quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Bravo, Brasil!

Caros brasileiros,

outra vez. Outra vez o governo brasileiro fez referências ao nazismo. Agora foi o ex-secretário da Cultura Roberto Alvim. Num vídeo sobre os novos rumos da cultura brasileira, ele citou trechos de um discurso de Joseph Goebbels, que foi ministro da Propaganda de Adolf Hitler.

A fala de Alvim veio no pior momento possível: justamente poucos dias antes da comemoração dos 75 anos da libertação de Auschwitz. Mais de um milhão de judeus morreram nesse campo de extermínio dos nazistas na Polônia.

Neste dia 23 de janeiro, mais de 40 chefes do Estado vão se reunir no Yad Vashem, memorial do Holocausto de Jerusalém, num encontro dedicado à luta contra o crescente antissemitismo no mundo.

Poucos dias depois, no dia 27 de janeiro, Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, sobreviventes de Auschwitz vão alertar para o risco de que a história se repita quando suas vozes se calarem.

A história do Holocausto repetida, esquecida, negada ou deturpada? O que parecia há pouco tempo impensável, infelizmente, já está acontecendo. Até na Alemanha. Segundo uma pesquisa de opinião da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 45% dos alemães concordam com a afirmação de que judeus usam o Holocausto em benefício próprio.

O presidente Jair Bolsonaro conhece a história do Holocausto. E conhece Yad Vashem. Na sua visita oficial ao Israel em abril 2019, visitou o memorial em Jerusalém e afirmou que "aquele que esquece o seu passado está condenado a não ter futuro". Mas, na mesma visita, ele deu uma prova de que não esquecer o passado não quer dizer não manipulá-lo.

Para o espanto da comunidade internacional e do próprio museu, Bolsonaro reacendeu uma polêmica lançada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e afirmou "não ter dúvidas" de que o nazismo foi um movimento de esquerda.

Em seu site, o próprio Yad Vashem, visitado por Bolsonaro, define o nazismo como um movimento que partiu da direita. Segundo a instituição, a ascensão do partido nazista na Alemanha só foi possível graças ao "crescimento de grupos radicais de direita" no país.

Bolsonaro e o nazismo: uma vez é a presença da palavra "socialista" no nome oficial da agremiação nazista, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP; outra vez é a arte brasileira que deve ser "heroica e nacional ou então não será nada", como discursou o ex-secretário Alvim, copiando Goebbels.

Uma vez é uma estratégia eleitoral para atrair a classe trabalhadora. Outra vez é a tentativa de ganhar ou manter o apoio do universo evangélico e conservador, enaltecendo a cultura enraizada "na nobreza de nosso mitos fundantes": "a pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus".

Mas, desta última vez, a sociedade brasileira deu um grito. Bolsonaro viu forças e instituições do país se voltando contra ele e exigindo a renúncia do secretário "heroico".

Essa reação de repúdio parece ter surpreendido o presidente. Ela é um sinal de esperança. Mas o perigo de que membros do governo Bolsonaro continuem simpáticos a ideologias totalitárias continua. A recente declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a possível edição de um novo AI-5 é mais uma prova disso.

Mas a verdadeira tragédia se encontra além dessas transgressões. Pois elas se sobrepõem aos problemas gritantes do Brasil que continuam sem solução. Milhares de jovens fazem as malas e deixam o país porque não veem perspectivas. Milhões de desempregados procuram trabalho, e o número de moradores de rua nas metrópoles continua aumentando.

Discursar sobre "a cultura brasileira heroica e nacional" em meio ao atual cenário político e econômico do Brasil é uma perda de tempo e revela falta de empatia e competência governamental. Que bom que o povo brasileiro deu um recado claro ao Palácio do Planalto: basta! Obrigado, caros brasileiros.
Astrid Prange de Oliveira

Pensamento do dia


A economia do desmatamento

Quanto custa uma motosserra? E várias delas? Quanto custam tratores, correntões, caminhões? Tudo isso é necessário para desmatar. Um método primitivo, mas muito usado, é o correntão. Ele vai arrastando as árvores, mas não funciona sem tratores. São necessários dois, um de cada lado. Quanto custam dois tratores? Depois, é preciso ter caminhões para transportar as toras até o consumo. Mas, antes, é necessário ter uma escavadeira hidráulica com garra de metal para empilhar as toras nos caminhões. Capangas armados ocupam a terra que está sendo grilada. Fazem isso a soldo. De quem? Documentos são esquentados, como as guias de transportes. São comprados títulos falsos de propriedade. O ministro Paulo Guedes disse em Davos que “o pior inimigo do meio ambiente é a pobreza” e que “as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer”. Não é a pobreza que desmata. Para grilar e desmatar é preciso capital. Muito capital.


O ministro estava num debate sobre outro assunto. Era um painel sobre indústria avançada e o uso de recursos naturais. Paulo Guedes, segundo explicou depois, defendia a tese de que os países de economia avançada derrubaram florestas para escapar da pobreza. Mas essa ideia de que, como disse, “as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer” já foi dita algumas vezes pelo ministro do Meio Ambiente. É uma avaliação errada dos vetores reais do desmatamento.

No ano passado foram desmatados quase 10 mil km2 só na Amazônia, numa alta de 30%, segundo o Prodes, do Inpe. E aumentaram as queimadas. Há muitos estudos provando a correlação direta entre o aumento do desmatamento e o das queimadas. Não houve um surto de alta da pobreza que explicasse o que aconteceu em 2019. O que houve foram sinais do governo de que o crime não seria combatido. E qualquer economia, até a do crime, é estimulada por sinais e expectativas.

Movimentar essa cadeia do crime, montar as conexões, ocupar a terra com pastagem, esquentar o documento para vender, tudo isso exige um enorme investimento. Quando o governo combate o crime e impõe o império da lei, o risco fica mais alto e o retorno do capital, mais incerto. Neste cenário, há uma redução do incentivo e a taxa do crime cai. As leis econômicas, sempre elas, determinam alta e queda da destruição ambiental. Uma forma de combater o crime é pegar todo aquele material — motosserras, caminhões, tratores, escavadeiras — e apreender ou destruir. Isso aumenta o prejuízo do criminoso, mas agora está proibido pelo presidente da República.

O ministro disse que a pobreza é o pior inimigo do meio ambiente. Deve-se combater a pobreza por inúmeros motivos, mas é preciso inverter o entendimento do fato. O pobre é a grande vítima da destruição do meio ambiente. Ele é recrutado como mão de obra em trabalho degradante, depois é ele que vive os efeitos da degradação da terra, da água e do ar. A falta de saneamento contamina principalmente as regiões onde moram os pobres. Os lixões se acumulam é nas periferias. Nos extremos climáticos são os pobres os mais afetados. Eles não são os agentes da destruição ambiental. São suas primeiras vítimas.

A criação do Conselho da Amazônia pode ajudar, principalmente se levar para o governo informações que o ilustrem sobre a verdadeira origem das redes de ilegalidade na Amazônia e afastem os mitos que têm dominado as declarações oficiais sobre o assunto. O Conselho será mais eficiente se não for feito para atender às teorias conspiratórias que mobilizam o governo Bolsonaro. Foi anunciada também a criação da Força Nacional Ambiental. Ela precisará de orçamento. Mas esta é a administração que cortou orçamento do Ibama e do ICMBio, que limitou as ações preventivas e as operações de comando e controle nas regiões vulneráveis.

É urgente que este governo conclua o período de noviciado e entenda o que se passa na Amazônia, para deter o aumento do desmatamento. Primeiro, para impedir a destruição de riqueza coletiva. Segundo, porque o mundo mudou, como se pode constatar em todos os relatórios que foram feitos por instituições financeiras para o Fórum Econômico Mundial. O assunto deixou o terreno da retórica para ser determinante da alocação de recursos dos grandes investidores.

Macarthismo administrativo

Um dia antes da divulgação de performance de inspiração nazista que lhe custou o cargo, o então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, manifestou-se no Twitter sobre a indicação do cientista político Christian Lynch para a chefia do Serviço de Pesquisa Ruiano, na Fundação Casa de Rui Barbosa. O posto, segundo o emulador de Goebbels, não poderia ser ocupado por Lynch por ter ele “ideias execráveis sobre Jair Bolsonaro”. Mais que isso, sugeriu que apenas não o dispensaria por se tratar de servidor concursado da Fundação em que exerceria o cargo. Assim, determinou à presidente da organização que cancelasse a nomeação do desafeto.

A missão da Casa de Rui Barbosa é preservar não só memória e obra de seu patrono, como promover “a pesquisa, o ensino e a difusão do conhecimento sobre temáticas relevantes para a história do Brasil”. Lynch, como pesquisador do pensamento jurídico, político e social brasileiro, em especial o de Rui, reunia os atributos profissionais e intelectuais exigidos para a ocupação da chefia que fora oferecida - que é, inclusive, do setor em que trabalha naquela entidade. Bolsista de produtividade do CNPq, com projetos e publicações sobre o tema do setor que dirigiria, seria natural exercer a função e ter o comissionamento condizente com a nova responsabilidade.

Órgãos de pesquisa como esse, assim como fundações, universidades, institutos e autarquias, contam com cargos comissionados cujo exercício depende de nomeação por superiores hierárquicos. São chefias de departamento, coordenações de curso, superintendências e coisas do tipo. A natureza de tais cargos requer a nomeação por superiores não em decorrência da necessidade de alinhamentos pessoais ou político-partidários, mas pelo reconhecimento da competência profissional e da experiência, requerida para se desincumbir da função.


No caso de uma instituição de pesquisa na área de política, nada mais natural que, por sua própria atividade profissional, pesquisadores escrevam textos críticos sobre os mais diversos aspectos desse mundo - como o governo do dia. E foi um artigo de Lynch que levou o secretário, leal escudeiro do presidente, a impedir sua nomeação. Fiel a seu ofício, o autor teceu considerações críticas acerca do bolsonarismo, observando numa passagem: “A adesão ao extremismo ideológico é escada para os candidatos que desejarem assumir cargos na administração”. Como observou depois o próprio Lynch, o cancelamento de sua nomeação confirmou tal afirmação.

Mas não se trata apenas da adesão ao extremismo bolsonarista, como também a adulação do chefe. Foram as “ideias execráveis” de um servidor sobre o presidente que justificaram o veto. Da mesma forma, foi a atitude severa de outro funcionário, José Olímpio Augusto Morelli, que gerou, em março de 2019, sua exoneração do cargo em comissão de Chefe do Centro de Operações Aéreas do Ibama. Morelli foi o fiscal que multou Bolsonaro por pescar ilegalmente na estação ecológica de Angra dos Reis. Era, há mais de uma década e meia, servidor concursado do órgão em que exercia sua chefia e foi secretário de Meio Ambiente do município. Ou seja, contava com atributos técnicos e experiência para o cargo, mas foi exonerado por ter-se tornado desafeto do presidente ao cumprir o dever funcional e multar quem pesca ilegalmente.

Em maio do ano passado, o Decreto 9.794 conferia à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a atribuição de fiscalizar a vida pregressa de ocupantes de cargos comissionados em instituições federais de ensino superior, submetendo-as à Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República. Assim, a ocupação de um cargo como de diretor de um centro de ensino, ou de uma faculdade, dependeria de avaliação do gabinete presidencial. Que propósito haveria em controlar tão centralmente a nomeação para um cargo dessa monta, no âmbito de uma instituição universitária que, por sua função e determinação constitucional, goza de autonomia? É demasiado.

Nem todo cargo comissionado na administração pública se reveste de caráter político-partidário ou de lealdade pessoal. Quanto mais próximo aos representantes eleitos, mais relevante e legítimo é tal critério; porém, quanto mais próximo da ponta, ou da burocracia do nível de rua, menos adequado é que o preceito pessoal ou partidário dos dirigentes máximos do governo seja determinante. Pelo contrário, nesse nível do aparato governamental o que deve contar, em prol do bom desempenho da gestão, do cumprimento de funções administrativas, do pluralismo e da impessoalidade, são parâmetros de desempenho e experiência no âmbito das atividades exercidas. Noutros termos: em tal patamar, comissionamento não se justifica por confiança política, mas por reconhecimento e responsabilização decorrentes do bom desempenho profissional.

Não seguir tal diretriz - ou pior, violá-la deliberadamente - implica o aparelhamento e na partidarização da máquina pública. Ou, nos termos de Lynch na conclusão de seu artigo: autoritarismo, hierarquia mantida pela violência, personalismo, nepotismo, guerra política, intimidação, espírito de vingança, perseguição e exercício da violência psicológica.

Portanto, o viés autoritário do bolsonarismo não se traduz apenas em ideias antipluralistas, tensionamento constante com os demais poderes do Estado, enaltecimento da violência ou ataque reiterado à imprensa, à ciência e às artes não alinhadas. Ele também se faz presente na forma como o Poder Executivo organiza sua estrutura administrativa até as fímbrias mais remotas, aparelhando-a com aduladores e correligionários, bem como perseguindo críticos ou não alinhados cuja crítica ou não alinhamento decorrem justamente do cumprimento de obrigações funcionais.

A contra face desse aparelhamento é a ideia, presente na proposta de reforma administrativa, de proibir servidores de terem filiação partidária. Ora, se isso é irrelevante para o bom desempenho de suas funções, tal regra tem apenas um propósito: instaurar um macarthismo administrativo.
Cláudio Gonçalves Couto

Burrice autoritária é o pior inimigo do meio ambiente

O crescimento econômico é o pior inimigo do ambiente, insinuou Paulo Guedes em debate em Davos. Na verdade, o ministro da Economia falou que a pobreza, pessoas que "precisam comer", destroem o ambiente, como o fizeram povos que têm outras "preocupações" porque já "destruíram suas florestas" e já lidaram com "suas minorias étnicas" (oi?).

Suponha-se então que o ministro tenha recorrido a uma metonímia (superação da pobreza etc.) para se referir ao fato de que o crescimento esteve associado à destruição da natureza, pelo menos até faz bem pouco tempo.

Que não estivesse se referindo a dano ambiental causado por indivíduos pobres ou ao genocídio de indígenas, o que já foi motivo de elogio de Jair Bolsonaro.


Ainda assim, não dá pé. É verdade que, mesmo no melhor dos mundos, de onde estamos cada vez mais distantes, crescimento provoca dano ambiental, embora cada vez mais o dano ambiental solape a possibilidade de crescimento econômico ou da vida. Além do mais, há alternativas para atenuar ou mesmo eliminar alguns desses problemas.

Para ficar apenas no universo da economia-padrão ou de ideias liberais, há destruição ambiental por falhas de mercado, falhas de coordenação e ineficiências em geral.

O custo de degradar o ambiente em geral não está no preço do produto degradante. Por exemplo, produz-se em excesso um bem que implica poluição porque o custo da degradação não aparece no preço de mercado, mas é pago por alguém não envolvido na transação.

É uma lição de primeiro semestre de curso de economia. Um sistema de preços que não funciona direito é um inimigo da natureza, pois.

Outro clichê: é possível recuperar pastagens degradadas para a agropecuária sem que seja necessário desmatar para plantar ou criar mais. Para que assim seja, é preciso assistência técnica e fazer com que o mercado de crédito funcione (nosso mercado de crédito é disfuncional e concentrado).

Podem ainda ser criados mercados de direitos de poluição, cotas de pesca, de madeira, de reservas florestais etc., o que torna mais eficiente de recursos ambientais.

A falta de método adequado de distribuição ("alocação"), um mecanismo que pode ser até de mercado, faz com que se use água como recurso infinito. A lista de ineficiências é imensa.

A desregulamentação ambiental, por meio da revogação de leis ou na marra, por meio de ocupação e uso ilegal do solo (grilagem, desmatamento) ou da destruição de instituições de controle, é inimiga da natureza.

Em suma, a captura do Estado por quem quer viver de "rendas" ambientais é inimiga da natureza. É o que fazem certos fazendeiros, mineradores e industriais que ficam com os ganhos da destruição e repassam os custos.

O descaso com a pobreza arrebenta todos os ambientes. A ocupação de margens de rios e lagos por gente sem casa, eira ou beira, causa poluição e aumenta o custo da oferta de água e o do saneamento.Essa desgraça múltipla resulta, por exemplo, do fato de que não há reforma urbana (oferta de habitação decente para gente pobre).

A burrice autoritária é inimiga da natureza. Ignorar dados e cálculos de impactos ambientais provoca mais destruição. Arrebenta o planejamento racional e a fiscalização dos danos. Destruir e desmoralizar a pesquisa científica impede a criação de tecnologias e de planos de desenvolvimento menos daninhos.

Em suma, é fácil perceber que políticas e propagandas de Bolsonaro são inimigas da natureza.

Livramentos

Deixem-me repetir: um dos mais surpreendentes triunfos de ficar velho (velhice é outra coisa) é descobrir, com um sorriso irônico e um enorme alívio, que não se tem futuro.

Uma analogia batida é imaginar o final de uma viagem de trem quando passamos pelos subúrbios e as zonas mais pobres da cidade e, em seguida, entramos no enxame de gente ansiosa da estação. Neste momento, a viagem termina, não há mais trilho a ser trilhado. Acabar é ficar com um absoluto presente no colo. Um presente que não será mais vivido e transmitido para ninguém.

Faz algum tempo que eu descobri que não tenho mais que carregar o meu futuro. E eu lhes confesso: ele foi pesado, cheio de coisas escondidas e de memórias empoeiradas como é comum acontecer com o reprimido, o ocultado e o aprisionado que imploram livramento.

Quando mencionei isso numa aula, alguns jovens me olharam intrigados, mas nenhum ficou decepcionado. Acho até que alguns me invejaram por terem consciência de que estou mais próximo do fim da linha, mas — e esse ponto é absolutamente fundamental — não finalizei o gosto da viagem. O fim tem uma vantagem: ele torna o presente algo único e precioso. Se para os jovens o futuro demanda múltiplas escolhas imperiosas que podem ou não dar certo — sobretudo com o poderoso preocupar-se com o que se “vai ser”; essa exigência do individualismo que, no caso americano, é muito mais obsessivo do que entre nós —, isso faz com que ele assuma uma tremenda e muitas vezes agoniada proporção.

Nestes tempos globalizados e um tanto sinistros, eu — no papel de pai, avô e professor — sei como é complicado sair da verdadeira prisão de um Brasil no qual a gente só tinha futuro como médico, advogado, engenheiro e oficial das Forças Armadas (com ênfase no oficial) e numa elitista carreira diplomática, para poder ser “alguém”. Hoje, porém, pode-se até ser polícia, dono de bar, motorista e garçom.

Convenhamos que esse naipe de escolhas tornou-se muito amplo e certamente demasiado democrático no contexto de um universo profissional preciso e estruturado para as camadas médias, um leque no qual o futuro invariavelmente deveria repetir o passado.

Quando, nos anos 50, entrei numa Faculdade de Filosofia, um amigo decretou que ia estudar numa escola para mulheres e veados. De lá, disse ele, você sai professor, o que, no Brasil, é pior que ser lixeiro, pois não aprender algo novo, descobrir o que ninguém sabe, é uma dimensão indesejada. Pode-se ser do contra, mas é crime, pecado e tabu falar em alternativas e liberdade. Até hoje pagamos salários de merda aos lixeiros, mas não há verbas previstas para conferências e palestras acadêmicas que, obviamente, não precisam de honorários.

Quando virei um leitor aplicado, disseram-me que poderia enlouquecer, pois é justamente isso que ocorre com quem relativiza costumes estabelecidos e prisões culturais solidamente construídas. Como duvidar ou questionar se o caminho já estava traçado primeiro pelo catolicismo e depois pelo chamado “pensamento crítico”?

Tornei-me, Deus e eu sabemos como, antropólogo social. Um profissional da dúvida que afasta — um investigador do por que gostamos de comer misturando arroz com feijão e o que isso teria a ver com a mestiçagem mascaradora e criadora de hierarquias; pesquisei como os chamados “índios” que andam sem roupa inventam seus mundos. Um conhecido me perguntou se eles não ficavam excitados vendo aquelas mulheres nuas.

Questão tão esdrúxula quanto válida quando descobrimos por que a “política” foi transformada num espaço de enriquecimento e aristocratização, porque não se resiste aos dinheiros públicos que até anteontem, sendo de todos, não seriam de ninguém...

Um dia ouvi num ato falho que, além de louco, era antropófago. Fiquei feliz. Descobri o meu futuro pesquisando sociedades modestas; muito mais pobres do que a pobreza que vive ao nosso lado e é mantida pelo nosso estilo de vida. Encontrei futuros no Museu Nacional, que, não obstante, pegou fogo.

Lamento ver instituições como a Casa de Rui Barbosa serem atingidas. Para mim, elas deveriam ser independentes. Pesquisadores e professores não podem ser funcionários públicos — os papéis não combinam.

Ponto final: sem liberdade, amor e perseverança não há, mesmo velho, nenhum futuro. Aliás, o que está para chegar depende de lucidez intelectual: o verdadeiro livramento.
Roberto DaMatta

Walking dead do Brasil


Pátria amada

Sou despertado todos os dias pelo rádio de cabeceira. Os locutores têm fixação por engarrafamentos, as vinhetas musicais são longas e repetitivas e o Brasil parece sempre pior do que na véspera. É bastante para fazer o cidadão pular da cama e ir à vida, em vez de tentar mais dez minutos de cochilo. E, mesmo que não fosse, há os anúncios da propaganda oficial com as façanhas dos ministérios, todos terminando com a assinatura: "Ministério tal. Governo Federal. Pátria amada, Brasil".

É de embrulhar os mais rijos estômagos, tão desprevenidos de manhã. A mim, soam particularmente ofensivos, porque não gosto que me pespeguem a pátria amada sem minha autorização. Não por ter algo contra a dita pátria —perdi a conta das vezes em que, nos anos 60, saí às ruas do Rio por ela, levei borrachadas no lombo e passei algumas horas numa cela da rua da Relação. É que não sei se estamos falando da mesma pátria. Se for a atual, dedicada a destruir a educação, o ambiente, as relações exteriores, os direitos humanos e a cultura, pode ser a mesma, mas não será amada.


Roberto Alvim, o Goebbels de galinheiro, tinha uma bandeira do Brasil ao seu lado no vídeo em que pregou uma "nova arte nacional", "heroica" e sujeita ao seu diktat de, então, secretário da Cultura de Bolsonaro. O que farão com aquela bandeira tão ultrajada? Será suficiente lavá-la, esfregá-la com sabão? E quem garante que ela não será levada a enfeitar o gabinete de Regina Duarte, substituta de Alvim e, com certeza, herdeira das políticas de seu antecessor para a pasta?

O problema não está nos símbolos, mas em quem os encarna. Minha geração, que chegou à maioridade por volta de 1964, desenvolveu alergia ao Hino Nacional de tanto ouvi-lo como prefixo daqueles homens sombrios, fardados e de óculos escuros.

Eles também quiseram nos impor uma pátria amada. E custou, mas a pátria decidiu diferente.
Ruy Castro

Simplórios domesticados

O indivíduo comum é capaz de enfrentar uma narrativa complexa, mas muitas vezes não é isso que se oferece a ele. Na cultura popular, primeiro se decide que o público é composto principalmente de simplórios que não apreciariam nada inteligente. Em seguida, são produzidas obras nesse estilo, assumindo que é o que a massa quer. Esse processo, prolongado durante décadas, gera um público que dificilmente pode reconhecer um material inteligente, se é que o vê
Alan Moore

'Cadeia de comando'

“Eu não contrario publicamente o presidente. Existe aí, evidentemente, uma cadeia de comando.” A frase, dita por Sérgio Moro já no primeiro bloco do programa Roda Viva, foi a tônica da entrevista do ministro da Justiça. É claro que num regime presidencialista os ministros seguem o presidente da República. Mas os desafios postos diante de Moro vão além da disciplina e da hierarquia. São políticos, éticos e institucionais.

Os políticos são óbvios, estão na mesa e tanto ele quanto o presidente os compreendem muito bem. Moro é o único a ombrear com Bolsonaro nas pesquisas hoje. O chefe não pode demiti-lo, sob pena de criar um adversário. E ele não pode sair do governo agora, sem antes traçar um caminho. O jogo de ver quem pisca primeiro continuará, e Moro parece ainda ter apetite para engolir alguns sapos.

Os conflitos éticos dizem respeito aos quase diários ataques às liberdades e às minorias por parte de Bolsonaro e de seus auxiliares.


Até quando será possível ao ex-juiz calar sobre assuntos como o atentado à produtora Porta dos Fundos e falar apenas em privado sobre absurdos como a performance nazista de Roberto Alvim? Ou silenciar quanto aos ataques à liberdade de imprensa? Não se trata, como diz ele, de ser um “comentarista-geral” da República. Mas de cumprir o papel de ministro da Justiça: o de guardião da democracia e da Constituição.

Por fim, os dilemas institucionais são os decorrentes do fato de que Moro convive no governo com acusados de irregularidades que, como juiz, não hesitaria em investigar. Isso afeta a imagem de “herói do Brasil”, hashtag que liderou o Twitter mundial durante o programa.

O ministro tem o maior cacife político do Brasil hoje. Ganha de Bolsonaro e eclipsou Lula. Resta saber o quanto desse patrimônio está disposto a queimar enquanto aguarda saber se vai para o STF ou se parte para uma candidatura. Pode parecer que há muito tempo até 2022, mas a corrosão que a exposição ao bolsonarismo é capaz de operar é incerta.

Bolsonaro administra sua própria herança maldita

Jair Bolsonaro tornou-se um governante peculiar. Inicia o segundo ano de sua Presidência sob os efeitos da herança maldita que construiu no primeiro. Nos 12 meses inaugurais, plantou as sementes do afrouxamento na fiscalização ambiental. E colheu índices amargos de queimadas e desmatamento.


Agora, o presidente anuncia a criação de um Conselho da Amazônia e uma Força Nacional Ambiental (coisa copiada do petismo). Tudo sob a coordenação do vice-presidente Hamilton Mourão. Como no caso do sapo de Guimarães Rosa, Bolsonaro não ensaia um salto ambiental por boniteza, mas por precisão.

O Brasil começou a receber a visita dos cobradores. Grandes fundos de investimento insinuam que deixarão de aplicar dinheiro no país por conta da política anti-ambiental do governo. O ministro Paulo Guedes (Economia) sente o cheiro de queimado no Fórum Econômico Mundial, apelidado neste ano de "Davos Verde". Em 2019, Bolsonaro extinguiu um par de conselhos ambientais, avalizou o esvaziamento do aparato fiscalizatório, mimou desmatadores e ofendeu países que aplicavam bilhões em projetos ambientais no Brasil. Reposiciona-se em cena brandindo projetos rabiscados em cima do joelho. Exibe a disposição de um mestre-cuca que se julga capaz de desfritar um ovo.

Bolsonaro se move num instante em que a economia começa a respirar, mas permanece no leito. O desemprego continua nas nuvens. Eleito com 55,1% dos votos válidos, o inquilino do Planalto amarga índices de popularidade que rodam na casa dos 30%. O capitão sempre poderá atribuir a ruína econômica à herança maldita. Mas não tem como transferir para o petismo as crises que rebaixam seus índices de aprovação e retardam o crescimento da economia. Na área ambiental, as coisas vão mal. Se piorarem, perdem todos.

O mundo como cinema-catástrofe

Às vezes acho que estamos num filme-catástrofe. É uma película típica de Hollywood, e estamos vivenciando o momento em que os cientistas advertem vigorosamente que algo terrível é iminente.

Mas os políticos responsáveis não querem saber nada sobre isso. Eles temem por seu poder. Eles dizem que os cientistas estão espalhando pânico e que tudo está sob controle. São os políticos errados, no lugar errado e na hora errada. Seus horizontes são pequenos, e o que os cientistas dizem vai além disso, além de contradizer seus interesses políticos. Então, eles desacreditam os cientistas, afirmam que eles estão mentindo e os privam de cargos de responsabilidade.

Em algum momento, será tarde demais: a catástrofe vai se tornar realidade. Os sinais de alerta eram evidentes, mas os líderes não reagiram – em vez disso, aceleraram a catástrofe.

Estou convencido de que chegamos a um momento pré-catastrófico. Há dois fatores fatais combinados: a destruição drástica e cada vez mais rápida do meio ambiente, e políticos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que fazem tudo para acelerar o desastre ambiental.

São agentes da catástrofe. Seus motivos são vaidade, fúria destrutiva e o prazer perverso diante do infortúnio de terceiros. Ao mesmo tempo, são agentes de uma ideologia de crescimento que há muito se tornou anacrônica, concentrando-se na exploração de recursos, mas não na sustentabilidade.


Como seu ídolo Trump, Bolsonaro nega o câmbio climático e ataca brutalmente a legislação ambiental. O desmantelamento das autoridades brasileiras de proteção do meio ambiente é dramático. Quase se tem a impressão de que o governo Bolsonaro está numa campanha de vingança contra o meio ambiente brasileiro. Parece achar que árvores, araras e onças são comunistas. Encaixaria muito bem em sua visão paranoica e maniqueísta do mundo. Para o planeta, isso pode não ser realmente importante. Ele sobreviverá também a Jair Bolsonaro por milhões de anos. Mas nós humanos devemos estar interessados.

A seguir, alguns dados sobre a situação do nosso planeta:

Segundo a Nasa, 2019 foi o segundo ano mais quente desde que os dados meteorológicos começaram a ser registrados. Somente 2016 foi mais quente. A década de 2010 a 2020 registrou as temperaturas mais elevadas de todos os tempos. Os cientistas não têm dúvida de que as emissões de gases de efeito estufa estão impulsionando as mudanças climáticas.

Desde 1970, o Ártico se aqueceu a um ritmo mais de três vezes mais rápido que o resto do mundo. A costa do Alasca ficou sem gelo pela primeira vez no ano passado. As temperaturas atingiram um recorde de 32 graus Celsius. O pesquisador do Ártico Jeremy Mathis disse: "Não tenho adjetivos para descrever a extensão da mudança que estamos vivenciando."

No Hemisfério Norte, as florestas queimaram com mais frequência e virulência em 2019 do que nos últimos 10 mil anos, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM). Cerca de 9 milhões de hectares de floresta foram queimados somente na Sibéria – uma área equivalente à de Portugal.

Um recente relatório do Fórum Econômico Mundial pressupõe que a economia mundial entrará em colapso se as emissões globais de CO2 não forem nulas em 2050. A razão está nos danos extremos causados pelas mudanças climáticas.

Desde 1980, na Europa, cerca de 300 milhões de aves desapareceram de campos e plantações; na América do Norte, esse número chega a 3 bilhões. A agricultura industrial é a principal responsável, porque destrói os habitats dos animais e causa a morte dramática dos insetos.

No Brasil, no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi aprovado um número recorde de novos pesticidas. As empresas estrangeiras são as mais beneficiadas com a liberação desses produtos. Dos agrotóxicos liberados, 20% são considerados extremamente tóxicos – entre eles o dinotefuran, que nunca foi aprovado na União Europeia. O agrotóxico faz parte da classe dos neonicotinoides, fatais para abelhas e polinizadores.

Segundo a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), cerca de um milhão de um total de 8 milhões de espécies animais e vegetais estão ameaçadas de extinção; em breve, muitos podem ter desaparecido. Especialistas falam de uma extinção de espécies que não se vê desde o desaparecimento dos dinossauros.

O Caribe está passando por uma praga sem precedentes de sargaços. As algas poluem as "praias idílicas" que precisam ser limpas todos os dias para os turistas. Devido ao aumento da temperatura marinha, as algas se reproduzem explosivamente. Os cientistas também suspeitam que o crescente uso de fertilizantes, que são jogados no oceano através do Amazonas, está contribuindo para esse fenômeno.

Rios e mares estão extremamente contaminados com plástico. Só as vendas mundiais de garrafas plásticas deverão atingir a cifra de meio trilhão em 2021. Entre 5 milhões e 13 milhões de toneladas de lixo plástico são jogadas no mar todos os anos. A Fundação Ellen MacArthur calculou que em 2050 o peso do plástico nos oceanos excederá o peso dos peixes.

A Floresta Amazônica está desaparecendo novamente a uma velocidade recorde. A maior floresta tropical do mundo é insubstituível para o balanço hídrico da América do Sul e para o clima global. Entre agosto de 2018 e julho de 2019, o desmatamento na Amazônia cresceu quase 30%, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É a maior área destruída desde 2008. Em todo o mundo, especialistas estimam que a cada minuto 30 campos de futebol de floresta tropical são destruídos.

A destruição da Floresta Amazônica é o único dos temas acima mencionados que está sendo discutido no Brasil. Todo o resto não importa.

Que soluções o governo brasileiro oferece para pelo menos retardar a destruição da Floresta Amazônica? Nenhuma!

O presidente Jair Bolsonaro diz: "A porra das árvores." Ele quer liberar a floresta e as Terras Indígenas para exploração predatória. Seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por sua vez, chamou os lenhadores que cortam ilegalmente árvores em terra indígena de "pessoas de bem que trabalham neste país".

Parece que Bolsonaro e Salles têm prazer na destruição. Exemplar é o cínico post de Salles no Twitter com a foto de um prato de carne grelhada. Seu comentário: "Para compensar nossas emissões na COP25, um almoço veggie!"

Fato é que a indústria de carne representa cerca de 15% da contribuição para as mudanças climáticas. A produção de um quilo de carne requer entre 5 mil e 20 mil litros de água, conforme calculado pelo Instituto de Engenheiros Mecânicos (IME), do Reino Unido.

Mas o ministro do Meio Ambiente acha que é mais importante fazer piada de mau gosto. Faz parte da tragédia de nosso tempo que, num momento crítico, homens como ele e Jair Bolsonaro estejam no poder.

Em seu livro Collapse. How Societies Choose to Fail or Survive (Colapso. Por que algumas sociedades perduram e outras desaparecem, em tradução livre), o antropólogo Jared Diamond descreve cinco razões principais que historicamente levaram ao fim das civilizações: destruição ambiental, mudanças climáticas, guerras, alianças fracas e respostas erradas às crises existenciais. Uma crise pode ser tratada de forma sensata. Também pode ser ignorada ou reforçada por decisões irracionais? A resposta é clara no caso do Brasil.
Philipp Lichterbeck