quarta-feira, 3 de novembro de 2021
Para que serve a política?
A política é a arte de impedir as pessoas de se intrometerem naquilo que lhes diz respeito.Paul Valéry
O espanto ou a capacidade de nos espantarmos é o motor de arranque da maior parte das descobertas. Quando alguém perguntou a Newton como se descobria a lei da gravitação, diz-se que o grande cientista respondeu deste modo: “Pensando nisso o tempo todo.” Pensar nisso o tempo todo é o segredo dos que se espantam e se demoram tempos intermináveis, detidos por esse fecundo espanto, diante de algo que os surpreende. A concentração dos que se espantam e obstinadamente buscam decifrar o motivo desse espanto, aparece como irresistivelmente cómica aos que nunca se espantam e tudo têm como um dado evidente e inquestionável.
Conta-se que o filósofo Schopenhauer se deteve, um dia, num jardim público, diante de uma flor. E ali ficou, fascinado, a olhar para aquela beleza floral, durante imenso tempo, totalmente absorvido por aquele pedacinho de universo. As pessoas que por ali passavam, não compreendendo aquela teimosa imobilidade do filósofo, faziam comentários jocosos. Até que um polícia que por ali cirandava, desconfiado daquele comportamento insólito, lhe perguntou o que estava ali a fazer, especado tanto tempo, diante de uma flor. Schopenhauer olhou fixamente para o guarda, sem qualquer arrogância, antes com grande candura, e respondeu-lhe, com acento sincero: “Se o senhor guarda fosse capaz de me explicar o que estou aqui a fazer, ficava-lhe muito grato.” Schopenhauer (que, aliás, escreveu um soberbo ensaio sobre o “espanto” como motor de arranque de todo o conhecimento), estava ali, simplesmente, perplexo, espantado, perguntando não sabia bem o quê, em suma, “pensando o tempo todo”.
Sirva isto de introdução a algo que, por estes dias, muito me tem espantado, levando-me, por isso, a uma persistente conversa com os meus botões.
O meu espanto, causa de inquietação e infinita distracção – já me fez perder um guarda-chuva e deixar as chaves penduradas na porta de casa, enquanto ia almoçar - diz-me isto que, à primeira vista, me parece difícil de explicar. O mundo todo vive, actualmente, à beira do abismo: a economia ameaçada de terramotos demolidores, as grandes potências, dirigidas por gente pouco sábia, a prepararem-se para uma estúpida confrontação económica e militar, a probabilidade de futuras pandemias duradouras e altamente mortíferas e produtoras de grave desaceleração económica, como se tem visto, desemprego, fome, quebra de recursos financeiros para a saúde, alterações climáticas de consequências assustadoras para a vida neste belo e maltratado planeta, sem falar noutros flagelos, que não vou enumerar.
Tudo isto, ameaçando o mundo todo, é óbvio que não vai poupar Portugal, à beira do mar plantado.
Pois bem, diante deste sinistro Apocalipse, com que se preocupa a nossa inefável comunicação social, dando-lhe abundante e estridente palco? Por mais que pareça inacreditável, preocupa-se com esta ínfima coisa: com as balbúrdias internas de um micropartido – o CDS – já hoje totalmente irrelevante e, no futuro próximo, mais do que provavelmente, extinto. As escaramuças estridentes entre duas cómicas nulidades, Nuno Melo e Rodrigues dos Santos, pela conquista da liderança do CDS, trazem-me ao espirito a imagem de dois cães esfomeados, lutando furiosamente por um osso despido de qualquer vestígio de carne ou tutano! Em suma, dois alienados pretendentes, disputando coisa nenhuma. Isto, confesso, estas pequeninas escaramuças entre insignificantes comadres, perante um dilúvio de catástrofes que se aproximam a grande velocidade, causa-me um espanto muito maior e mais angustiante do que aquele que terá causado uma bela flor ao autor de O Mundo como Vontade e Representação, ou a queda de um grave, ao espírito taciturno e teimoso de Newton. Porque, sim, como se explica isto? Como se explica que os seres humanos, à beira de desaparecerem do planeta – e, com eles, outras formas de vida – sem disso deixarem memória, por não haver a quem, se preocupem com ninharias e com disputas que não interessam nem à vaquinha do Presépio? Eu só vejo, depois de me espantar, uma plausível explicação: trata-se de pura caridade; de uma manobra de diversão, caridosamente engendrada por políticos bem intencionados, para nos distraírem do pavoroso Apocalipse que se avizinha. Paul Valéry, a quem lestamente roubei o aforismo que dei a este texto, tinha razão. Os políticos querem apenas impedir-nos de metermos o nariz naquilo que nos diz respeito. O mesmo Valéry que, um dia, nos avisou com grande clarividência: “Nós outras, civilizações, sabemos agora que somos mortais”. Infelizmente, sabemos, num agora posterior ao de Valéry, que não são só as civilizações que são mortais: toda a vida, no planeta, também é.
Eugénio Lisboa
Os ambientalistas invisíveis
Um grande fascínio é conferido a pessoas e instituições que se preocupam com a temática ambiental. Participam de palestras, eventos e homenagens. São consideradas sensíveis e solidárias. Porém, uma categoria de profissionais que atua diretamente pela sustentabilidade de nosso planeta é esquecida por todos e mora longe desse fascínio.
Trabalha de forma invisível aos olhares e distante da preocupação da maioria de nossa população. São catadores de lixo, ou melhor, trabalhadores da coleta e seleção de material reciclável, conforme define o Código Brasileiro de Ocupação (CBO), desde 2002.
Apesar de representarem um papel fundamental nos processos de reciclagem, vivem à deriva das políticas públicas que se recusam, de forma sistêmica, a incorporá-los como elo fundamental das cadeias de suprimentos.
Catadores de produtos recicláveis prestam, no silêncio do anonimato, nas adversidades das ruas e no preconceito da população, um serviço ambiental que poucas instituições promovem.
O trabalho desses cidadãos minimiza a pressão sobre os recursos naturais, reduz a poluição do solo, da água e do ar, mitiga a emissão de gases de efeito estufa, reduz o custo de produção de novos materiais e gera emprego e renda. Poucas atividades produtivas, com os mais diversos tipos de apoios e aplausos que recebem, podem ostentar tantos serviços ambientais prestados.
De acordo com levantamento da Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alumínio (Abralatas), o Brasil obteve no ano de 2020 um índice de reciclagem de 97,4% de latas, colocando, assim, o país como um dos principais líderes mundiais neste setor.
Muito foi dito e comemorado, porém, pouco foi lembrado sobre quem efetivamente fez isso, que são os catadores de recicláveis. Um índice tão alto só foi possível por conta desse trabalho – e a eles, portanto, deve ser direcionado o reconhecimento maior.
Conforme o IBGE (2018), a maioria desses trabalhadores é do sexo masculino. São pretos, pardos ou indígenas, possuem idade média de 43 anos e estudaram no máximo até o ensino fundamental. São assim, pessoas que nasceram e cresceram às margens e no esquecimento de nossa sociedade, que insiste em não ver o que ocorre com os resíduos que gera todos os dias.
Em tempos de pandemia, a realidade dessa categoria se tornou ainda mais dura. O medo do vírus foi incorporado na luta diária para achar no lixo o seu ganha pão. O fechamento de diversos estabelecimentos e o medo da contaminação deixou milhares de catadores sem trabalho e renda. O glamour da sustentabilidade ficou ainda mais longe desses trabalhadores.
Já passa da hora de olharmos nossa sociedade como um todo e entendermos e respeitarmos os papéis de cada um. Um mundo só é sustentável se todos os seus integrantes forem incluídos na discussão e na ação.
Políticas públicas devem efetivamente contemplar os grandes heróis da reciclagem, que são os catadores. Essas pessoas tiram do lixo a matéria prima de novos produtos e o ganha pão de cada dia.
Sem alarde, deixam nosso ambiente mais limpo. Em tempos de conferências globais que insistem em estabelecer planos que não saem do papel, nada é tão sustentável quanto isso.
Trabalha de forma invisível aos olhares e distante da preocupação da maioria de nossa população. São catadores de lixo, ou melhor, trabalhadores da coleta e seleção de material reciclável, conforme define o Código Brasileiro de Ocupação (CBO), desde 2002.
Apesar de representarem um papel fundamental nos processos de reciclagem, vivem à deriva das políticas públicas que se recusam, de forma sistêmica, a incorporá-los como elo fundamental das cadeias de suprimentos.
Catadores de produtos recicláveis prestam, no silêncio do anonimato, nas adversidades das ruas e no preconceito da população, um serviço ambiental que poucas instituições promovem.
O trabalho desses cidadãos minimiza a pressão sobre os recursos naturais, reduz a poluição do solo, da água e do ar, mitiga a emissão de gases de efeito estufa, reduz o custo de produção de novos materiais e gera emprego e renda. Poucas atividades produtivas, com os mais diversos tipos de apoios e aplausos que recebem, podem ostentar tantos serviços ambientais prestados.
De acordo com levantamento da Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alumínio (Abralatas), o Brasil obteve no ano de 2020 um índice de reciclagem de 97,4% de latas, colocando, assim, o país como um dos principais líderes mundiais neste setor.
Muito foi dito e comemorado, porém, pouco foi lembrado sobre quem efetivamente fez isso, que são os catadores de recicláveis. Um índice tão alto só foi possível por conta desse trabalho – e a eles, portanto, deve ser direcionado o reconhecimento maior.
Conforme o IBGE (2018), a maioria desses trabalhadores é do sexo masculino. São pretos, pardos ou indígenas, possuem idade média de 43 anos e estudaram no máximo até o ensino fundamental. São assim, pessoas que nasceram e cresceram às margens e no esquecimento de nossa sociedade, que insiste em não ver o que ocorre com os resíduos que gera todos os dias.
Em tempos de pandemia, a realidade dessa categoria se tornou ainda mais dura. O medo do vírus foi incorporado na luta diária para achar no lixo o seu ganha pão. O fechamento de diversos estabelecimentos e o medo da contaminação deixou milhares de catadores sem trabalho e renda. O glamour da sustentabilidade ficou ainda mais longe desses trabalhadores.
Já passa da hora de olharmos nossa sociedade como um todo e entendermos e respeitarmos os papéis de cada um. Um mundo só é sustentável se todos os seus integrantes forem incluídos na discussão e na ação.
Políticas públicas devem efetivamente contemplar os grandes heróis da reciclagem, que são os catadores. Essas pessoas tiram do lixo a matéria prima de novos produtos e o ganha pão de cada dia.
Sem alarde, deixam nosso ambiente mais limpo. Em tempos de conferências globais que insistem em estabelecer planos que não saem do papel, nada é tão sustentável quanto isso.
Viva o capitalismo, mas não o dos capitalistas brasileiros
De acordo com o economista Daniel Duque, da Fundação Getúlio Vargas, 70% dos trabalhadores brasileiros hoje ganham menos do que em 2019, antes de a peste da Covid disseminar-se — e a tendência é piorar, por causa do aumento da inflação. Há duas semanas, a Rede Brasileira de Pesquisa em Segurança Alimentar divulgou que, em dezembro de 2020, 20 milhões de brasileiros passam fome, outros 24,5 milhões não estão seguros de que terão o que comer no seu dia-a-dia e que 75 milhões estão com medo de ser vergastados pela fome.
Nos mesmos jornais que publicam essas notícias, lemos também sobre os bilhões de reais ou dólares que o mercado financeiro nacional ganha com negócios cotidianos, aquisições e IPOs, apesar dos desmandos de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e o Centrão. Li hoje que uma fintech que nunca deu muito lucro até o momento vai abrir o capital em Nova York e, se tudo der certo (para ela), o seu valor pode superar o dos bancos Itaú e Bradesco. “O Brasil está barato”, festejam os bilionários de todas as áreas, que estão comprando tudo o que acham que vale a pena ser comprado.
Estou muito longe de acreditar em socialismo e de ser entusiasta de Thomas Piketty, o francês maluco por impostos; concordo que o capitalismo é o único sistema que se provou capaz de gerar riqueza para a sociedade; sei que os indivíduos não são iguais em suas capacidades. Mas também é ridiculamente fácil perceber que as assimetrias no Brasil estão cada vez maiores, com os ricos cada vez mais ricos, a classe média cada vez mais apertada e os pobres cada vez mais pobres. Nunca fomos realmente bons no quesito crescimento econômico, os nossos avanços têm sido inerciais há décadas, as clivagens sociais sempre foram grandes no país — e, no entanto, parece que aceleramos a escavação de todos esses buracos.
No livro A Riqueza e a Pobreza das Nações, o historiador americano David Landes mostra como os países que superaram a pobreza o fizeram por meio de imperativos morais e culturais que deram suporte ao desenvolvimento da economia. Mais de 20 anos atrás, ao examinar a desigualdade entre as nações, David Landes afirmou: “Vivemos num mundo de desigualdade e diversidade. Este mundo está dividido, grosso modo, em três espécies de nações: aquelas em que as pessoas gastam rios de dinheiro para não ganhar peso, aquelas em que as pessoas comem para viver e aquelas cuja população não sabe de onde virá a próxima refeição”.
O Brasil, que na década de 1970 foi classificado pelo economista Edmar Bacha de “Belíndia”, uma mistura de Bélgica e Índia, abriga este mundo dividido, de maneira cruel e desanimadora. Os diversos governos têm enorme parcela de culpa, ninguém precisa repetir que eles fizeram e fazem tudo errado, mas o topo da pirâmide não pode ser eximido de responsabilidade. Faltam imperativos morais e culturais aos ricos brasileiros, com as exceções que confirmam a regra. A nossa elite, em boa parte beneficiada pelo capitalismo de estado, pelo patrimonialismo e pelas relações de compadrio, serve-se igualmente de um povo bestializado pela ignorância e pelo assistencialismo que retroalimentam o sistema perverso, além de escorchar a classe média com margens de lucro francamente indecentes.
Capitalismo só funciona de verdade quando mata a fome, cria oportunidades, educa, faz os pobres menos pobres, alarga a classe média e proporciona bem-estar à maioria dos cidadãos. Capitalismo não funciona de verdade quando dá as costas para a fome, elimina oportunidades, deseduca, faz os pobres mais pobres, explora a classe média e só proporciona bem-estar a quem está do lado de lá do vidro blindado. Esse capitalismo que não funciona de verdade é ainda mais disfuncional quando se atravessa uma crise como a que vivemos neste momento. E não há propaganda boazinha de TV ou ato de benemerência que escondam o problema de fundo.
Viva o capitalismo, mas não o dos capitalistas brasileiros.
Nos mesmos jornais que publicam essas notícias, lemos também sobre os bilhões de reais ou dólares que o mercado financeiro nacional ganha com negócios cotidianos, aquisições e IPOs, apesar dos desmandos de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e o Centrão. Li hoje que uma fintech que nunca deu muito lucro até o momento vai abrir o capital em Nova York e, se tudo der certo (para ela), o seu valor pode superar o dos bancos Itaú e Bradesco. “O Brasil está barato”, festejam os bilionários de todas as áreas, que estão comprando tudo o que acham que vale a pena ser comprado.
Estou muito longe de acreditar em socialismo e de ser entusiasta de Thomas Piketty, o francês maluco por impostos; concordo que o capitalismo é o único sistema que se provou capaz de gerar riqueza para a sociedade; sei que os indivíduos não são iguais em suas capacidades. Mas também é ridiculamente fácil perceber que as assimetrias no Brasil estão cada vez maiores, com os ricos cada vez mais ricos, a classe média cada vez mais apertada e os pobres cada vez mais pobres. Nunca fomos realmente bons no quesito crescimento econômico, os nossos avanços têm sido inerciais há décadas, as clivagens sociais sempre foram grandes no país — e, no entanto, parece que aceleramos a escavação de todos esses buracos.
No livro A Riqueza e a Pobreza das Nações, o historiador americano David Landes mostra como os países que superaram a pobreza o fizeram por meio de imperativos morais e culturais que deram suporte ao desenvolvimento da economia. Mais de 20 anos atrás, ao examinar a desigualdade entre as nações, David Landes afirmou: “Vivemos num mundo de desigualdade e diversidade. Este mundo está dividido, grosso modo, em três espécies de nações: aquelas em que as pessoas gastam rios de dinheiro para não ganhar peso, aquelas em que as pessoas comem para viver e aquelas cuja população não sabe de onde virá a próxima refeição”.
O Brasil, que na década de 1970 foi classificado pelo economista Edmar Bacha de “Belíndia”, uma mistura de Bélgica e Índia, abriga este mundo dividido, de maneira cruel e desanimadora. Os diversos governos têm enorme parcela de culpa, ninguém precisa repetir que eles fizeram e fazem tudo errado, mas o topo da pirâmide não pode ser eximido de responsabilidade. Faltam imperativos morais e culturais aos ricos brasileiros, com as exceções que confirmam a regra. A nossa elite, em boa parte beneficiada pelo capitalismo de estado, pelo patrimonialismo e pelas relações de compadrio, serve-se igualmente de um povo bestializado pela ignorância e pelo assistencialismo que retroalimentam o sistema perverso, além de escorchar a classe média com margens de lucro francamente indecentes.
Capitalismo só funciona de verdade quando mata a fome, cria oportunidades, educa, faz os pobres menos pobres, alarga a classe média e proporciona bem-estar à maioria dos cidadãos. Capitalismo não funciona de verdade quando dá as costas para a fome, elimina oportunidades, deseduca, faz os pobres mais pobres, explora a classe média e só proporciona bem-estar a quem está do lado de lá do vidro blindado. Esse capitalismo que não funciona de verdade é ainda mais disfuncional quando se atravessa uma crise como a que vivemos neste momento. E não há propaganda boazinha de TV ou ato de benemerência que escondam o problema de fundo.
Viva o capitalismo, mas não o dos capitalistas brasileiros.
Brasil se tornou uma República da Rachadinha
Consagrou-se o uso de aumentativos para batizar grandes escândalos brasileiros de corrupção: mensalão, petrolão etc. No país sob Bolsonaro, porém, a modalidade de corrupção que tomou as manchetes é identificada no diminutivo: rachadinha. Apesar de o nome sugerir uma roubalheira miúda, trata-se de prática de impacto nada desprezível, disseminada por vários níveis do Legislativo, como demonstram não apenas os casos associados ao clã Bolsonaro, mas também a denúncia recente contra o gabinete do senador Davi Alcolumbre.
De acordo com reportagem na revista Veja, seis assessoras de Alcolumbre entregavam cartão e senha bancários a um alto funcionário do gabinete do senador, que lhes devolvia pequena parte do salário. Uma delas afirmou receber R$ 1.350 dos R$ 14 mil pagos no contracheque. Outra disse embolsar R$ 800 de R$ 5 mil. Ao todo, a reportagem estima em R$ 2 milhões o desvio de verbas no esquema, que diz ter funcionado desde 2016 até março. Alcolumbre nega conhecimento da maracutaia, que atribuiu ao chefe de gabinete.
A denúncia é em tudo similar às acusações que pesam contra o senador Flávio Bolsonaro, quando deputado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) — o famigerado Caso Queiroz —, ou contra o vereador Carlos Bolsonaro na Câmara Municipal carioca. Não são os únicos. Trata-se de hábito arraigado. Funciona no país uma espécie de República da Rachadinha.
Há no Brasil mais de 58 mil parlamentares, entre senadores, deputados federais, estaduais e vereadores. Um senador como Alcolumbre tem direito a R$ 300 mil mensais para contratar os assessores que bem entender. Deputados federais fazem jus a R$ 112 mil de “verba de gabinete”. Os estaduais e vereadores também costumam ter acesso a recursos generosos, embora nem sempre a verba fixa. Na Alerj, há 2.368 assessores para 70 deputados. Cada gabinete pagou em média R$ 189.400 em salários em agosto. Cada um dos 51 vereadores cariocas tem a seu alcance a nomeação de 20 funcionários.
Em maior ou menor grau, a situação se repete em todo o país. Difícil haver uma Casa Legislativa em que funcionários-fantasmas não sejam usados para o desvio desavergonhado de verbas. Basta fazer uma conta banal de multiplicação para perceber que, apesar do nome no diminutivo, a rachadinha tem poder de corrosão superlativo, equivalente a escândalos bilionários.
É inaceitável que isso continue assim. Não basta apenas punir este ou aquele caso que venham à tona nas denúncias da imprensa, por mais que isso também seja necessário. É preciso, antes de tudo, reduzir ao mínimo as nomeações à disposição dos parlamentares e estabelecer critérios rígidos para contratação de assessores, com base em mérito, conhecimento técnico e formação acadêmica. Só será possível acabar com as rachadinhas fechando os caminhos usados para a contratação dos funcionários-fantasmas.
A descoberta de grupos organizados que desviam bilhões do Estado costuma revoltar a opinião pública. Pois a corrupção miúda também deveria causar a mesma indignação. Não apenas pela desonestidade intrínseca daqueles que a praticam, mas também porque os pequenos desvios se somam para totalizar milhões ou bilhões. Como numa floresta de árvores frondosas, é idêntico o impacto de machados e motosserras ou dos pequenos cupins que carcomem a madeira por dentro.
De acordo com reportagem na revista Veja, seis assessoras de Alcolumbre entregavam cartão e senha bancários a um alto funcionário do gabinete do senador, que lhes devolvia pequena parte do salário. Uma delas afirmou receber R$ 1.350 dos R$ 14 mil pagos no contracheque. Outra disse embolsar R$ 800 de R$ 5 mil. Ao todo, a reportagem estima em R$ 2 milhões o desvio de verbas no esquema, que diz ter funcionado desde 2016 até março. Alcolumbre nega conhecimento da maracutaia, que atribuiu ao chefe de gabinete.
A denúncia é em tudo similar às acusações que pesam contra o senador Flávio Bolsonaro, quando deputado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) — o famigerado Caso Queiroz —, ou contra o vereador Carlos Bolsonaro na Câmara Municipal carioca. Não são os únicos. Trata-se de hábito arraigado. Funciona no país uma espécie de República da Rachadinha.
Há no Brasil mais de 58 mil parlamentares, entre senadores, deputados federais, estaduais e vereadores. Um senador como Alcolumbre tem direito a R$ 300 mil mensais para contratar os assessores que bem entender. Deputados federais fazem jus a R$ 112 mil de “verba de gabinete”. Os estaduais e vereadores também costumam ter acesso a recursos generosos, embora nem sempre a verba fixa. Na Alerj, há 2.368 assessores para 70 deputados. Cada gabinete pagou em média R$ 189.400 em salários em agosto. Cada um dos 51 vereadores cariocas tem a seu alcance a nomeação de 20 funcionários.
Em maior ou menor grau, a situação se repete em todo o país. Difícil haver uma Casa Legislativa em que funcionários-fantasmas não sejam usados para o desvio desavergonhado de verbas. Basta fazer uma conta banal de multiplicação para perceber que, apesar do nome no diminutivo, a rachadinha tem poder de corrosão superlativo, equivalente a escândalos bilionários.
É inaceitável que isso continue assim. Não basta apenas punir este ou aquele caso que venham à tona nas denúncias da imprensa, por mais que isso também seja necessário. É preciso, antes de tudo, reduzir ao mínimo as nomeações à disposição dos parlamentares e estabelecer critérios rígidos para contratação de assessores, com base em mérito, conhecimento técnico e formação acadêmica. Só será possível acabar com as rachadinhas fechando os caminhos usados para a contratação dos funcionários-fantasmas.
A descoberta de grupos organizados que desviam bilhões do Estado costuma revoltar a opinião pública. Pois a corrupção miúda também deveria causar a mesma indignação. Não apenas pela desonestidade intrínseca daqueles que a praticam, mas também porque os pequenos desvios se somam para totalizar milhões ou bilhões. Como numa floresta de árvores frondosas, é idêntico o impacto de machados e motosserras ou dos pequenos cupins que carcomem a madeira por dentro.
Riqueza e luxo à custa de trabalho alheio?
Em contexto de superexploração da dignidade humana dos/as trabalhadores/as e dos camponeses e camponesas, não podemos abrir mão da utopia que é conquistar emancipação humana. Parece à primeira vista impossível, mas é possível, urgente e necessário, antes que a barbárie que o capitalismo e todos seus agentes e vassalos reproduzem cotidianamente levem à dizimação da humanidade por mudanças climáticas causadas pela destruição das condições materiais objetivas que garantam a vida dos humanos e de todos os seres vivos da biodiversidade. Refletindo sobre a emancipação humana, que precisa acontecer, Marx afirma na Crítica do Programa de Gotha:
“Quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, 2012, p. 33).
Ao tecer críticas ferrenhas ao programa de coalizão de dois partidos operários socialistas alemães, em 1875, tal como, programa “absolutamente nefasto e desmoralizador para o partido” (MARX, 2012, p. 22), Marx enfatiza a dimensão ecológica ao afirmar a natureza como a fonte primeira de toda riqueza, conditio sine qua non para o ser humano, através do trabalho gerar riqueza. “O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana” (MARX, 2012, p. 24).
Em sintonia com o que advoga o apóstolo Paulo, na Bíblia, na carta aos tessalonicenses – “Quem não quer trabalhar também não há de comer” (2 Tessalonicenses 3,10) -, Marx pondera que a emancipação humana passa necessariamente pela não apropriação de riqueza enquanto fruto de trabalho alheio. “Porque o trabalho é a fonte de toda a riqueza, ninguém na sociedade pode apropriar riqueza que não seja fruto do trabalho. Se, portanto, ele mesmo não trabalha, então vive do trabalho alheio e apropria sua cultura também à custa do trabalho alheio” (MARX, 2012, p. 25). Exceção óbvia às pessoas impossibilitadas de trabalhar por motivo de doença, deficiência ou por estar com idade avançada. A esses também segundo suas necessidades e segundo sua história de trabalho e/ou de alguma forma gerando sociabilidade justa. “O fruto do trabalho pertence inteiramente, com igual direito, a todos os membros da sociedade” (MARX, 2012, p. 28).
Os frutos do trabalho – o trabalho social integral – devem ser distribuídos a todos, com igual direito, após deduzir os recursos para a substituição dos meios de produção consumidos, a parte adicional para a expansão da produção, um fundo de reserva ou segurança contra acidentes, prejuízos causados por fenômenos naturais etc. Após essas deduções, a parte restante do produto total deve ser destinada ao consumo, sem esquecer o que serve à satisfação das necessidades coletivas, como escolas, serviços de saúde, etc. (Cf. MARX, 2012, p. 29). “É a ‘classe trabalhadora’ que tem de libertar – o quê? – ‘o trabalho’” (MARX, 2012, p. 34).
Se “a burguesia se desenvolveu dentro da ordem feudal, mas fora do eixo central da relação senhores feudais/servos dos quais a classe dominante extraía sua fonte principal de riqueza” (IASI, 2011, p. 97) – concordamos que provavelmente foi assim que se deu historicamente -, é provável que a classe revolucionária que guiará o processo de emancipação humana para uma sociedade para além do capitalismo e do capital, não será composta pelo proletariado, classe presa à própria relação fundamental do capital/trabalho – proprietários dos meios de produção/trabalhadores assalariados -, mas poderá ser a classe camponesa – o campesinato na sua imensa pluralidade de expressões – e todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores que sobrevivem injustiçados à margem do eixo central do sistema do capital: indígenas, quilombolas, sem-teto e todos os injustiçados por motivos de gênero, etnia, orientação sexual etc.
A forma como a sociedade em geral e a classe dominante, em particular, veem os Movimentos Populares condiciona, pelo menos em parte, como os Movimentos Populares se veem. Parafraseando Arroyo, podemos dizer: para o êxito dos Movimentos Populares do campo e da cidade é imprescindível reconhecer a centralidade e a força matriz da luta pela terra, pelo território, com todas suas raízes culturais e religiosas. A terra, ao longo da história, tem sido âncora de sustentação dos movimentos de luta por emancipação. O trabalho coletivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) irradia a centralidade da luta pela terra, que é disputada pelo poder do capital. Enquanto perdurar o cativeiro da terra na brutal injustiça agrária pautada no latifúndio, que viabiliza o agronegócio com uso indiscriminado de agrotóxicos, em latifúndios de monoculturas e muitas vezes com trabalho análogo à situação de escravidão, o trabalho alheio continuará sendo sugado para o enriquecimento da classe dominante.
Enfim, urge superarmos a lógica e as relações sociais que promovem riqueza e luxo para uma minoria à custa do trabalho alheio, ou seja, os/as trabalhadores/as trabalhando e produzindo não para si mesmos, mas para os patrões. Isto é a negação da utopia bíblica de “novos céus e nova terra” profetizada pelos discípulos e discípulas do grande profeta Isaías ao bradar: “Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricarem …” (Isaías 65,21-22). Que tenhamos a graça e a fibra de seguirmos lutando para a construção desta utopia: uma sociedade com pessoas livres, sem opressões, sem explorados e sem exploradores, respeitando os direitos da natureza, inclusive.
“Quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, 2012, p. 33).
Ao tecer críticas ferrenhas ao programa de coalizão de dois partidos operários socialistas alemães, em 1875, tal como, programa “absolutamente nefasto e desmoralizador para o partido” (MARX, 2012, p. 22), Marx enfatiza a dimensão ecológica ao afirmar a natureza como a fonte primeira de toda riqueza, conditio sine qua non para o ser humano, através do trabalho gerar riqueza. “O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana” (MARX, 2012, p. 24).
Em sintonia com o que advoga o apóstolo Paulo, na Bíblia, na carta aos tessalonicenses – “Quem não quer trabalhar também não há de comer” (2 Tessalonicenses 3,10) -, Marx pondera que a emancipação humana passa necessariamente pela não apropriação de riqueza enquanto fruto de trabalho alheio. “Porque o trabalho é a fonte de toda a riqueza, ninguém na sociedade pode apropriar riqueza que não seja fruto do trabalho. Se, portanto, ele mesmo não trabalha, então vive do trabalho alheio e apropria sua cultura também à custa do trabalho alheio” (MARX, 2012, p. 25). Exceção óbvia às pessoas impossibilitadas de trabalhar por motivo de doença, deficiência ou por estar com idade avançada. A esses também segundo suas necessidades e segundo sua história de trabalho e/ou de alguma forma gerando sociabilidade justa. “O fruto do trabalho pertence inteiramente, com igual direito, a todos os membros da sociedade” (MARX, 2012, p. 28).
Os frutos do trabalho – o trabalho social integral – devem ser distribuídos a todos, com igual direito, após deduzir os recursos para a substituição dos meios de produção consumidos, a parte adicional para a expansão da produção, um fundo de reserva ou segurança contra acidentes, prejuízos causados por fenômenos naturais etc. Após essas deduções, a parte restante do produto total deve ser destinada ao consumo, sem esquecer o que serve à satisfação das necessidades coletivas, como escolas, serviços de saúde, etc. (Cf. MARX, 2012, p. 29). “É a ‘classe trabalhadora’ que tem de libertar – o quê? – ‘o trabalho’” (MARX, 2012, p. 34).
Se “a burguesia se desenvolveu dentro da ordem feudal, mas fora do eixo central da relação senhores feudais/servos dos quais a classe dominante extraía sua fonte principal de riqueza” (IASI, 2011, p. 97) – concordamos que provavelmente foi assim que se deu historicamente -, é provável que a classe revolucionária que guiará o processo de emancipação humana para uma sociedade para além do capitalismo e do capital, não será composta pelo proletariado, classe presa à própria relação fundamental do capital/trabalho – proprietários dos meios de produção/trabalhadores assalariados -, mas poderá ser a classe camponesa – o campesinato na sua imensa pluralidade de expressões – e todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores que sobrevivem injustiçados à margem do eixo central do sistema do capital: indígenas, quilombolas, sem-teto e todos os injustiçados por motivos de gênero, etnia, orientação sexual etc.
A forma como a sociedade em geral e a classe dominante, em particular, veem os Movimentos Populares condiciona, pelo menos em parte, como os Movimentos Populares se veem. Parafraseando Arroyo, podemos dizer: para o êxito dos Movimentos Populares do campo e da cidade é imprescindível reconhecer a centralidade e a força matriz da luta pela terra, pelo território, com todas suas raízes culturais e religiosas. A terra, ao longo da história, tem sido âncora de sustentação dos movimentos de luta por emancipação. O trabalho coletivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) irradia a centralidade da luta pela terra, que é disputada pelo poder do capital. Enquanto perdurar o cativeiro da terra na brutal injustiça agrária pautada no latifúndio, que viabiliza o agronegócio com uso indiscriminado de agrotóxicos, em latifúndios de monoculturas e muitas vezes com trabalho análogo à situação de escravidão, o trabalho alheio continuará sendo sugado para o enriquecimento da classe dominante.
Enfim, urge superarmos a lógica e as relações sociais que promovem riqueza e luxo para uma minoria à custa do trabalho alheio, ou seja, os/as trabalhadores/as trabalhando e produzindo não para si mesmos, mas para os patrões. Isto é a negação da utopia bíblica de “novos céus e nova terra” profetizada pelos discípulos e discípulas do grande profeta Isaías ao bradar: “Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricarem …” (Isaías 65,21-22). Que tenhamos a graça e a fibra de seguirmos lutando para a construção desta utopia: uma sociedade com pessoas livres, sem opressões, sem explorados e sem exploradores, respeitando os direitos da natureza, inclusive.
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