quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Simples assim: STF e TCU têm que investigar Bolsonaro

Alvo de investigações do STF e do TCU, de memes desairosos na Internet e da crítica geral da nação, o general Eduardo Pazuello pode não ser da artilharia, mas é a bucha de canhão da temporada. Em qualquer governo, sua cabeça já teria rolado. Mais dia, menos dia, porém, vai cair e, provavelmente, ser trocado por um político do Centrão, como, por exemplo, o atual líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). O timing para essa substituição é político. Não acontecerá com a pandemia em alta, pois nenhum louco quer se sentar na cadeira do Ministério da Saúde para administrar mortes. Enquanto o caos perdurar, o ministro é Pazuello. Quando a situação melhorar, segundo os planos do Planalto, sairá — de preferência levando consigo a imagem desastrosa de sua gestão.

O problema sempre está em fazer a realidade caber dentro dos planos de um governo sem noção. Difícil imaginar, nesse caso, que a troca do fusível vai levar a luz a acender. Já ficou claro para a maioria da população que Pazuello é Bolsonaro, e Bolsonaro é Pazuello. A frase do ministro em outubro, após ser desautorizado pelo presidente no compromisso de compra de vacinas Coronavac — que o governo acabou querendo — colou os dois para sempre: “Aqui, um manda e o outro obedece. Simples assim…”.


Simples assim, portanto, é deduzir que o inquérito aberto no STF para investigar a omissão do ministro da Saúde no caos em Manaus, e a ação do TCU para apurar o uso indevido dos recursos do SUS na compra da cloroquina deveriam incluir como alvo o próprio Jair Bolsonaro. Sua insistente defesa do remédio ineficaz, por exemplo, antecede a ida de Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde. É óbvio que a compra e a distribuição do medicamento foram feitas em obediência ao chefe, e o TCU tem amplas formas de provar isso — assim como se pode demonstrar que o vaivém no caso da vacina “chinesa” foi conduzido segundo as mudanças de humor de Bolsonaro.

Nomeado para a função à revelia da lista da categoria, e com alguma chance de chegar um dia ao STF pelas mãos de Bolsonaro, o PGR Augusto Aras parecia não ter vontade de investigar ninguém pelos desmandos da pandemia. Pressionado depois de uma nota desastrada em que jogou no colo do Congresso a missão, pediu ao Supremo abertura de inquérito contra Pazuello — livrando, é claro, a cara de Bolsonaro. Se as investigações prosseguirem seriamente, porém, será inevitável esbarrar na digital presidencial em algum ponto do caminho de desídia, inépcia, incompetência e insensibilidade que levou brasileiros a morrer por falta de oxigênio em Manaus.

Em qualquer lugar do mundo democrático, a responsabilidade, ainda que culposa, por mortes que poderiam ser evitadas, e o uso de recursos públicos para iludir a população com medicamentos ineficazes são crimes graves, suficientes para derrubar governantes. A pergunta que se faz agora é por que não serão aqui, perante instituições que já afastaram uma presidente da República por “pedaladas fiscais”…

Brasil, latrina presidencial

Vulgaridade. Sem noção institucional e do cargo. Falta de respeito com a população e o país que representa. Nada a ver com a necessidade de medidas de apoio às empresas, pessoas e reacão (sic) a comentários. Populismo barato. Não é exemplo nem caminho para solução
General Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo

Pandemia empurra economia do Brasil ao limite, indica o jornal Financial Times, em editorial

“Gastem o máximo que puderem.” A maioria dos países seguiu até certo ponto o conselho da chefe do FMI, Kristalina Georgieva, sobre a crise do coronavírus, mas poucos com tanto empenho quanto o Brasil. O presidente Jair Bolsonaro gastou mais que qualquer outro grande mercado emergente, segundo o Instituto de Finanças Internacionais, aumentando as despesas do governo federal em quase 40% entre janeiro e novembro.

A maior parte do dinheiro foi para “coronavouchers”, um reforço de renda temporário para quase um terço da população. A medida aumentou as vendas de cerveja – e a popularidade de Bolsonaro –, mas se mostrou ruinosa para as finanças já abaladas do Brasil.

A dívida pública hoje está em mais de 91% do PIB (Produto Interno Bruto), um dos níveis mais altos entre os mercados emergentes. Atingido pelo crescimento fraco, o Brasil não equilibra seu orçamento antes dos custos do serviço da dívida desde 2013.

Reformas vitais para reduzir salários ultragenerosos e benesses para o funcionalismo público continuam paradas no Congresso. Uma muito propalada reforma do complexo sistema tributário ainda não aconteceu. A privatização é frustrada por interesses escusos. O esquema de auxílio emergencial expirou no fim do ano passado, mas, com o novo salto das infecções pelo coronavírus, os políticos brasileiros pressionam para que recomece.



Paulo Guedes, o ministro da Economia, friedmanista, até agora resistiu. Mas ele tem as mãos atadas por um presidente cujos instintos são claramente populistas e cujo objetivo supremo é a reeleição no próximo ano. As promessas de Guedes de que as reformas estruturais estão a caminho soam cada vez mais ocas; vários de seus principais assessores já abandonaram o navio.

A comunidade internacional deve se importar? Cerca de 95% da dívida brasileira é interna, na maior parte em mãos de investidores locais. Poucos credores estrangeiros, privados ou multilaterais, perderiam dinheiro com uma moratória. O Brasil já esteve à beira do abismo fiscal muitas vezes, geralmente sem cair.

Desta vez os riscos são maiores. A maior parte da dívida do Brasil, de R$ 4,8 trilhões (US$ 878 bilhões), está em curto prazo e as maturidades estão encurtando: quase 30% vencem no próximo ano.

A inflação, um antigo monstro, sobe lentamente. Os mercados locais estão prevendo fortes aumentos das taxas de juros, a partir deste ano. E o próprio Bolsonaro declarou que o país está quebrado.

O Brasil foi um dos países mais atingidos pelo coronavírus, e a pandemia continua cobrando um alto preço, ajudada pela teimosa indiferença de Bolsonaro. Um recente surto de casos em Manaus, capital do Amazonas, superlotou os hospitais e causou tamanha falta de oxigênio que alguns pacientes foram deixados a se asfixiar. O governo revolucionário socialista da Venezuela montou um improvável golpe de propaganda despachando caminhões com oxigênio até a fronteira para ajudar.

O Brasil ainda pode recuar do buraco. Ao contrário de muitos países apanhados nas agonias econômicas do coronavírus, seu destino está principalmente em suas próprias mãos. O governo ainda pode se financiar. Não precisa haver conflito entre fornecer um apoio bem dirigido à economia e curar os problemas de longo prazo do setor público mimado, empresas estatais protegidas e uma elite privilegiada que não paga sua parcela justa de impostos em uma das sociedades mais desiguais do mundo.

Bolsonaro faria bem em lembrar a segunda parte do conselho pandêmico de Georgieva: “Mas guardem os recibos”. A prestação de contas e a transparência estão em falta há muito tempo no maior país da América Latina, e seus 210 milhões de cidadãos pagam o preço. A pandemia deveria forçar uma contabilidade há muito atrasada, não apenas das contas públicas, mas dos grotescos desequilíbrios econômicos que degradam sua sociedade. Folha SP 
Folha SP

Pensamento do Dia

 


Fora, Bolsonaro

O xingamento “Globolixo”, com o qual as falanges bolosonáricas agridem reiteradamente a Rede Globo, tem duas origens malignas: uma superficial, de ocasião, e outra histórica, profunda.

Em sua origem superficial, “Globolixo” resulta de um trocadilho que faz troça da marca publicitária “Globeleza”, que a própria empresa adota em suas ações de marketing. À primeira vista, parece apenas um tipo de molecagem inconsequente. Nesse plano, temos a sensação de que o xingamento, um sinal de repúdio à programação e à linha editorial da maior rede de televisão do Brasil, poderia ser empregado por adolescentes de qualquer coloração ideológica, de direita ou de esquerda, indistintamente.

Mas não é assim. O palavrão guarda mais identidade com as milícias virtuais da direita antidemocrática, esse pessoal que, à moda do chefe, elogia torturadores, prega o fechamento do Supremo Tribunal e diz que o uso de máscara é coisa de maricas. Mais que uma tirada ignara, “Globolixo” é uma peça de retórica fascista. Mais do que ofender uma organização de mídia em particular, seu propósito é desacreditar toda a imprensa e todo o sistema de que as sociedades democráticas dispõem para separar o que é verdade factual do que é mentira. A palavra “Globolixo” concentra uma campanha insuflada diretamente pelo Planalto contra a imprensa livre.



Isso fica mais claro quando vamos atrás das origens históricas do termo espúrio. Essas origens remontam a palavra alemã Lügenpresse, algo como “imprensa mentirosa”. O termo frequentou o vocabulário de variadas correntes políticas a partir do século 19. No mais das vezes, servia a forças conservadoras ou ultraconservadoras para atacar órgãos de imprensa mais ou menos liberais, anticlericais e críticos, embora tenha atendido também a facções de esquerda que tentavam denunciar hipocrisias nos jornais burgueses. Entre tantas invocações, vindas de atores tão diversos, foi com os nazistas que a palavra Lügenpresse marcou lugar na história no século 20. Por meio dela os seguidores de Adolf Hitler produziram um estigma contra os judeus que estariam por trás das redações jornalísticas e uma ponta de lança para a propaganda massiva que mobilizaram para desacreditar todos os métodos independentes de verificação dos fatos.



Por que os nazistas rechaçavam o jornalismo? Muito simples. Para eles, só havia verdade nos enunciados do partido – tudo o que não fosse a palavra do partido era mentira potencial ou consumada. Um fato só era fato quando declarado fato pelo partido. Um fato não reconhecido pelo partido não era fato. Tudo muito chapado, muito estreito, bem ao gosto das massas que têm sede de tirania (massas que estão por aqui até hoje).

Em seus diários, Josef Goebbels, o ministro da propaganda do 3.º Reich, afirmou que gostaria de transformar o nazismo na religião do povo. A suástica funcionava, na imaginação dele, como a essência primordial, um sopro inaugural ou, ainda, o DNA insubstituível de todo discurso verdadeiro. Segundo essa dogmática, qualquer forma de expressão ou de representação que pretendesse conter ou indicar alguma verdade teria de carregar em seu código interno a inscrição da suástica. Dizendo Lügenpresse, os nazistas generalizavam seu juízo sobre a atividade jornalística – que seria por inteiro, e em absoluto, uma atividade de produção de falsidades – e rejeitavam de antemão a credibilidade de qualquer voz que não fosse a do próprio Führer.

Nos nossos dias, os fascistinhas de Facebook que repetem o xingamento “Globolixo” ecoam a campanha nazista baseada na palavra infamante Lügenpresse. Eles tentam minar a confiança do público na imprensa para matar o jornalismo de inanição (uma redação que não recebe o alimento da confiança do público morre à míngua). O pacto autoritário e antidemocrático que chegou ao poder com Bolsonaro sabe perfeitamente que para não desabar depende de eliminar a função social de verificação dos fatos, encarnada na imprensa independente – essa instituição social que está nos diários, como este aqui, nos telejornais de respeito, como o Jornal Nacional, e numa série de pequenas redações profissionais destemidas que investigam os acontecimentos com método e honestidade intelectual. O projeto de poder que aí está tem consciência de que só sobreviverá se matar o espírito livre da imprensa. Coerentemente, encoraja seus seguidores gritar “Globolixo”.

Em recente levantamento da entidade Repórteres Sem Fronteiras, constatou-se que 80% dos ataques contra a imprensa nas redes sociais em 2020 vieram diretamente do presidente da República ou de um de seus filhos. Em outra pesquisa, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou um aumento do número de agressões ao jornalismo no mesmo ano e provou que o campeão das aleivosias é Jair Bolsonaro.

Um presidente liderando campanhas anti-imprensa é um atentado ambulante à Constituição. Os jornalistas brasileiros não se afastariam do seu dever de objetividade e independência se exigissem, em bloco, a destituição de Jair Bolsonaro.

Escárnio parlamentar


Se acha que o Exército está comendo muito bem e você não, aliste-se. Sirva a sua pátria e coma bem no Exército
Carla Zambelli, (PSL-SP)

Profanar o Holocausto

Na porta do campo de concentração de Buchenwald reza a frase “Jedem das Seine”. A cada um o seu. Era isto que era prometido à entrada aos que aqui chegavam, fossem judeus, ciganos, homossexuais, comunistas ou renegados. A estes seres humanos estava reservada a tortura, o sofrimento atroz, as experiências sádicas, a violação, a doença, o trabalho até à morte. Tudo aquilo, ou apenas aquilo, a que, no entender dos nazis alemães, tinham direito.

Tinha 16 anos quando passei as portas deste que foi o maior campo dentro das fronteiras alemãs, junto a Weimar. A ironia perversa e cruel desta mensagem, ainda pior do que a famosa frase que está inscrita em Auschwitz e que prometia a liberdade pelo trabalho, foi algo que nunca consegui processar. A desumanização absoluta está ali: a soberba da superioridade e a malévola segregação do outro, que era visto como se fosse de outra espécie, um animal inferior a quem “o seu” só podia ser aquilo. Exterminado da face da Terra.

Ninguém sabe como vai reagir depois de uma visita a um campo de concentração. Eu fiquei, não encontro expressão melhor, enojada. E incrédula. Como foi possível?

Recordo-me que me esfreguei debaixo de água como se quisesse arrancar o que trazia colado na pele. O pó, o ar para sempre contaminado do Mal, as imagens que me pairavam na retina, com os sapatos, os óculos, as dentaduras, os brinquedos de bebés, os documentos pessoais, os pijamas às riscas. Os fornos e as câmaras de gás não me impressionaram tanto – suponho que já estava preparada para elas. Mas as imagens que me fizeram perceber que, atrás de cada um destes 280 mil números que passaram por ali, estava uma pessoa real, foram demasiado para uma teenager a quem, apesar de tudo, o tema da Shoah não era estranho. Estudei-o muito na Escola Alemã, onde assisti quase diariamente ao ato de contrição de um povo que, nos anos 80, ainda tinha uma ferida social bem aberta e carregava essa enorme culpa, involuntária, aos ombros.



Cresci, pois, a respeitar a memória do Holocausto e a dar como garantida a indignação em relação às atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial. Tive durante anos como certo que esta era uma das poucas coisas que teria em comum com qualquer pessoa que encontrasse pela frente. Uma espécie de território sagrado de união entre povos. Bastaria ser Humano para recusar, com todas as suas vísceras, o que de tão desumano ali aconteceu.

Estava, porém, redondamente enganada. Pura ingenuidade pueril. Não só o Holocausto não é já um território sagrado de respeito e lembrança, como há mesmo quem hoje o relativize e menorize.

As livrarias estão repletas de livros de ficção sobre o tema, que virou um indigno filão comercial (O tatuador de Auschwitz, A Bailarina de Auschwitz, O Rapaz que Seguiu o Pai para Auschwitz, O Violino de Auschwitz, Os Bebés de Auschwitz, O Mágico de Auschwitz, só para citar alguns…). Muitos destes autores autores, como José Rodrigues dos Santos, desdobram-se em infelizes contextualizações onde tecem considerações criativas sobre o que se passou dentro daqueles muros. Lamentável é pouco.

Mas o que mais me surpreendeu é perceber como o Holocausto pode ser, afinal, relativizado. O território comum de indignação deixou de existir, porque no Século XXI, nestes tempos de ignorância, superficialidade e raiva incontida, o Holocausto foi politizado.

Nas trincheiras das redes sociais, onde o mundo é dividido por fações e se separa entre a direita e os comunistas, o horror do nazismo passou a ser, digamos assim, menos horroroso. Deixou de ser o tal território sagrado e comum de indignação, para entrar no campo dos acontecimentos discutíveis. Em vez de se baixar a cabeça por respeito, atira-se com um “sim, mas” ou um “então, e”.

Hoje (dia 27) foi o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, que marcou os 76 anos da libertação de Auschwitz. E hoje, ao navegar pelas redes, senti um pouco do mesmo asco que experimentei, aos 16 anos, ao passar as portas de Buchenwald. Li, numa descida ao abismo do novo normal, centenas de comentários a desdenhar da importância de recordar o Holocausto e a tentativa de exterminar todo um povo por motivos raciais. A menorizá-lo quando em comparação com os atos cometidos por comunistas russos e chineses. A insultar os autores dos posts como se, ao lembrarem o Holocausto, estivessem a fazer uma banal declaração política anti-fascista e não uma declaração humanitária. A contestar o que se passou, como se os crimes do nazismo fossem simples matéria de opinião.

Vale a pena passar, por exemplo, pela página de Facebook do humorista Eduardo Madeira e ler os comentários ao seu post de homenagem. É importante fazê-lo para se perceber porque é que António Guterres veio hoje dizer que “após décadas na sombra, os neonazis e as suas ideias estão a ganhar terreno”. Está tudo ali. E é mesmo tenebroso.

Sim, mais de 20 milhões de pessoas foram mortas durante o regime de Stalin e nos gulags russos, morreram entre 7 a 10 milhões na grande fome do Holodomor na Ucrânia Soviética entre 1932 e 1933, e estimam-se que tenham morrido mais de 40 milhões de pessoas nos campos chineses de Mao Tsé-Tung durante o Grande Salto em Frente, entre 1958 e 1962. Num tétrico campeonato de mortos, Mao e Stalin são ainda piores do que Hitler. Mas vamos ver se nos entendemos: não há aqui exterminadores menos maus. Há só tenebrosos assassinos em massa. Todos eles.

Eu não sei o que temos pela frente. Temo, confesso, cada vez mais por onde nos levam estas auto-estradas do ódio e da ignorância. Mas um mundo onde, num dia em que alguém chora os seus filhos assassinados, há quem responda com um “então e os filhos mortos dos outros” não pode ir por um bom caminho.

Um governo entre a crueldade e a burrice

"Nunca atribua à malícia o que pode ser adequadamente explicado pela burrice" – diz o provérbio inglês que ficou conhecido como Navalha de Hanlon. É frequentemente citado para questionar teorias da conspiração.

A questão da hora é saber se o presidente Jair Bolsonaro está levando o Brasil deliberadamente ao caos ou se tudo não passa de um acidente de percurso. Seja no Enem, na anunciada privatização de empresas estatais, na política econômica ou na luta contra a pandemia: Bolsonaro e seus ministros parecem não estar conseguindo dar uma dentro. Para onde quer que se olhe atualmente, reina o caos no Brasil.

Vejamos outros países: dificilmente alguém duvidaria que os problemas dos países europeus com a aquisição de vacinas contra o coronavírus se baseiam em um mau planejamento, ou seja, em uma espécie de estupidez; quem iria querer acusar os políticos de agir de forma maldosa, ou seja, dificultando conscientemente a compra de vacinas? Mesmo governantes autocráticos tentam ser capazes de mostrar sucesso na luta contra o vírus. Porque deixar seu próprio povo sofrer é algo que só os espíritos sádicos ousam fazer.



Mas como classificar o ostensivo não uso de máscara ou o desrespeito deliberado às regras de distanciamento social do presidente Jair Messias Bolsonaro? A luta contra os lockdowns, contra o distanciamento social, contra as vacinas, a recusa em ajudar um SUS em pleno colapso? A insistência na inútil cloroquina? A incapacidade de levar oxigênio a Manaus? Maldade ou estupidez?

O colunista Mathias Alencastro, da Folha de S. Paulo, ao comentar recentemente a tentativa amadorística de busca de vacinas na Índia, citou outros termos. "No governo Bolsonaro, é impossível separar a incompetência da má fé e a crueldade da falta de noção."

Crueldade sempre foi a marca registrada de Bolsonaro – ou será falta de noção? Armas, tortura, matança, insultos, difamações, ridicularizar os outros, ameaçá-los – tudo isso, já conhecemos dele.

Palavras bonitas, gestos conciliatórios, empatia e consolação – são coisas que lhe são estranhas. Quase se poderia ter a impressão de que ele está procurando o caos, o colapso. "Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê?", foi a reação dele ao incêndio do Museu Nacional no final de 2018. "Fizemos nossa parte", foi o seu comentário há poucos dias diante dos gritos de "não consigo respirar!" vindos de Manaus.

Os apelos por um impeachment de Bolsonaro vão se esvair. Em vez disso, ele poderá continuar por mais dois anos. Porque ninguém vai querer assumir tais responsabilidades num Brasil atolado no atual caos. Isso é algo que a classe dominante do país aprendeu com o indigno impeachment de Dilma Rousseff: no papel de Michel Temer, ninguém é feliz. Preferível é deixar sangrar até morrer nas próximas eleições. Se isso vai dar certo, é outra coisa.

Porque as eleições da semana que vem no Senado e na Câmara dos Deputados ameaçam nos ensinar outra lição. Partidos, deputados e senadores vão faturar nababescamente para poupar Bolsonaro de um impeachment. Faltam, pois, ainda dois anos, em que teremos que nos perguntar: é tudo agora estupidez ou maldade, incompetência, má fé ou falta de noção? Ou tudo junto?
Thomas Milz

De quem é a culpa?

Mais que uma pandemia biológica, o nosso mais desumano inimigo passou a ser a pandemia psicológica, a dos costumes. Ela vem ocupando espaço no pensar e no agir de boa parte da sociedade mundial. É bem verdade que em alguns países se fortalece ainda mais na falta de lideranças inspiradoras. Daquelas que se colocam como servas junto aos destinos dos seus liderados.

Em razão disso, decidi não assistir aos telejornais na mesma intensidade de tempos atrás. Eu os via a quase todos. Hoje, elejo aquele que melhor se adéqua às minhas tarefas diárias, sem fixar-me especialmente em nenhum. Tiro minhas conclusões solitárias e, em consequência, evito a estafa emocional que me tomava rotineiramente ao final de cada jornada de notícias.

Os telejornais mudaram, são repetitivos, a mesma matéria percorre toda a programação -, são maçantes – focam exaustivamente um tema -, são emocionais em demasia, algumas vezes apelativos.

Tenho optado pela leitura diária de jornais e revistas nos quais, na minha opinião, os articulistas têm mais tempo para pensar sobre o que escrevem, buscar informações junto às fontes e avaliar os reflexos da notícia para, só então, publicá-las.

Ainda assim, recentemente, assisti a um telejornal com desolação. Apresentava uma reportagem tratando das afrontas às regras do distanciamento social e dos cuidados sanitários individuais, que tinha como pano de fundo convencer ao seu público sobre a periculosidade da praga do coronavírus.

Uma enorme aglomeração, regada a música rave e bebidas diversas, demonstrações de alpinismo em teto de carro e competição de quem “detona” mais rápido os pneus de suas pequenas motos, possivelmente usadas em trabalhos de delivery.

O que pensar? O que dizer. São malucos incorrigíveis ou têm o direito de agir dessa maneira?



O escritor angolano, José Eduardo Agualusa, em sua crônica do sábado no jornal O Globo, referiu-se deste modo aos direitos individuais: “o livre arbítrio, ou seja, a liberdade, não é uma dádiva de Deus, mas uma conquista dos homens”.

Sendo uma conquista, exigiu esforço para tê-la e merece esforço para mantê-la. Por que deixá-la esvair-se entre os dedos?

A sociedade precisa respirar equilíbrio e bom senso. Respeitar o direito do beltrano e do sicrano, para ter o seu respeitado. Carece de compreender o que é o “livre arbítrio”.

Por exemplo, nesse tempo de coronavírus, que uma pessoa não queira se vacinar; que uma pessoa deseje tomar remédios não comprovados cientificamente; que uma pessoa não utilize as máscaras protetoras; que uma pessoa promova aglomerações; que uma pessoa burle a fila para vacinar-se antes, tudo é liberdade, ainda que usada de forma equivocada e até impiedosa.

Uma parcela majoritária de autoridades políticas, jurídicas, científicas, a imprensa e a sociedade em geral advogam em contra essas posturas. Defende, e eu defendo, que você se proteja para proteger os outros.

Entramos aqui, a meu ver, no terreno da legalidade e da moralidade. “A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”. Tese defendida por Montesquieu, ilumina a necessidade de exercer controle dos ilegais, sob as barras da justiça dos legais.

Como fazê-lo diante de um mundo tão maniqueísta e distópico? O filósofo ainda professava na mesma linha: “se os bem-aventurados não fossem livres para pecar, nem os danados para fazer o bem, de que adiantariam castigos e recompensas?”

Somos livres para pecar e fazer o bem. Quem decide somos nós. E somente nosso é o ônus ou o bônus da nossa decisão. Entretanto, relembrando o Tratado da Tolerância, não se deve fazer aos outros o que não gostaríamos que fizessem a nós.

Portanto, é merecido reforçar. Se sofremos, a culpa é de todos que acoitamos o ilegal. Se eles, os amorais e insensatos, estão ultrapassando o nosso espaço vital, que se reclame, se conteste e até se busque o tribunal. A princípio, ao pé de ouvido, ao fim, aos gritos: não me ofendas, para não seres ofendido.
Otávio Santana do Rêgo Barros, general do Exército e ex-porta-voz da presidência da República