fale alto, não reclame e, sobretudo, não forme grupinhos na esquina para discutir a realidade. Depois, é só votar nesses ricos ou em quem os defende, e esse esquema será garantido.
A riqueza traz uma aura de sucesso, de realização, de capacidade que produz admiração ao invés de inveja. A admiração não gera qualquer reflexão. Ela provoca um estado de letargia que aceita o mundo como ele é. Se eu não consigo, é porque me falta alguma coisa ou Deus assim preferiu. Nada mais cômodo para um sistema que quer exatamente isso: poucos ricos vivendo às custas de muitos pobres sorridentes e passivos. Já vi isso antes e, se não fizermos algo para que a educação política volte, continuaremos a ver.
Em um país onde os avanços sociais, que continuam acontecendo, perderam a característica de conquista coletiva, a riqueza desmedida, a ostentação e a prosperidade assumem características individuais de talento, de escolha divina, de mérito planetário, de algo que você tem que continuar perseguindo, de preferência acreditando em Deus.
As prisões de Deolane Bezerra e Gusttavo Lima, ostentadores de primeira, mostram isso através da reação das pessoas. Os fãs foram para a porta do presídio onde a influenciadora foi detida para protestar. No caso de Gusttavo, nem foi preciso. Da sua mansão na Flórida, ele ficou sabendo da revogação da prisão. Ricos não vão presos e, segundo essas pessoas, nem deveriam. Afinal, o dinheiro os coloca em outro patamar, onde lhes é concedido o direito de opinar, mandar, decidir, governar e falar o que lhes vier à cabeça. Quem tem dinheiro tem tudo.
Esse destino que poucos alcançam, para essa gente, é um objetivo atingível, uma espécie de prêmio pela obediência e resignação. Fique quietinho que você será recompensado. Não proteste, não fale alto, não reclame e, sobretudo, não forme grupinhos na esquina para discutir a realidade. Depois, é só votar nesses ricos ou em quem os defende, e esse esquema será garantido.
A riqueza traz uma aura de sucesso, de realização, de capacidade que produz admiração ao invés de inveja. A admiração não gera qualquer reflexão. Ela provoca um estado de letargia que aceita o mundo como ele é. Se eu não consigo, é porque me falta alguma coisa ou Deus assim preferiu. Nada mais cômodo para um sistema que quer exatamente isso: poucos ricos vivendo às custas de muitos pobres sorridentes e passivos. Já vi isso antes e, se não fizermos algo para que a educação política volte, continuaremos a ver.
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